Uma figura mitológica que há tempos vem atraindo a atenção do movimento feminista é a suposta primeira esposa de Adão, a chamada Lilith. De acordo com o alegado, Lilith teria sido suprimida dos antigos textos, devido à ascensão de uma estrutura de poder patriarcal falocêntrica, tanto no judaísmo quanto no cristianismo. A figura feminina extremamente forte representada por Lilith teria dado lugar a uma submissa Eva. Mas enfim, teriam tais alegações alguma real procedência? Vamos investigar um pouco sobre o tema.
Inicialmente, devemos pontuar que Lilith é um ser extremamente controverso, cheio de várias facetas (e por isso mesmo, extremamente interessante). Na Bíblia, de fato, há apenas uma passagem citando Lilith, que se encontra em Isaías 34:13-15:
"Nos seus palácios crescerão espinhos,
urtigas e cardos, nas suas fortalezas:
ela servirá de morada para os chacais,
de habitação para os avestruzes.
Os gatos selvagens conviverão aí com as hienas,
os sátiros chamarão os seu companheiros. Ali descansará Lilit,
e achará um pouso para si.
Ali a serpente fará o seu ninho, porá os seus ovos,
chocá-los-á e recolherá à sua sombra a sua ninhada."
[trad.Bíblia de Jerusalém]
Este trecho se refere ao chamado "Julgamento de Edom", sendo que os capítulos 34 e 35 de Isaías são frequentemente chamados de "pequeno apocalipse". No nosso trecho específico, percebemos a formação da Morada Lúgubre, o local onde Lilith habitará. Trata-se do contrário do paraíso mostrado em Isaías 11,1-9.
Mas afinal, quem é Lilith? Bem, essa pergunta não permite apenas uma resposta, dada as variadas versões acerca deste ser. Provavelmente a mais antiga fonte conhecida sobre a figura de Lilitth se encontra na Epopéia de Gilgamesh. Temos duas passagens. A primeira quando se fala da genealogia de Gilgamesh, o qual seria o quinto rei da cidade de Uruk [Arac ou Erech em Gênesis 10,10]:
“Gilgamesh, cujo pai foi um Lil-la, um sacerdote de Kullab [=quartel de Uruk], reinou 126 anos.” [fonte:KLUGER, Rivkah. O Significado Arquetípico de Gilgamesh, p.28.
A análise de Kluger recorre à tradução de Contenau, que julga que o termo Lil-la esteja vinculado ao termo Lil-lû, que é um demônio. “A sua contrapartida feminina, Ardat-lil-li, é um súcubo perigoso para os homens. Por sua vez, Lil-lû é um incubo, que teria se unido à mãe de Gilgamesh, a deusa Nin-Sun, uma sacerdotisa do deus-sol Shamash, sem o conhecimento do seu esposo, o divino Lugalbanda. Assim, Gilgamesh seria filho de uma deusa e de um demônio.”[KRUGLER, p.29] Diferente, no entanto, da passagem da bíblia e da tradição judaica, temos aqui um demônio masculino ao invés de um feminino. Essa outra passagem nos mostra Litith como um demônio, que constrói sua casa no tronco de uma árvore.
Foi encontrado também nos Manuscritos do Mar Morto uma passagem sobre Lilith, mostrando-a como demônio. No caso específico, Lilith aparece no plural, como demônios.
No Talmud encontramos já uma referência entre a ligação entre ela e Adão. Porém, é somente no chamado Alfabeto de Ben-Sirah que encontraremos a lenda de Lilith como sendo a primeira esposa de Adão. Trata-se de um livro medieval, não fazendo parte dos Midrash ou do Talmud e sua ligação com o judaísmo tradicional é, no mínimo, problemática, como podemos ver aqui.
Na compilação das lendas judaicas realizada por Bin Gorion, temos algumas interessantes passagens sobre Lilith:
“Depois que o Senhor criou Adão, disse: não é bom que o homem esteja só. E da terra com a qual formara Adão, fez uma mulher e a chamou de Lilit. Logo depois os dois tiveram uma desavença e Lilit disse: És apenas meu irmão, ambos fomos tirados da terra! – E um não acatava a palavra do outro. Quando Lilit viu que não tinha paz, proferiu o verdadeiro nome de Deus e levantou vôo.”[GORION, p.52]
Outra lenda:
“Depois que a primeira luz da Criação foi encoberta, foi criada a Kelipa, a maldade original. E da Kelipa surgiu um ente duplo, que se assemelhava a ela (Semael, o mau espírito, e Lilit, sua mulher.”[GORION, p.53]
“Mas depois que Adão e Eva cometeram o pecado, o Senhor tirou Lilit novamente das profundezas do mar e lhe concedeu o poder sobre a vida das crianças; deveriam sofrer os castigos pelos pecados de seus pais.”[GORION, p.53]
Outra lenda:
“Mas enquanto Adão estava separado de Eva por cento e trinta anos e dormia sozinho, Lilit o encontrou e desejou sua beleza. Ela deitou-se a seu lado e dele concebeu um sem-número de diabos, espíritos e demônios.”
Dessa forma, creio ter sido possível traçar algumas pistas para uma futura e mais detalhada investigação. Inicialmente, Lilith era tida basicamente como um demônio. Foi apenas a partir da idade média que encontramos uma nova conformação mítica em torno deste personagem. Lilith, principalmente por sua criação oriunda da mesma terra da qual Adão foi criado e por sua não-submissão a este, muitas vezes é utilizada como um arquétipo de mulher independente. Porém, justamente por essa independência e por atitudes fortes, acaba sendo punida pelo criador. Dê uma pesquisada nessas fontes.
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