Primeiramente, como se deu a prisão? Quem prendeu Jesus, segundo o testemunho joanino?
Nessa noite especial, nos tempos das celebrações pascais, Jesus e seus discípulos permaneceram em imediações hierosolimitas, conforme Deuteronômio 16.4-5. Assim, havia um foco de lugar em que os que conspiravam para prendê-lo teriam em mente. Estavam sendo escoltados por Judas. Poderia ser uma cilada? Bem provável...
Passaram pelo Vale do Cedrom, cujo termo literal significa “Cedrom em cheia pelo inverno”[1]; no período que se presume ter acontecido o episódio, março-abril, estaria então raso e fácil de atravessar. Lucas 22.9 sugere que não seria a primeira vez que Jesus e seus discípulos se reuniam lá.
E a tropa destacada?
Há uma grande dificuldade com esta passagem. O Termo que João emprega para “destacamento”, peira, era um termo que comumente se referiria a décima parte de uma legião romana, assim, 600 homens!! Em demais passagens no Novo Testamento, reporta-se a coortes sob o comando de um tribuno – chiliarchos. Ainda que na província romana da Judéia houvessem cinco coortes romanas, como a da famosa fortaleza Antonia, seria plausível o cenário de uma tropa romana deste contingente em uma operação de prisão de um sujeito que até então era desconhecido de Pilatos, e ainda por cima terem levado à casa de Anás – que não era o sumo-sacerdote daquele período, tendo sido deposto por Roma em 15 a.C.???
E como é uma hipótese muito provável que João conheça, de forma independente, tradições antigas relacionadas nos Sinópticos [2], como somente ele destacaria a coorte romana, e nas outras tradições não?

Marcos comenta que fora uma grande multidão armadas de espadas e varas, enviadas pelos chefes dos sacerdotes e demais lideranças religiosas. Lucas fala somente de chefes dos sacerdotes e da guarda do Templo. Craig Keener apresenta uma discussão aprofundada sobre o termo mostrando que a linguagem geral também fora usada igualmente para unidades judaicas [3].
Realmente teria havido uma queda dos soldados simplesmente ao ouvir Jesus pronunciar uma associação com a auto-revelação divina a Moisés na Sarça Ardente: “Eu Sou” – Êxodo 3.14? Craig Keener também aponta que nessa época, acreditava-se que os feiticeiros usavam a pronúncia do nome divino para disparar conjuras [4]. Dada a busca de imputar ao ministério de milagres de Jesus o agir dos demônios através dele ou sendo mesmo um feiticeiro, um mágico, é altamente sugestivo.
Mas também há outro cenário. O que se apresenta é que Jesus esperava ser entregue, e estava de prontidão. Os soldados ao se depararem com esse inesperado - ele assim, de peito aberto [no relato eles respondem “a Jesus, o Nazoreu” de uma forma que ressalta que eles nunca esperariam uma situação como aquela, mas um ataque de surpresa], então poderiam ter imaginado uma emboscada e uma luta violenta naquele lugar inóspito, por parte de guerrilheiros escondidos, ferozes e armados. O escritor destaca “e Judas estava com eles” não teria sido à toa. Dessa forma, se visualiza melhor a impressão neles de ter sido uma cilada. “Fomos pegos”. De fato, já era em um contexto em que finalizara a missão dos discípulos na qual estavam incubidos de não levar armas, e os relatos mostram que pelo menos um deles (Pedro?) reagira disposta a um combate armado. Possivelmente, o discípulo pode ter aproveitado para conferir uma associação de peso teológico.
A cena de um encontro irregular informal dos líderes religiosos, numa tonalidade de intriga destacada em João, ante a audiência formal que é a que mais parece nos Sinóticos antes do Conselho Judaico, possui uma plausibilidade maior [5]. Não seria uma audição central tal qual diante do conselho presidido pelo verdadeiro sumo-sacerdote daquele ano, Caifás, mais à frente mencionado em João. O termo “primeiramente”, no versículo 13, dá a entender que o escritor trata de um quadro maior em que mais audiências viriam. Se encaixa com o pano de fundo mais ampliado, com a trama política envolvendo o poder no Templo. Cinco dos filhos de Anás foram sumo sacerdotes, a despeito da deposição, e Caifás, seu genro, o fora nomeado por peso de seu poder e influência, sob seu auspício[6]. E muitas vezes Anás exercia o poder de fato. Nada excepcional ser referido e tratado ainda então como sumo-sacerdote, havendo precedente no judaísmo: se podendo ver no “Guerras Judaicas”, de Josefo, 2.12.#243, e no material Horayot 3.1,2,4, um tratado presente no Talmud que fala sobre precedentes antigos assim [7].
Assim, podemos ver Anás jogando com o fato de que o cargo era vitalício e, apelando para o nacionalismo e o rancor pela dominação romana, invalidar sua deposição para legitimar seu poder de fato. Que ele exercia seu poder, também através de sua riqueza [Josefo, Antiguidades 18.2.2#34; 20.9.1#243] [8], é atestado pela literatura judaica em que seus sucessores o desancam. A imagem que eles passam dele referenda o abuso de se sobrepor ao costume de submeter processos que remetia a penas capitais a uma coorte de juízes – acima de 23 – [9] e atuar como juiz, ainda mais que o costume remetia à tradição farisaica, e assim submeter Jesus a um interrogatório, procedimentos e uma condução de julgamento arbitrários. Os fios da trama começam a se entrelaçar em uma rede, levando a, ou montando o quadro coerente para a crucificação.
Referências/Indicações:
[1] Joel B. Green – Gethsemane. Em : Joel B. Green, Scot McKnight, Howard I. Marshall – orgs. “Dictionary of Jesus and the Gospels”.
[2] Raymond Brown, John XIII-XXI p.787-791
[3] Craig Keener - The Gospel of John: A Commentary p.1078;
[4] Keener, op.cit., p. 1081
[5] Ed Parish Sanders, Historical Figure of Jesus, p. 72
[6] Bruce M. Metzger e Michael David Coogan (Editores) The Oxford Companion to the Bible p. 97
[7] Raymond E. Brown, The Death of the Messiah p. 398-428
[8] Donald P. Senior, “The Passion of Jesus in the Gospel of John”. p. 46-64
[9] Keener, op. cit., p. 1089
3 comentários:
Muito bom texto, Rodrigo.
Este confronto entre o grupo de Jesus e as tropas armadas sempre me intrigou.
No mais seria importante você citar os textos referentes a Anás para corroborar a sua hipótese.
Por fim, gostaria de te pedir uma coisa para o padrão gráfico do blog. Aquela imagem no meio está "flutuando". Coloque-a em um dos lados no meio do texto, please.
Abração!
Obrigado, chefe!
Reposicionei a imagem lá, Flávio. Para as referências aos textos de Josefo, explicitei a obra do Brown.
Para a Horayot, mudei o link lá, e esse direciona para as citações dos capítulos comentadas, e mais à frente também outro para um e-book que trata delas mais exaustivamente.
Até
Valeu por reorganizar a foto. Isso é herança da época que trabalhava com design. É só para ficar no padrão.
:)
Quanto às referências, creio que seria legal se você pudesse inseri-las junto ao seu texto.
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