Retomemos nossa reflexão anterior, a respeito da relação epistemológica e metodológica entre 'estudos religiosos' e 'teologia', continuando com o gancho no fragmento do comentário de Max Weber.
Weber, advogando sua clássica posição da neutralidade axiológica e valorativa no fazer ciência social, nos deixa algo como uma confissão contrita: não há por onde escapar de se fazer escolhas... Uma adoção automática, nos remeteria próximo ao postulado de Douglas e Knoll’s. Os 'estudos religiosos' não seriam adequados à busca de uma posição teológica, cabendo às disciplinas teológicas, desvelarem a 'estrutura última' das avaliações, buscando seu significado no comprometimento religioso...
Agora, essa escolha, feita na hora de se tomar uma decisão na esfera de ação, não retroage e retro-alimenta, na prática, o próprio labor investigativo, mesmo o do acadêmico de 'estudos religiosos'? Essa postura em si, de advogar a neutralidade, não se imiscuiria numa visão filosófica particular do empreendimento societal? Aonde alguém, engajado no cotidiano de universidades e grupos de pesquisa sob orientadores, conseguiu ver tal neutralidade?
Em relação ao que falamos sobre o realismo crítico...os pesquisadores e estudiosos não assumem preferências por determinados modelos conceituais em detrimento de outros, não deixam sobressair determinadas ferramentas preterindo outras, e não interagem nisso com conhecimentos prévios selecionados, ou em escala diferente de pesos? Ao se depararem com anomalias, não existem aqueles que dão mais peso (quantitativo ou qualitativo) a determinadas anomalias para derrubarem uma teoria, outros a determinadas injunções ou descobertas para construírem uma teoria, entre si?
Em alguns, determinado paradigma é mais recalcitrante, em outros, menos? E o Zeitgest – ambiente cultural delimitado - não entra nisso? Ou existem aqueles desprovidos ou imunes a tal? Lembro de Albert Camus apontando no livro 'O Homem Revoltado' que mesmo uma fotografia não era algo neutro e objetivo, pois o fotógrafo decide enquadrar, delimitar espaço-temporalmente e focar algo da realidade – que é algo muito mais amplo e menos estático do que o mundo exterior onde está o fotografado - que não coincidem, evidentemente, com as molduras intrínsecas (quais seriam?) da própria.
Também, não necessariamente um artigo, texto ou trabalho, desprovido de tom militante, e mais circunspecto, implica que seja mais imparcial. Perfeitamente vemos nesse campo, ironias sutis, sarcasmos velados, 'tapas de luva', termos escolhidos meticulosamente para que, evitando perder o ar puramente acadêmico, sirvam para provocar um seguimento, ou entusiasmar adeptos de idéias.
Isso significa que o campo então deve ser aberto e entregue a manifestações panfletárias, ou que somente podemos ver guerras de trincheiras sem arbítrio entre si? Não. De forma alguma.
Na minha formação acadêmica em agronomia pude estudar estatística básica e estatística aplicada. Envolvem instrumentais de controle e rigor para as ciências. Confere a elas um caráter mais democrático. É claro que um pesquisador renomado, uma sociedade científica, possui um peso considerável num debate a respeito de um tema, e para fortalecer um paradigma ante anomalias. Contudo, o teste estatístico, que averigua a variância, margem de erro, amplitude, etc., é objetivo, e qualquer um pode desbancar uma tese se mostrar que há erro num cálculo simples no 'Teste de Tukey'. Nos campos de estudo compreendidos na presente temática, lidamos com variáveis, elementos e 'objetos' de estudo muito menos passivos de controle, sujeitos e mesmo requerentes de uma maior extrapolação. Com isso, o elemento de controle correspondente deve ser a lógica e análise retórica.
Eruditos elencam dados. Um leigo pode analisar seu escrito e dizer 'tal dado, com aquele outro, não levam necessariamente a tal conclusão', ou 'tal conclusão não corresponde a uma seqüência lógica a partir disso', ou 'aqui há mais retórica e menos concisão'; diversos escritos imensos, com um escopo de notas de rodapé maior do que o corpo de texto (algumas vezes nos deixando intrigados do por que elas não estão inseridas no corpo do texto, pois perfeitamente seguem sua seqüência), podem padecer de problemas como 'imagens semi-aderentes', 'médias unidimensionais', etc. Isso serve como um imperativo do qual os pesquisadores nesse campo não podem se escusar, o cuidado retórico, auto-crítica e o apreço pela boa disposição silogística dos argumentos.
Voltemos ao texto de Weber. Ele escrevera: As disciplinas filosóficas podem ir mais longe e revelar o ‘significado’ das avaliações, isto é, sua estrutura última e suas conseqüências significativas.
Poderíamos estabelecer, daí, com cuidado, uma relação então entre a 'teologia', ocupando o lugar aí das 'disciplinas filosóficas', e os 'estudos religiosos', ocupando o lugar das 'avaliações'? Seria enfim questão da separação entre 'ciências básicas' e 'ciências aplicadas', com a 'teologia' ocupando o lugar da segunda?
Eu sugiro que, em termos, e sem fronteiras rígidas, isso pode ser aproveitado na tarefa de se indicar um caminho menos míope.
Isso tem sim a ver, mas não pode ser delimitado assim com tal clivagem. Debrucemo-nos sobre a interface 'biblistas/teólogos'. Um biblista, por exemplo, fornece grandes materiais para um teólogo, sem precisar de ser um. Assim também um lingüista, etc. Mas, por outro lado, um conhecimento de trabalhos teológicos pode ser indispensável para análises lingüísticas de materiais religiosos.
Podemos dar um exemplo. Bart Ehrman, no meu ponto de vista, é primeiramente um grande biblista, que faz também teologia acadêmica. N.T.Wright, vejo-o primeiramente como um teólogo, que também é um grande acadêmico biblista. Ambos produzem pesquisas de qualidade, de alcance amplo e acessível para o ambiente dos pesquisadores. Mas podemos pegar a tônica geral dos seus trabalhos e ver que predomina um compromisso em ambos, em Bart, com o agnosticismo, em Tom, com o cristianismo.
E, afinal, 'quem decide' o que vai ser básico e o que vai ser aplicado? Frequentemente, aquele que propriamente produz o material é o que tem o menor poder de decisão. As pessoas podem pegar recortes de pesquisas dos biblistas dando-as orientações aplicadas, sem passar pelo trabalho de um 'teólogo', e podem encostar um trabalho teológico de lado sem aplicá-lo a nada, ou apenas decorando-o sem enxergar uma aplicação, ou podem mesmo usar um trabalho teológico para subsidiar ou suscitar uma investigação de cunho biblista.
Eu diria que, mais apropriadamente, mas com cuidado, podemos enxergar no papel dos 'estudos religiosos' uma tônica, preponderantemente (mas não exclusivamente) analítica, e no trabalho de 'teologia', uma tônica preponderantemente (mas não exclusivamente) sistematizadora. ‘Estudos religiosos’ primariam pela decomposição em partes para esmiúçá-las em cada elemento que se apresentar, ela parte do mais composto para o mais simples, investiga através de uma divisão em partes menores para que possam por seu instrumental, serem observadas e compreendidas, busca mais a ‘análise’. ‘Teologia’ teria como procedimento norteador a preocupação inversa, combinar os elementos num produto global de conhecimento, busca mais a ‘síntese’. A teologia tentaria elucidar também o sentido ou o significado que estas investigações, inclusive quanto às experiências das comunidades e tradições que vivenciam o fenômeno religioso, poderiam proporcionar. Isso, enfatizando o termo 'preponderantemente', para indicar que não implica que alguém de um campo ou outro se atenha somente à análise ou síntese.
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