quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Jesus Histórico no Brasil: pé atrás e pé na tábua...

Ainda, na virada para 2011, o quadro no Brasil em termos de trabalhos, leituras, publicações e pesquisas, mesmo interesse, acerca do campo de estudos históricos positivos de Jesus e das origens cristãs está num estágio incipiente e com um número relativamente pequeno de pessoas engajadas. Torcemos e buscamos contribuir para difundir este importante campo das humanidades, transdisciplinar por excelência, que abarca a arqueologia, antropologia, história, lingüística, literatura, sociologia, teologia, etc.

Temos alguns espaços com abertura e apoio à pesquisa, como na UFRJ, a Universidade Metodista em SP, a EST de São Leopoldo,algumas PUC’s, como a de Goiás, a UFJF, a UNB dentre outras cujo espaço não permite esgotar.


Agora, infelizmente, nos deparamos sobretudo na internet com algumas declarações que, numa atitude oportunista diante deste cenário, buscam querer imputar às suas posições particulares o caráter de ser “o estado da arte” dos estudos, e muitas vezes, fanfarronices que desrespeitam as demais pessoas que buscam acompanhar o campo de estudo, como se pensassem “estou numa terra de cegos, vou ser o rei de um olho a me lambuzar no melado”.


Com todo o respeito ao esforço do professor da UFRJ André Leonardo Chevitarese, ele é um que tenho visto em menções na internet exemplificar este tipo de atitude, e meu artigo aqui visa contribuir para que estas coisas tenham fim no Brasil. Para tanto, vou trabalhar em cima de um caso em que tal comportamento foi gritante.


Nesta resenha do livro “A Gruta de São João Batista”, ele trata de desancar o professor de arqueologia na Universidade da Carolina do Norte, Shimon Gibson, porque este apresentara posições contra as quais o prof. André tem um antagonismo passional e teleológico. Ele se esquiva e perde o foco em relação a matéria arqueologica propriamente dita.

O professor Gibson é mundialmente renomado, autor de uma prolífica publicação científica no campo, e referência em arqueologia de Jerusalém. Um de seus livros é o aclamado “Archaeological Encyclopedia of the Holy Land”. Acompanhou e participou em primeirão mão de muitas escavações e pesquisas de primeira magnitude no campo arqueológico.  Foi diretor do Departamento de Relatórios Científicos e de Pesquisa na Autoridade para Antiguidades de Israel, de 1995 a 1999.

Um curriculo assim, impressionante posta em paralelo com a do nosso professor André, já serviria para ele, pelo menos, ser mais comedido em críticas, e evitar o ad homine, em nome da respeitabilidade do debate acadêmico.


Chevitarese coloca:
Apesar das discussões trazidas por Gibson, como por exemplo, acerca dos rituais de limpeza judaicos ou sobre o culto em torno das imagens de um pé ou de pés no Oriente Próximo, sempre seguidas de indicações bibliográficas, verifica-se, de forma sistemática, o seu tratamento acrítico em relação à documentação neotestamentária (...)Pode-se mesmo dizer que lhe falta o equilíbrio.

A sobriedade levaria alguém a refletir que, uma pessoa capaz de dar tal tratamento, poderia ter suas posições não acríticas, mas com algum embasamento, ainda que discordantes da do prof. André. Nenhuma pessoa desanca a outra assim de forma tão descuidada, sem lhe dar o bônus da dúvida. Pode ser que André acredite que o minimalismo com relação ao N.T. seja a posição correta, contudo, não pode tropeçar nas suas próprias palavras, e “explorar ao máximo o seu lado sensacionalista, aproveitando a “infantilidade” do leitor para tudo o que diz respeito à religião, independentemente dos campos de experimentação”, buscando incutir que todos os grandes analistas seguem sua tendência, e não há aqueles que divergem dela.

Ele dá vários exemplos de como fica indignado com um tratamento não-minimalista. Não é de nosso interesse aqui discutir todos eles, mesmo porque não acompanho necessariamente o prof. Gibson em todos.

Há bons motivos para ser cauteloso e crítico quanto à narrativa do massacre das crianças por Herodes em Mateus. Mas o prof. André age como um amador apressado em se apoiar nisso:

Pode parecer incrível, mas em nenhum momento o autor se perguntou acerca do paralelismo entre esta história evangélica e aquela referente a Moises, contida no livro de Êxodo; esta relação seria obra do acaso ou uma clara intenção de Mateus em ler Jesus como sendo o novo Moises?

Primeiramente, o paralelo mais próximo a natividade de Mateus não é a história do Êxodo em primeira instância, mas de forma mais afastada. Jesus na narrativa da natividade não é um adulto com protagonismo nas ações, mas uma criança e agente passivo. Não faz nem realiza nada. Está ao reboque dos pais. Não é definitivamente, como Moisés na epopéia. Alguém pode considerar que o paralelo concentra no massacre das crianças - que pode ser lendário ou não. Seria como o eixo em que o resto se encaixa numa engrenagem a girar o mecanismo do "novo Moisés". Seria uma imagem tal qual os eixos das figuras das visões de Ezequiel. Ainda que forneça materiais para a psicanálise se debruçar que de um cesto no rio seguido por uma irmã e encontrado por uma egípcia emane uma família andando num camelo, temos que criar muitas hipóteses ad hoc para confabular uma saga de milhares de crianças massacradas em todo império, potenciais mão-de-obra para um faraó calculista preocupado com exércitos, com um punhado numa vila num momento em que Herodes estava massacrando inimigos até nos sonhos. Está para com isso o mesmo tanto que o peso da estadia e formação no Egito esteve para o Moisés da narrativa quanto o silêncio e mesmo desimportância da estadia do bebê Jesus no Egito em que mal sabemos se influenciou o próximo espirro que deu.

O paralelismo mais imediato é com a antiga Agadah da Páscoa, dos finais do século I a.C. [para conhecê-la melhor, ver L. Filkenstein: “The Oldest Midrash, Pré-Rabbinic Ideals and Teaching in the Passover Haggadah.”]. Chevitarese deveria ter conhecimento disto.

Nessa Midrash, o protagonismo é de Jacó, sendo que no início se abre com “O arameu procurou destruir meu pai”. Se faz aí um trocadilho mesmo entre Labão e Herodes, arameu e idumeu respectivamente ( com grafias parecidas, ‘rmy com ‘dmy), ambos considerados intrusos indesejados no mundo da fé.

Mas a perspectiva dentro do mundo do judaísmo diferia para os autores do evangelho e do agadah. Por exemplo, o evangelista tinha a perspectiva dos anjos como agentes mediadores para a transcedência de Deus e sua ação na Terra; o do agadah é cauteloso com a idéia – “Adonai trouxe-nos do Egito, não por meio de anjo, nem por mensageiro, mas pelo próprio Altíssimo, que seja bendito”, VII.1.

O quadro da agadah oferece a moldura para o relato de Mateus, mas não o seu conteúdo, independente do nível de historicidade que se dê para as diversas cenas da “fuga e regresso da Sagrada Família”.

Pulemos então de analisar caso por caso, para nos atermos a um panorama geral. Pois o panorama que se apresenta o tratamento do professor André ao pesquisador e membro sênior do Instituto de Pesquisa Arqueológica em Jerusalém, editor chefe por duas décadas do "Bulletin of the Anglo-Israel Archaeological Society" por adotar uma visão a qual Chevitarese tem indisposição ex ante, é absurdo. Ademais, no referido livro resenhado o professor Gibson rechaça por completo alguma historicidade na natividade de Lucas. Tal não se enquadra no retrato que de forma oportunista André quis pintar dele como um religioso acrítico por provar a Bíblia com a arqueologia.

Sofregamente, André Chevitarese chega a apelar em sua retórica a reverberando:
mantém a velha tradição editorial deste país de só publicar livros que reforcem a visão fundamentalista na forma de ler e interpretar o material neotestamentário.

Bem, fica claro para quem acompanha o professor que ele considera fundamentalista tudo o que não seja minimalista. Ainda assim, fica estranho para alguém pensar como em tal tradição se encaixa as publicações de Burton L. MackElaine Pagels, Haim Cohl, Santiago Guijarro , os diversos livros de Dominic Crossan, Bart D. Ehrman, e tantos outros? É definitivamente um apelo emocional descuidado.

O “X” da questão está na parte onde o professor André dispara agressivamente:
O clímax da superficialidade das análises documentais, acrescido da necessidade que Gibson tem de reforçar todo e qualquer vínculo entre a gruta de Suba e João Batista é atingido no seguinte ponto:
Acredito firmemente no conceito de longevidade da memória coletiva e no poder da tradição oral [...]” (página 205).        
Só mesmo os mais ortodoxos dos fundamentalistas abonariam uma posição como esta!


Nesta hora, não posso me esquivar de dizer, o professor brasileiro se comporta de forma extremamente imatura.

No livro lançado aqui “Os Últimos Dias de Jesus – A evidência arqueológica”, o professor Gibson fala de si mesmo:

Alguns leitores talvez achem presunção minha, um arqueólogo, escrever sobre o caráter, as realizações e os objetivos de uma personalidade tão importante quanto Jesus. Afinal de contas, bilhões de pessoas em todo o planeta o adoram como o Cristo, o Salvador e como o Filho de Deus. No entanto, minhas opiniões estão expressas aqui de forma sincera, com base em uma análise de dados históricos e arqueológicos a que tive acesso; não tenho interesse pessoal nem religioso de nenhuma natureza e, definitivamente, não desejo ofender ninguém, embora algumas das coisas que digo possam parecer radicais e controversas”.

Sobre os evangelho, ele apresenta sua opinião, que “foram adaptados, enfeitados e alterados pelos redatores" e, portanto, “pode ser perigoso usá-los de forma acrítica e indiscriminada”.
Pgs. 183 e 184.

O retrato que ele concebe de Jesus:
O Jesus histórico, creio eu, era um homem de família rural abastada da Galiléia, treinado em questões relativas a purificação por João Batista, alguém que acreditava em métodos de cura alternativos e talvez, até mesmo em um pouquinho de magia, alguém cujos discursos apaixonados e ensinamentos pouco convencionais assustaram as autoridades judaicas e romanas de tal maneira que estas decidiram tomar uma medida radical e executá-lo.“
Pg. 188

Somente um fundamentalista especular poderia abonar uma posição que considere tal pessoa um fundamentalista! Prof. Chevitarese acaba nos dizendo mais de si mesmo – e de seu fundamentalismo especular - do que do livro de Shimon Gibson.
 
Neste livro ainda, o professor Gibson reitera sua posição: “Pessoalmente, sou forte defensor da tradição oral (...)”. pg. 178. E ele apresenta uma referência de discussão a respeito de grande peso intelectual e insuspeita:
The Voice of the Past - Oral History”, monumental magnum opus do historiador top de linha Paul Thompson. Uma obra, excelência prima em historiografia, a qual Chevitarese nunca publicara algo que beirasse a sombra, de um historiador que, com todo respeito ao brasileiro, ele não desata as sandalhas.
Com isto, podemos concluir que a leitura de Gibson não advém de uma paixão cega para apologia – ele é cético – mas antes, de uma equilibrada e ponderada avaliação metodológica centrada. É uma perspectiva também coadunada com a obra da Jan Vansina e Maurice Halbwachs.

E se não bastasse, podemos pegar algumas referências nos campos dos estudos bíblicos neotestamentários similares, por parte de pesquisadores icontestadamente não-fundamentalistas, nem mesmo de alas mais conservadoras dentre os biblistas, consentâneos com este prospecto ante a tradição oral, obras também muito além de algo que o prof. Chevitarese tenha produzido, por parte de pesquisadores bem mais reconhecidos:

Os artigos clássicos “Middle Eastern Oral Tradition and the Synoptic Gospels”e “Informal Controlled Oral Tradition and the Synoptic Gospels” de Kenneth E. Baley.

O livro meticuloso “The past of Jesus in the Gospels”, de Eugene Lemcio.

Do prof. James D.G.Dunn, o volume 1 da monumental coleção “Christianity in the Making” – Jesus Remembered.

Por Samuel Byrskog, famoso pelo seu agudo rigor,  “Story As History, History As Story: The Gospel Tradition in the Context of Ancient Oral History”.

O respeitadíssimo professor de Cambridge Graham Stanton, “The Gospels and Jesus”.


De Richard Bauckham, o marcante “Jesus and the Eyewitnesses: The Gospels as Eyewitness Testimony.

O recente “The Historical Jesus of the Gospels”, De Craig S. Keener.

É claro que eu, um leigo, não cairei no mesmo erro de Chevitarese e dizer que quem está antenado com o mundo das pesquisas precisa ter essa perspectiva, quem não tem, não está. Ótimas obras de igualmente excelentes estudiosos discordam. Contudo, o mínimo a que se pode concluir é que no atual momento do Brasil, é preciso ser muito cuidadoso com as declarações que se lê a respeito do estudo de “Jesus histórico”. E o prof. André Chevitarese atraiu muita suspeita quanto aos seus pronunciamentos e trabalhos.

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    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
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