quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Anotações AdCummulus 013 "Os da Casa de César Te Saudam - Parte 7 - Soldados de Cristo

Em nossa série sobre o processo de expansão do cristianismo no Império Romano, e sua capilaridade nas elites do Império, discutimos de alguns casos precoces de conversão ainda no primeiro século (um deles, possivelmente, o próprio Erasto de Corinto, citado em Romanos 16:23).  Escravizados libertos que se tornaram influentes nos círculos imperiais já no final do século II e início do século III e, no mesmo período, participantes na administração imperial em Roma e nas províncias. A virada para um governo favorável ao cristianismo foi prenunciada 100 anos antes de Constantino na corte do Rei Abgar VIII de Edessa, com seus conselheiros Bardasanes e Julio Africano. Apesar dessa infiltração e progressão nas elites do Império, o cristianismo ainda era um culto não reconhecido pelas autoridades, citado por Tácito, Plínio e Suetônio como uma superstitio (superstição) "nova" e "prada" (perigosa), perigosa justamente por ser nova, o que se evidencia na perseguição intermitente, que surge aqui e ali em locais e períodos específicos, que levaram a prisão, tortura e martírio. Por fim, tratamos das primeiras evidências materiais do cristianismo, na forma de inscrições funerárias de líderes religiosos e de uma das mais antigas igrejas do mundo, justamente em quartel de uma legião romana. E é nas legiões romanas, que emergem alguns dos mais eloquentes registros dos antigos cristãos, como veremos a seguir..

Os cristãos primitivos e o exército romano

Francisco Trevisani (1709), 
Por volta do final do século II, Tertuliano, descreve o caso de um soldado cristão, que tendo sido honrado com os louros da vitória por seus comandantes, teve de recusar as honras pagãs, sendo objeto de zombaria, destituído de seu posto, preso e martirizado:

Enquanto a generosidade de nossos mais excelentes imperadores era distribuída no acampamento, os soldados, coroados de louros, aproximavam-se. Um deles, mais soldado de Deus, mais firme que os demais irmãos, que imaginara poder servir a dois senhores, só com a cabeça descoberta, a coroa inútil na mão - já até por aquela peculiaridade conhecida de todos como cristão - era nobremente visível. Assim, todos começaram a marcá-lo, zombando dele à distância, rangendo-o perto dele. O murmúrio é levado até a tribuna, quando a pessoa acaba de deixar a hierarquia. O tribuno imediatamente lhe pergunta: Por que você está tão diferente em suas roupas? Ele declarou que não tinha liberdade para usar a coroa com os demais. Sendo questionado com urgência sobre suas razões, ele respondeu:   Sou cristão [1]


Tertuliano crítica, portanto, cristãos alistados em legiões, pois, mais cedo ou mais tarde, teriam que participar de cerimonias, juramentos, ou até honrarias, em que haveria rituais pagãos, além do status ilegal da fé cristã.  No entanto, os evangelhos descrevem Jesus curando o servo de um centurião (Mateus 8:5-13 e Lucas 7:1-10, uma perícope possivelmente parte de uma fonte comum, anterior aos dois evangelhos, a fonte Q), bem como Pedro prega ao centurião Cornélio e sua família (Atos 10).  Além disso, em sua Apologia, ele atesta que já no tempo do Imperador Marco Aurélio (161 - 180 DC), muitos cristãos serviam o exército romano.

Longe disso, nós, pelo contrário, trazemos diante de vocês aquele que foi seu protetor, como vocês verão examinando as cartas de Marco Aurélio, o mais grave dos imperadores, nas quais ele presta testemunho de que aquela seca germânica foi removida. pelas chuvas obtidas através das orações dos cristãos que por acaso estavam lutando sob seu comando [2]

O episódio referido por Tertuliano, ocorreu em uma campanha do Imperador nas proximidades do rio Danúbio, provavelmente na atual Eslováquia, contra os QuadiProfessor Ronald Syder, do Palmer Theological Seminary (1939-2022) assim descreve o evento:

"In approximately AD 173, Marcus Aurelius Antoninus, Roman emperor from 161-80, and his troops experienced a "miraculous" victory over a vastly larger army of German invaders near the Danube River. Much about the incident is uncertain. But credible Christian and Roman sources tell of an unexpected rainstorm and thunderstorm that saved the exhausted, third-stricken, vastly outnumbered Roman army. We have even discovered a column erceted in Rome sometime after AD 176 that depicts miraculous weather, must have occured. Whereas the Roman sources attribute the miracle to pagan gods, almost all Christian writers say the miracle was the result of the prayers of Christian soldiers in the emperor's army. (Tradução) Aproximadamente em 173 d.C., Marco Aurélio Antonino, imperador romano de 161-80, e suas tropas experimentaram uma vitória "milagrosa" sobre um exército muito maior de invasores alemães perto do rio Danúbio. Muito sobre o incidente é incerto. Mas cristão confiável e Fontes romanas falam de uma tempestade inesperada e trovoada que salvou o exército romano exausto, sofrendo de sede e em grande desvantagem numérica. Foi descoberta uma coluna erguida em Roma algum tempo depois, em 176 DC, que retrata uma virada de tempo milagrosa, que deve ter ocorrido. Enquanto as fontes romanas atribuem o milagre a deuses pagãos, quase todos os escritores cristãos dizem que o milagre foi o resultado das orações dos soldados cristãos do exército do imperador [3]


O relato cristão mais antigo do evento é o do Bispo Apolinário Cláudio, de Hierapólis (atual Pamukale, Turquia), que no ano 177 DC escreveu uma Apologia (defesa) da fé cristã ao Imperador Marco Aurélio, evocando a experiência daquele  Imperador com suas tropas anos antes, atribuindo a vitória as orações dos soldados cristãos de uma de suas legiões. A Apologia de Apolinário não sobreviveu aos tempos atuais, mas fragmentos contendo a história foram preservados por citações na História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia. O relato de Apolinário é ainda mais relevante pois a legião envolvida, a XII Fulminata, estava estacionada nessa época em Melitene, na Capadócia (atual Turquia), região vizinha da Frígia, onde ficava Hierapólis. De toda forma, Cassio Dio, um dos principais autores da Roma Imperial, escrevendo entre 220-230 DC, atribui o milagre a ação de um mágico egípcio, que acompanhava o exército romano. 

Two of the Christian sources (Tertullian and Apollinarius) are dated within twenty-five years of the event. Both these Christian authors say the Christian soldiers were from the Twelfth Legion (Legio XII Fulminata), normally stationed at Melitene in Armenia (Central Turkey today). We known from epigraphical evidence that parts of this legion were in the Danube region at this time. We also Known that were christians in the area of the legion's home base. Also significant is the fact that Apollinarius was bishop at this time, in a area not too far from the legion's home base. It is highly likely, therefore,  that were Christian soldiers present at this important battle" (Tradução)  Duas das fontes cristãs (Apolinário e Tertuliano) são datadas de até vinte e cinco anos após o evento. Ambos os autores cristãos dizem que os soldados cristãos eram da Décima Segunda Legião (Legio XII Fulminata), normalmente estacionada em Melitene, na Armênia. (Turquia Central hoje). Sabemos por evidências epigráficas que partes desta legião estavam na região do Danúbio nesta época. Também sabíamos que havia cristãos na área da base da legião. Também significativo é o fato de Apolinário ser bispo nesta altura, numa área não muito longe da base da legião. É altamente provável, portanto, que soldados cristãos estivessem presentes nesta importante batalha" [3]

É bastante plausível que uma tropa cercada, sem suprimentos, em território hostil e inferior em número frente ao inimigo, pressentindo uma derrota iminente (e com risco de ser massacrada), apele a intervenção divina. Considerando a composição multiétnica e multireligiosa das legiões, provavelmente varias divindades foram invocadas. Os cristãos presentes certamente buscaram a intervenção divina no evento, e interpretaram os acontecimentos como milagre. Marco Aurélio era um estóicoCerca de 150 anos antes, o Apóstolo Paulo usa em seu sermão no Areópago em Atenas (Atos 17) o conceito de Deus naquele que "vivemos, movemos e existimos, e de que também somos geração", encontrado nos filósofos gregos Epimenides, Arato, e Cleanto. e a visão religiosa do Imperador pode ser aproximada a essa concepção, conforme Professor Peter Kovacs, da Universidade Católica Pázmány Péter de Budapeste "Uma divindade abstrata, que se adequa perfeitamente com as atitudes de Marco Aurélio, como evidenciado, por exemplo, pelo Imperador Filósofo após sua vitória no ano 171" [4].  

Há também evidência arqueológica sólida de que cristãos serviam o exército já no início do século III. Como já mencionamos em um post anterior desta série, cerca de 60 anos depois dos eventos envolvendo a XII Fulminata e o Imperador Marco Aurélio, por volta de 230 DC,  temos evidência clara de soldados cristãos e seus familiares que se reuniam na base da VI Legião, em Megido (Israel), como o centurião Gaiano e Aktepous (possivelmente uma viúva), que dedica um memorial ao "Deus Jesus Cristo", no que é um das mais antigos santuários cristãos conhecidos.

Além disso, a XII Fulminata tinha sua base geográfica no que hoje é a atual Turquia,  numa das áreas de maior concentração de cristãos. Como observamos aqui no adcummulus em um post anterior desta série, sobre o magistrado romano Marcos Demetrianos 

"(...)  A região formada pelas antigas províncias romanas da Ásia Menor, Frigia, Galácia, Bitínia e Ponto, Cilícia e Capadócia, correspondente a atual Turquia, constitui, possivelmente, a mais relevante fronteira de expansão do cristianismo primitivo. Conforme Atos dos Apóstolos, a primeira, segunda e terceira viagem missionária de Paulo atravessaram estes territórios. Paulo estabeleceu residência por alguns anos em Éfeso, e escreveu aos Gálatas. O apocalipse foi dirigido "às sete igrejas da Ásia". Mesmo considerando textos do Novo Testamento cuja autoria seja questionada pela maior parte dos estudiosos, como  a carta de Paulo a Igreja de Colossos (50-80 DC) e 1ª Pedro (80-110 DC), que faz menção aos peregrinos do Ponto, Ásia, Galácia, Capadócia e Bitínia, se infere a presença de congregações estabelecidas e capilarizadas no final do século I DC".

Plínio, o Moço, em sua carta ao Imperador Trajano, ainda no ano 110 DC, alerta em relação ao crescimento da "superstição" cristã na Bitínia, "especialmente devido ao número de pessoas que estão em perigo; pois há muitos de todas as idades, de todas as classes e de ambos os sexos, que agora e no futuro provavelmente serão chamados a prestar contas e estarão em perigo; pois esta superstição se espalha como um contágio, não apenas nas cidades e vilas, mas também nas aldeias rurais, que ainda assim há motivos para esperar que possam ser interrompidas e corrigidas". 

O número de inscrições funerárias com algum indício cristão nessas regiões da atual Turquia era muito elevado já no século III, evidenciando que constituíam parte significativa da população, que torna plausível que uma legião ali estacionada tivesse um número significativo de cristãos alistados.  Frank Tombley (1947-2015), que foi professor da Universidade de Cardiff, observa que a maior parte das inscrições cristãs pré-constantinianas se concentram na cidade de Roma, na Frígia, no Norte da África e nas proximidades de Siracusa (Sicília) [5]. Na cidade de Eumêneia (Frígia), a julgar pela evidência epigráfica das inscrições funerárias, o número de cristãos superava o de pagãos no final do III século, tendo cunhado inclusive uma fórmula particular "ele comparecerá diante do Deus vivo". [5]. Por exemplo, em Eumeneia temos a tumba de Aurélio Manos, soldado que chegou ao posto de draconário ( que carregava o dragão, o estandarte das tropas de cavalaria), datada entre 275-300 DC.

Aurélio Niceros segundo preparou esse santuário para ele, sua esposa e seus filhos, e eu fiz meu próprio santuário. Aqui jaz Aurelius Manos, soldado, cavaleiro, arqueiro e portador do estandarte do dragão no estado-maior do mais destacado general Castorius Constans. E quem cuida deste túmulo, você está sobre os olhos de Deus.[5]

A inscrição acima, e as demais citadas nesse post podem ser consultadas na excelente database no site  Christian soldier – Database of Military Inscriptions and Papyri of Early Roman Palestine, mantida pelo Professor Christopher Zeichmann, da Universidade Metropolitana de Toronto, e sua equipe. As inscrições e outros monumentos antigos são publicadas e atualizados periodicamente no Monumenta Asiae Minores Antiqua(MAMA).

Anteriormente, já haviamos discutido inscrições comuns nas áreas rurais da Frígia, com a fórmula "cristãos para cristãos", bem como trazido o trabalho do Professor Stephen Mitchell,(Universidade de Swansea, 1948-2024), citado por Willian Tabernee, indica que na Galácia, perto das cidades de Lista e Derbe (Atos 14), um grande número de inscrições cristãs, muitas com datação anterior a 260 DC (Mitchell 1993, 2:58-59), foram encontradas nas proximidades do Vale do Rio Çarşamba (MAMA 8.100, 116, 118–20, 131, 158–59, 161–65, 167, 199). Uma análise desta e de outras inscrições da área demonstrou que aproximadamente um terço da população deste região específica era cristã antes de 260, aumentando para 80 porcento durante o quarto século (Mitchell 1993, 2:58). Isto é comparável com as estatísticas do Vale do Tembris Superior na Frigia onde as inscrições "de cristãos para cristãos" foram produzidas e onde 80 por cento das sepulturas datadas entre 280 a 310 indicam explicitamente cristianismo.

Assim, boa parte da evidência referente a soldados cristãos surge justamente nessas mesmas regiões.

Marcus Julius Eugenius - Soldado, magistrado, perseguido, torturado, bispo. 

Professor Frank Tombley, reflete sobre a consolidação dos cristãos nos círculos da elite romana ao longo do século III, particularmente no período da Tetrarquia instituída por Diocleciano (284-305 DC).

"In the waning years of tetharchy, there were christians in every sector of social, economic and cultural life. Christians grammarians, rhetoricians and philosophers - like Arnobius of Sicca, Lactantius and Gregory Thaumaturgus practised their professions at important urban centers. Men of grammatical education served as civil servants (Caesarini) in the offices of the imperial palaces, provincial governments ans imperial estates (tradução) Nos últimos anos da tetrarquia, havia cristãos em todos os setores da vida social, econômica e cultural. Gramáticos, retóricos e filósofos cristãos - como Arnóbio de Sicca, Lactâncio e Gregório Taumaturgo exerceram suas profissões em importantes centros urbanos. Homens de educação gramatical serviram como funcionários públicos (Caesarini) nos escritórios dos palácios imperiais, governos provinciais e propriedades imperiais.[6]

Marcos Júlio Eugênio era um desses homens. Natural de Laodicéia Combusta (atual Turquia), era de uma família de elite provincial, casado com a filha de um senador romano, detentor de carreira irretocável no exército e no staff do governador da província, até que foi atingido pela grande perseguição. Após ser torturado e ter que deixar a carreira militar por sua fé, Eugênio se dedica ao serviço da Igreja. Sabemos disso através de uma inscrição funerária extremamente detalhada.

 Marco Júlio Eugênio, filho de Cirilo Celer de Cuesso, membro do senado de Laodicéia, tendo servido ao governador da Pisídia e tendo se casado com Flávia Júlia Flaviana, filha de Caio Júlio Nestório, um homem de posição senatorial romana; e tendo servido com distinção; e quando, entretanto, foi dada a ordem no tempo de Maximino de que os cristãos deveriam oferecer sacrifícios e não abandonar o serviço, tendo suportado muitas torturas sob Diógenes, governador da Pisídia, e tendo conseguido abandonar o serviço, manter a fé dos cristãos; e tendo passado um curto período na cidade dos laodicenses; e tendo sido feito bispo pela vontade de Deus Todo-Poderoso; e tendo administrado o episcopado por 25 anos completos com grande distinção; e tendo reconstruído desde sua fundação toda a igreja e todos os adornos ao redor dela, consistindo de pórticos, quadripórticos, pinturas, mosaicos, uma fonte e um portão externo; e tendo-o mobiliado com toda a construção em alvenaria e, em uma palavra, com tudo; e estando prestes a deixar a vida deste mundo; fiz para mim um pedestal e um sarcófago nos quais fiz gravar o acima exposto, para distinção da igreja e da minha família. [7 ]

A inscrição funerária é uma biografia de Marcos. E há dois momentos distintos. Primeiro, é narrada sua carreira militar e política, interrompida pela grande perseguição. Após aqueles eventos, Marcos se torna um líder religioso, dedicando 25 anos ao episcopado. Ele descreve ter reconstruído o santuário e feito várias melhorias as suas expensas, indicando sua origem abastada, na elite romana.

Professores Cilliers Breytenbach (Universidade Humboldt, Berlin) e Christiane Zimmermann (Universidade de Kiel), observam alguns dos principais pontos da inscrição, como a origem nobre da família de Marcos, que deve ter ascendido a cidadania romana no século I DC (o nome "Julius" indica que a cidadania da família foi obtida sobre os imperadores Julio-Claudianos, que governaram entre 30 AC e 68 DC), "Eugenio", significa de "nobre descendência" em grego, e seu pai ter sido um "decúrio", um membro do conselho municipal, cargo que demandava uma boa condição financeira, já que frequentemente financiavam obras e serviços públicos para a população local (como já explorado no adcummulus aqui). Marcos se casa com a filha de um senador romano, que é outra evidência de prestígio.   

The inscription is divided in two parts, starting with the political career of Marcus Iulius Eugenius in Pisidia and ending with his career in the congregation of Laodicea. Marcus Iulius Eugenius was probably born into a Christian family of high standing; his family was granted citizenship under the Iulii, but the cognomen Εὐγένιος (of noble descent), tha served to identify him reflects the Greek-speaking environment. The father of Marcus Iulius Eugenius, Cyrillus Celer,  βoνλευτηζ (decurio), most probably in one of the Pisidian cities, must have met the minimum financial requirements for rising to such an office. Probably he was a owner of an estate in the countryside close to Laodicea, enjoying the new lifestyle of the wealthy curiales. from the 3rd century on, many of them left cities, preferring to live on their country estates. The marriage between his son Eugenius and the daughter of a σύγκλητος (senator) would have been attractive for both families of the local ruling class. 

(Tradução): A inscrição é dividida em duas partes, começando com a carreira política de Marco Júlio Eugênio na Pisídia e terminando com sua carreira na congregação dhe Laodicéia. Marco Júlio Eugênio provavelmente nasceu em uma família cristã de alta posição; sua família recebeu cidadania sob os Iulii, mas o cognome Εὐγένιος (de ascendência nobre), que serviu para identificá-lo, reflete o ambiente de língua grega. O pai de Marco Júlio Eugênio, Cirilo Celer, βoνλευτηζ (decurio), muito provavelmente em uma das cidades da Pisídia, deve ter cumprido os requisitos financeiros mínimos para ascender a tal cargo. Provavelmente ele era dono de uma propriedade no campo perto de Laodicéia, aproveitando o novo estilo de vida dos ricos curiales. A partir do século III, muitos deles deixaram as cidades, preferindo viver em suas propriedades rurais. O casamento entre seu filho Eugênio e a filha de um σύγκλητος (senador) teria sido atraente para ambas as famílias da classe dominante local. [8]

Nós abordamos aqui no adcummulus aqui e aqui, referente as perseguições aos primeiros cristãos entre o incêndio de Roma em 64 DC e o início do século III. O cenário posterior foi de bastante tranquilidade para os cristãos nas primeiras décadas do século III, até a ascensão de Décio (249-251 DC). Conforme descreve o Professor Pierre Cabanes (1930-2023), da Universidade Paris X Nanterre, "é o Imperador Décio que retoma com toda força a perseguição em meados do século III, ordenando a todos os cristãos que sacrifiquem aos deuses de Roma. Depois de uma interrupção de 251 a 257, a perseguição é retomada. O Imperador Galieno instaura uma era de tolerância, reconhecendo a propriedade eclesiástica, e esta calma se prolonga por quarenta anos, até 303" [9]. Assim, os cristãos tinham se beneficiado de quase um século de relativa tranquilidade, subitamente interrompida com a grande perseguição de Diocleciano. Cabe observar que a perseguição se iniciou cerca de 20 anos após Diocleciano ascender ao trono,  período em que o cristianismo se expandiu e se consolidou na sociedade romana. Ainda segundo Cabanes, "Diocleciano publicou então quatro editos de perseguição que proíbem o culto cristão, ordena a destruição das igrejas, a prisão dos membros do clero, a libertação daqueles que abjuraram e a condenação à morte dos outros. O último impunha um sacrifício geral aos deuses pagãos. As vítimas contam-se aos milhares; a perseguição era mais ou menos violenta segundo as regiões, prolongando-se no Oriente até 312" [9].  

Os quatro tetrarcas. Escultura em Pórfiro,
Basílica de São Marcos,Veneza, Itália
via wikicommons 


 Diocleciano havia estabilizado o Império após décadas de crise política, administrativa e militar, instituindo um regime chamado Tetrarquia. Diocleciano era o líder último do Império, mas, em 286 DC, transferiu, com sucesso, as responsabilidades da parte ocidental para Maximiano. Diocleciano era um exímio soldado. Maximiano um bom político. Em 293 DC, eles acordaram em indicar um alterno, uma espécie de "imperador auxiliar" para cada metade do Império, tendo Maximiano escolhido Constâncio Cloro (pai de Constantino),  e Diocleciano optado por Galério. Diocleciano e Maximiano tomaram o título de "Augusto", e seus auxiliares Constâncio e Galério seriam "césares". Tentavam resolver dois problemas, primeiro facilitar a administração de um Império sujeito a ameaças militares em várias partes de suas fronteiras simultaneamente, e extremamente vasto em sua extensão e burocracia. Nesse sentido, os tetrarcas estabeleceram capitais em lugares próximos a fronteira, como Constâncio Cloro que ficava em Augusta Treverorum (Trier, atual Alemanha), nas proximidades do Reno, e Galério que foi para Sirmium (atual Sremska Mitrovica, Sérvia), na fronteira do Danúbio. Segundo, esperavam tornar a transição de poder mais suave, tendo os imperadores o controle de sua própria sucessão. Em 305 DC, Diocleciano e Maximiano se aposentaram,  e Galério e Constâncio Cloro se tornaram co-imperadores, que por sua vez indicaram Maximino Daia e Severo II. Contudo, com a morte de Constâncio Cloro em 306, todo o arranjo colapsou, já que as legiões da Gália e da Britânia (atuais França e Inglaterra) aclamaram Constantino (filho de Constâncio) como Imperador, e vários outros, geralmente filhos de "augustos" ou "césares" anteriores fariam movimentos semelhantes nos anos seguintes.

Nesse sentido, é relevante que Marcos Eugenio relate que seus problemas começaram com Maximino Daia, que se tornou Augusto sobre o Leste do Império apenas em 310,  e não com a grande perseguição sobre Diocleciano (303-305 DC).  Os cristãos do início do século terceiro, perceberam rapidamente que os governantes conduziram os editos de perseguição de forma diferente em seus territórios. Em áreas como a Gália (França) e Britânia (Inglaterra), sob Constâncio Cloro e seu filho Constantino, houve algumas igrejas derrubadas e livros queimados, mas com pouquíssimos casos de prisão ou martírio, enquanto no Egito e Siria a perseguição foi intensa e durou quase 10 anos, no resto do Império a situação foi mais fluída. Assim adotaram estratégias para sobreviver durante esse tempo, embora alguns tenham se apresentado as autoridades espontaneamente, a maioria frequentemente fugia de uma parte para outra do Império nos momentos de maior intensidade, lançava mão de conexões ou laços familiares, além de evitar uma postura de confronto. Alguns até subornaram autoridades (ou foram extorquidos). Não resta claro como Eugênio conseguiu evitar a perseguição por alguns anos, até porque estava "no olho do furacão), servindo diretamente ao governador da província como oficial militar.  De qualquer forma, quando se tornou inevitável a perseguição e ao ser obrigado a sacrificar, Eugênio desobedeceu a ordem imperial, e foi duramente punido por isso. Diante, porém da iminência da prisão, tortura e morte, havia a opção de sacrificar aos deuses ou sofrer as consequências.  Pouco tempo depois, em 313 DC, Maximino Daia faleceu, e os Editos de Serdica (311) e Milão (313), passaram a vigorar em seus territórios, cessando completamente a perseguição, com o restabelecimento dos direitos dos cristãos. 

Professora Claudia Rapp, da Universidade Viena, pontua que Eugênio "explorou todas as oportunidades de ascensão disponíveis para alguém de  sua condição social", com um cargo respeitado na burocracia provincial, além de um casamento prestigioso com a filha de um senador, que "deve ter sido um motivo de especial orgulho, pois Júlio Eugênio se dá o trabalho de mencionar seu sogro nominalmente, o que pouco usual nesse tipo de inscrição". Rapp pondera que Eugênio teria preferido evitar conflito renunciando a seu posto, mas isso não lhe foi permitido, e que sua elevada condição social pode ter lhe protegido de algum sofrimento físico (em nossa percepção, pode ter sido o motivo dele não mencionar os primeiros anos da perseguição, por ter conseguido se manter relativamente ileso durante algum tempo).  Ao fim da perseguição, porém, Júlio retorna a sua cidade, e pouco depois é ordenado ao episcopado, pois deve ter sido o candidato perfeito "um nativo que tinha progredido no mundo, um ex servidor público com conexões nas altas esferas, um cristão dedicado e confessor na perseguição, além de ser um homem rico com recursos suficientes para construir um luxuoso complexo eclesiástico para sua cidade". Rapp conclui "as últimas linhas da inscrição testemunham a fusão de orgulho pessoal de sua família, orgulho cívico de sua cidade, e de ter sido benfeitor de sua igreja". [10]

Professor William Tabernee, da Universidade de Oklahoma, contextualiza a tensão e posterior rompimento de Eugênio com sua carreira militar:

Marcus Julius Eugenius' attempt to leave military service, following Maximin Daia's order, that all Christians in the army were to sacrifice to the gods (Imont 69, line 5-9), may have drawn attention to himself. The very fact that there was such an order reveals that the presence of Christian soldiers in the military was well known. Eugenius' Christians faith, therefore, may also have been known by his fellow soldiers even before the order was promulgated. As Eugenius did not become involved with the Christian community of laodicea Combusta until after he had left the army (IMont 69, lines 10-17) and as the merging of Montanist and Novatian ist Christian communities appears to have occurred well into the post-Constantinian era. it is anachronistic to consider Eugenius a "Montanist" at the time of his suffering for the faith under Maximin Daia. In any case, even if any action on his part contributed to his repeated tortures in 311 or 312 such action would have been deemedas a legitimate exception to "voluntary martyrdom" by soldiers. Because Eugenius did not die from his tortures , he, of course, technically was not a "martyr" but a "confessor"

(Tradução): A tentativa de Marcos Julio Eugenio de deixar o serviço militar, após a ordem de Maximiano Daia, de que todos os cristãos no exército deveriam sacrificar aos deuses (Imont 69, linha 5-9), pode ter chamado a atenção para si mesmo. O próprio fato de haver tal ordem revela que a presença de soldados cristãos no exército era bem conhecida. A fé cristã de Eugenio, portanto, também pode ter sido conhecida por seus companheiros soldados antes mesmo da ordem ser promulgada. Como Eugenio não se envolveu com a comunidade cristã de Laodicéia Combusta até depois de ter deixado o exército (IMont 69, linhas 10-17) e como a fusão das comunidades cristãs montanistas e novacianas parece ter ocorrido bem na era pós-constantiniana, é anacrônico considerar Eugenio um "montanista" na época de seu sofrimento pela fé sob Maximiano Daia. Em qualquer caso, mesmo que qualquer ação de sua parte tenha contribuído para suas repetidas torturas em 311 ou 312, tal ação teria sido considerada uma exceção legítima ao "martírio voluntário" por soldados. Como Eugênio não morreu de suas torturas, ele, é claro, tecnicamente não era um "mártir", mas um "confessor"  [11

Tabernee observa que Eugênio estava ligado a uma congregação resultante da fusão de cristãos novacianos e montanistas, os primeiros tendiam a recusar o retorno a comunhão daqueles cristãos que tinham renegado sua fé durante a perseguição, ou utilizado de artifícios como comprar certificados, enquanto os últimos eram conhecidos por serem rigorosos. Tabernee pontua, contudo, que a inscrição não indica que Eugênio tenha atuado como líder eclesiástico até a sua expulsão do exército, sendo anacrônico considera-lo um montanista por ocasião de seu sofrimento. Por ter sofrido por sua fé em Cristo, Marcos era um "confessor", alguém que, diante do sofrimento e ameaça de morte declara sua fé diante de seus algozes, o que evoca o texto bíblico "Nada temas das coisas que hás de padecer. Eis que o diabo lançará alguns de vós na prisão para que sejais tentados; e tereis tribulação de dez dias. Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida" (Apocalipse 2:10). Considerando a data em que Marcos Júlio Eugênio sofreu os efeitos da perseguição e deixou o exército, mais seus 25 anos de episcopado, deve ter falecido por volta do ano 340 DC.

Aurélio Gaio - legionário itinerante que esperava a chegada da ressureição

Na cidade de Cotiaeum, na antigo Frígia (atual Kutahya, Turquia), no ano de 303 DC, após uma carreira nas legiões romanas, Aurélio Gaio erigiu um jazigo familiar.
Aurélio Gaio segundo, que se alistou na Legião I Itálica estacionada na Moésia, foi selecionado para servir na Legião VIII Augusta estacionada na Germânia, depois na Legião I Iovia Scythica nas províncias de Cítia e Panônia; serviu como novato, aprendiz de cavaleiro, depois optio, optio triarius, optio ordinatus, optio princeps, depois optio nas forças móveis do imperador com a Legião I Iovia Scythica; percorreu as províncias da Ásia, Cária, […], Lídia, Licaónia, Cílicia, […], Fenícia, Síria, Arábia, Palestina, Egito, Alexandria, Índia, […], Mesopotâmia, Capadócia, […], Galácia, Bitínia, Trácia, Moésia, Carpia, […], Sarmácia quatro vezes, Viminacium, Godos duas vezes, Germânia, […], Dardânia, Dalmácia, Panônia, […], Gália, Hispânia, Mauritânia; em seguida, foi promovido e, depois de ter sofrido muitas dificuldades, voltou para sua terra natal, Pessino, fixando residência na aldeia de Kotiaion. Juntamente com sua filha Macedônia, ele ergueu esta estela no túmulo de Júlio, seu filho, e de Areskusa, sua dulcíssima esposa, às suas próprias custas, por causa da memória, até a ressurreição. Adeus a todos. [12]
A inscrição descreve as unidades em Aurélio serviu, e os lugares em que foi designado, da Germânia (Alemanha), até a Mesopotâmia (atual Iraque), passando pelo Egito, Turquia, Espanha até a Índia. O grande número de deslocamentos, boa parte nas fronteiras do Império, indica a enorme pressão militar sobre Roma naquele período. Conforme Richard Talbert e Lindsay Holman, da Universidade da Carolina do Norte, e Benet Salway, da University College de Londres, interpretam a inscrição [13] no sentido que ele serviu inicialmente na fronteira do Danúbio, entre 285 e 294 DC, sob o comando de Diocleciano, onde ocorreram 3 das 4 incursões na Sarmatia. Em 294 DC, a unidade de Gaio, já sob o comando de Galério, inicia uma missão além da primeira catarata do Nilo (sul do Egito), e depois até a Mesopotâmia (Iraque), retornando a Europa para lutar contra os Carpi (que residiam na atual Romênia). Gaio retorna ao comando de Diocleciano, e no final de 295 e início de 296 DC, para uma missão a oeste, na Panônia (parte das atuais Hungria, Áustria e Eslováquia), onde provavelmente ocorreram os combates com os Godos (duas vezes) e na Germânia (atual Alemanha). Em 296 DC, ele foi então transferido para o exército de Maximiano, que se move de Nórica (parte da atual Áustria) em direção ao sudoeste, até a Mauritânia, no norte da Africa (norte dos atuais Marrocos e Argélia) e de lá para leste até a província da África Proconsular (atuais Tunísia e Líbia). Por fim, é provável que ele tenha acompanhado Maximiano a Itália em 299 DC, e de lá participado na quarta incursão na Sarmátia no final daquele ano [13].  

 Aurélio iniciou como novato, chegou a cavaleiro e depois foi promovido a Optio, (oficial assistente do centurião e tinha a responsabilidade de se postar atrás da tropa orientando a formação e transmitindo as ordens dos comandantes). Como optio, em várias capacidades, Gaio serviu por muitos anos, e ascendeu socialmente (como o próprio comissionamento da inscrição indica), já que essas funções representavam soldos muito mais elevados. Após uma promoção, e "muitas dificuldades" voltou para sua terra natal, Pessino, fixando residência na vila próxima de Kotiaion, na Frígia. Aurelio recorda a mortes de seu filho, Júlio, e de sua esposa Areskusa. O caráter cristão da inscrição é expresso por uma abrupta menção a ressurreição.

O Professor Brian Campbell,  da Queen's University Belfast, traz mais alguns detalhes em relação aos postos em que Aurélio serviu e nas tropas em que esteve alistado.
Aurelius had served as a cavalyman in the lanciarii, who had probably been organized by Diocletian as part of the comitatus. In his long military carreer, in the record of which there are several gaps because of the damaged state of the inscription, he had visited at least twenty-three provinces or dioceses, four towns, and five regions situated outside Roman territory. He served in Legion I Jovia Scythica, which was recruited by Diocletian and based at Noviodunum; moreover the campaigns in which he participated against the Sarmatians, Goths. Germans, and in Mesopotamia. India, and Egypt, suggest a date in the reign of Diocletian, probably around AD 300. Aurelius was apparently a Christian serving in the army, before Christianity had been officially adopted. (Tradução) Aurélio serviu como cavaleiro nos lanciarii, que provavelmente foram organizados por Diocleciano como parte do comitatus. Na sua longa carreira militar, em cujo registo existem várias lacunas devido ao estado danificado da inscrição, visitou pelo menos vinte e três províncias ou dioceses, quatro cidades e cinco regiões situadas fora do território romano. Serviu na Legião I Jovia Scythica, recrutada por Diocleciano e baseada em Noviodunum; além das campanhas em que participou contra os sármatas, godos, germânicos e na Mesopotâmia,  Índia e Egito sugerem uma data no reinado de Diocleciano, provavelmente por volta de 300 DC. Aurélio era aparentemente um cristão servindo no exército, antes de o Cristianismo ser oficialmente adotado. [14]

 

Mapa do Império Romano, sob a Tetrarquia, indicando as 
respectivas dioceses, e os territórios administrados por
cada Tetrarca, via wikicommons
 
Professor Timothy Barnes, da Universidade de Edimburgo, faz considerações adicionais em termos do serviço das legiões citadas por Gaio no contexto mais amplo da tetrarquia e do contexto do decreto conjunto de Diocleciano e Galério (entre 299-300 DC) contra os cristãos no exército, descrito por Lactâncio,  que foram obrigados a sacrificar aos deuses ou serem dispensados com desonra. Ainda que o expurgo tenha sido imposto com muito mais efetividade nas províncias do Leste (e o último posto de Aurélio foi no oeste), este pode ter percebido para onde "o vento estava virando", com "muitas dificuldades" referidas na inscrição e decidido se aposentar antes que a situação deteriorasse ainda mais. 

"Gaius served in many areas of the Roman Empire, which the inscription names in geographical order. Although some names are lost, those that survive indicate that Gaius' military service included periods not only on the Danube frontier before 293 and in southern Egypt under Galerius in 293-294, but also under Maximian in Gaul, Spain and Mauretania during his expedition to Africa in 296-298 (...) Since Gaius probably left the army shortly after 298, it seems natural to infer that he was a Christian who either resigned or was cashiered because of the purge (...) But if Gaius latest datable service was in the West in 298, he may have retired before Galerius' purge, which affected only the eastern armies. (Tradução) Gaius serviu em muitas áreas do Império Romano, que a inscrição nomeia em ordem geográfica. Embora alguns nomes tenham sido perdidos, aqueles que sobreviveram indicam que o serviço militar de Gaius incluiu períodos não apenas na fronteira do Danúbio antes de 293 e no sul do Egito sob Galério em 293-294, mas também sob Maximiano na Gália, Espanha e Mauritânia durante a sua expedição à África em 296-298 (...) Como Gaio provavelmente deixou o exército pouco depois de 298, parece natural inferir que ele era um cristão que renunciou ou foi demitido por causa do expurgo (...) Mas se o último serviço datável de Caio foi no Ocidente em 298, ele pode ter se aposentado antes do expurgo de Galério, que afetou apenas os exércitos orientais. [15].

 Ainda conforme Barnes [15], após seu início em 303 DC, o primeiro a fazer cessar a perseguição foi Constantino, que imediatamente a sua proclamação como "augusto" pela legiões do oeste em 26 de julho de 306 DC, decretou plena liberdade religiosa nas províncias da Espanha, Gália e Grã Bretanha. Constantino também devolveu os bens e propriedades confiscadas. Ainda no inverno de 306 DC, Maxêncio, que em outubro havia usurpado os territórios da Itália e Norte da África de Severo II, decretou o fim das perseguições, sem porém devolver as propriedades. Nos Balcãs e Asia Menor, Galério não só manteve a perseguição até 311 DC, como a intensificou, até que, perto da morte, decretou seu edito de plena tolerância aos cristãos (Edito de Sérdica) nos territórios em que era Augusto, ou seja, nas províncias ao leste da Itália. Entretanto, seu subordinado, Maximiano Daia, rapidamente agiu para anular o Edito de Sérdica, reforçando a perseguição em seus territórios, no Egito e Síria, bem como na Asia Menor, que ele invadiu. Somente em 313 DC, quando Maximiano foi fragorosamente derrotado por Lícinio em Tzirallum, ele decretou o fim da perseguição. Poucos meses depois, ficou doente e morreu (ou se suicidou) em Tarso.

Nesse contexto, Aurélio viveu. Não resta claro se chegou a sofrer os efeitos da perseguição, pois ele preferiu descrever sua vida como soldado, na suas andanças por todo o Império, como progrediu no seu trabalho, e nos seus familiares. Não deixa de mencionar a fé na ressureição. Possivelmente, viveu e morreu antes da oportunidade de viver livremente sua fé.   

 Referências Bibliográficas

[1] Tertuliano, De Corona Militis, 1
[2] TertulianoApologia, 5
[3] Ronald J Syder (2012), The Early Church in Killing, fl. 203
[4] Péter Kovács(2017) Marcus Aurelius’ rain miracle when and whereštu dijné zvesti archeologického ústav u AV 62, 2017, 101 –111
[5]  §356 Aurelius Niceros – Database of Military Inscriptions and Papyri of Early Roman Palestine
[6] Frank Tombley (2008), Overview: Geographic Spread of Christianity, In Margareth Mitchell e Frank Young (editores) - The Cambridge History of Christianity, Volume 1, 310-312
[7] §357 Marcus Julius Eugenius – Database of Military Inscriptions and Papyri of Early Roman Palestine (armyofromanpalestine.com)
[8] Cilliers Breytenbach, Christiane Zimmermann (2018) Early Christianity in Lycaonia and Adjacent Areas: From Paul to Amphilochius, fl. 576
[9] Pierre Cabanes (2004), Introdução à História da Antiguidade, fl 224
[10] Claudia Rapp (2005), Holy Bishops in Late Antiquity: The Nature of Christian Leadership ion an Age of Transition, fl. 203-204 
[11] William Tabernee (2007) Fake Prophecy and Polluted Sacraments: Ecclesiastical and Imperial Reactions, fl. 235-236
[12] §362 Aurelius Gaius – Database of Military Inscriptions and Papyri of Early Roman Palestine,
[13] Richard Talbert, Lindsay Holman, Benet Salway (2023), Atlas of Classical History, fl. 185, segunda edição;
[14] Brian Campbell (1994) The Roman Army, 31 BC - AD 337: A Sourcebook, fl. 240;
[15] Timothy D Barnes (2010) Early Christian Hagiography and Roman History, fl. 107, nota 19;




domingo, 31 de dezembro de 2023

Jesus na Escala Richter de Impacto Histórico: breves anotações sobre Flegon de Trales

"Cristo na Cruz", por Carl Heinrich Bloch (1870). Museu de 
História Natural, Copenhague, Dinamarca, via wikicommons
 

Por volta de 240 DC, o erudito, filósofo e teólogo Orígenes de Alexandria (185-254 DC), escreveu uma defesa do cristianismo em contraposição a um ataque do filósofo Celso, que, entre 160-180 DC, escrevera uma obra chamada "o verdadeiro discurso". Em sua obra, já discutida aqui, Celso critica sistemática e detalhadamente os cristãos, apresenta argumentos filosóficos e supostas inconsistências nas narrativas evangélicas, faz comparações com outros cultos e seitas existentes à época e alguma familiaridade com os vários grupos cristãos existentes e "fatos" da vida de Jesus não existentes em qualquer escrito cristão, derivados de tradições que circulavam entre os judeus no início do II século. 

Em sua defesa, Orígenes utiliza vários argumentos, e cita alguns autores não cristãos para corroborar, de alguma forma, aspectos positivos do cristianismo. A abordagem, tinha suas dificuldades, porém. Com Flavio Josefo, por exemplo, Orígenes utiliza o relato que menciona Tiago, irmão de Jesus, mas acaba reconhecendo que, seja o que fosse que Josefo tivesse escrito, ele não reconhecia que Jesus fosse o Cristo. 


Um autor, porém, que Orígenes cita algumas vezes é Flegon de Tralles.

E Flegon, no decimo terceiro ou décimo quarto livro, se não me engano, de suas crônicas, não somente atribui a Jesus o conhecimento de eventos futuros, mas também testifica que o resultado corresponde a suas previsões. (...) mas ele também, por estas mesmas admissões em relação a previsão, mesmo que contra sua vontade, expressa sua opinião de que as doutrinas ensinadas pelos pais não foram desprovidas de poder divino (Origenes, Contra Celso, 2:14);

E no que diz respeito ao eclipse no tempo de Tibério César, em cujo reinado Jesus parece ter sido crucificado, e aos grandes terremotos que então ocorreram, Flegon também, creio, escreveu no décimo terceiro ou décimo quarto livro de suas Crônicas (Origenes, Contra Celso, 2:33);

Ele imagina também que tanto o terremoto quanto a escuridão foram uma invenção; mas com relação a isso, nas páginas anteriores, fizemos nossa defesa, de acordo com nossa capacidade, apresentando o testemunho de Flegon, que relata que esses eventos ocorreram no momento em que nosso Salvador sofreu.(Origenes, Contra Celso, 2:59);


Professora Leslie Kelly, da Universidade Pública da América, apresenta alguns detalhes sobre Flegon de Trales.

Phlegon of Tralles was a freedman of Emperor Hadrian who, in addition to his history, wrote books on Sicily, the topography of Rome, Roman festivals, and marvels (tradução) Flegon de Tralles foi um liberto do imperador Adriano que, além de sua história, escreveu livros sobre a Sicília, a topografia de Roma, festivais romanos e maravilhas.[1]

Trazendo a citação em contexto, entre os autores geralmente citados como evidência externa da vida e ministério de Jesus de Nazaré, os principais testemunhos  são os de Flávio Josefo e Tácito. O parágrafo sobre Jesus na obra de Josefo, chamado Testemunho Flaviano, é considerado pela grande maioria dos estudiosos como tendo sido alterado a partir de um texto original menos laudatório ou hostil (como já vimos aqui no Adcummulus). Outra menção a Jesus no texto de Josefo, referente a seu irmão, Tiago, é menos polêmica. Quanto a Tácito, a discussão, em geral, não se centra na autenticidade, mas a fonte das informações que dispunha, como também já discutido aqui no adcummulus, junto com menções mais breves de historiadores romanos, como Suetônio e Plínio.  Se expandimos para menções externas posteriores, que podem conservar memórias antigas, temos as respostas polêmicas dos oponentes dos apologistas Justino e Tertuliano, do filósofo Celso, e dos rabinos no Talmude, autores como Luciano, Galeno e Mara Bar Serapion que reagem de formas diferentes a Jesus como mestre dos cristãos. Assim, de forma geral, as fontes não cristãs podem ser classificadas em quatro linhas de tradição:

  • Segundo as versões mais aceitas do texto de Flávio Josefo, Jesus foi um pretendente messiânico que atraia (ou aliciava) multidões com seus ensinos, realizava feitos controversos (paradoxa), e foi executado por Pôncio Pilatos, sob acusação dos líderes judeus. Após sua execução, seus seguidores relataram que ele havia ressuscitado e proclamavam que ele era o Cristo.
  • Na visão de magistrados romanos, como Cornélio Tácito, Gaio Suetônio e Plínio, o Jovem,  Jesus foi um agitador crucificado na Judéia por Pôncio Pilatos, tendo sido o fundador da seita dos cristãos, um grupo que seguia uma "superstição nova e depravada" (Suetônio), e "mortal", que "irrompeu novamente, não apenas na Judéia, terra onde se originou o mal, mas também na cidade Roma, onde todos os tipos de práticas horrendas e infames de todas as partes do mundo se concentram e são fervorosamente cultuadas" (Tácito), e se reuniam numa associação secreta e ilegal (segundo Plínio);
  • Na polêmica judaica em relação ao cristianismo, os oponentes de Justino (130-150 DC), Celso (170 DC), Tertuliano (200 DC) e alguns rabinos do Talmude acusam Jesus de ter sido um "mágico e enganador do povo" e seus paradoxa (feitos controversos)  foram devidos a utilização de poderes mágicos, tendo sido "pendurado" por ser um "praticante de feitiçaria que induziu Israel a pecar". A acusação, inclusive, já havia sido recordada nos evangelhos (ex. "Ele está possesso de Belzebu; e: É pelo príncipe dos demônios que expulsa os demônios", em Mc 3:22).
  • Autores como Luciano, Galeno e Mara Bar Serapion destacam o papel de Jesus como o "primeiro legislador" dos cristãos.  O "homem crucificado na Palestina", por dar origem ao culto (Luciano de Samosata), a "escola  (...) de Cristo", em que se ensinam "leis não demonstráveis" e mestres que "ordenavam aceitar tudo pela Fé" (Claúdio Galeno). O próprio Galeno, porém, admite mérito nos ensinos cristãos, pois incutia nas massas posturas positivas, semelhantes a dos "verdadeiros filósofos" (Galeno).  De qualquer forma, Jesus "continuou a viver nos ensinamentos que transmitiu" (na visão positiva de Mara Bar Serapion, destoante dos outros autores não cristãos).

Assim, a visão de Jesus e dos primeiros cristãos como pessoas à margem da sociedade é recorrente entre observadores externos do início do cristianismo. Se houvesse jornais semelhantes aos que existem hoje na Siria-Palestina do século I, Jesus e seus seguidores estariam na página policial ou nos tabloides populares. Os programas de TV em que apareceriam seriam do tipo popular/policial/sensacionalista. Como vimos também em nossa série dos cristãos ascendendo a alta sociedade romana, a chegada na elite social, política e intelectual do Império demorou, pelo menos, 150 anos. 

Grafite de Aleximeno, caricatura anti cristã da segunda 
metade do século II DC, "Alexamenos sebete Theon"
("Alexandre adora Deus"), Roma,via wikicommons
O conhecimento de Flegon sobre Jesus, tais como outros autores pagãos e judeus de seu tempo, pode decorrer tanto de uma exposição a pregação cristã e/ou evangelhos, bem como de fontes judaicas e romanas sobre Cristo e o cristianismo. Como observam os professores Gerd Theissen (Universidade de Heidelberg) e Annete Merz (Universidade de Utrecht), "(...) os testemunhos não cristãos sobre Jesus correm o  duplo perigo de ser supervalorizados ou subestimados. São supervalorizados quando se espera um acesso "neutro" ao "Jesus histórico", livre de "verniz" cristão. Tácito não oferece um relato que remonta aos Atos de Pilatos, tampouco Josefo, uma descrição que remonta aos protocolos do Sinédrio. Contudo, "(...) as fontes extracristãs são provavelmente uma reação a declarações cristãs. Mas não devemos diminuir seu valor enquanto fontes. Primeiro, elas remetem a afirmações cristãs que provavelmente são independentes de nossos evangelhos. São um testemunho autonômo. Segundo, documentam a postura ambivalente dos contemporâneos judeus e pagãos (...) Terceiro, elas mostram que os contemporâneos dos séculos I e II não tem motivos para questionar a existência de Jesus"[2]. 


Sendo assim, do que sabemos sobre Flegon ele reage as afirmações contidas nos relatos evangélicos, no contexto de seus próprios interesses, o de um autor cujo o interesse em Jesus e nos cristãos não é decorrente de uma disposição necessariamente polêmica (como Celso), ou incidental, para explicar acontecimentos mais amplos em que Jesus e seus seguidores eram figurantes (como Josefo, Tácito ou Suetônio). A obra de Flegon revela um autor com interesse no popular, fantástico, controverso, e no paradoxal. Como descrito pelo Professor Markus Bockmuehl (Oxford):

P. Aelius Phlegon (no relation to his namesake in Rom. 16:14) was an educated freedman in the imperial household of Hadrian (AD 117-138), a native greek speaker from Tralles in Caria, Asia Minor. Among his various literay activities is a Book of Marvels, composed in the sensationalist genre known to classicists as "paradoxography" - entertaining collections of weird and wonderful tales in the best tradition of tabloid journalism. By far the most substantial and best known of Phlegon's works was a chronology of the Olympic Games grom their begining in 776 BC to 229th Olympiad (AD 137-140), during which Hadrian died. Although this work survives only in fragments, it is clear that, in addition to a listing of the Olympic victors at each of the games, Phlegon discusses notable persons and events of the respective period, including various miracles and oracles.

(Tradução) P. Aelius Flegon (sem relação com seu homônimo em Romanos 16:14) foi um liberto educado na casa imperial de Adriano (117-138 DC), um falante nativo de grego de Tralles em Caria, Ásia Menor. Entre suas diversas atividades literárias está um Livro de Maravilhas, composto no gênero sensacionalista conhecido pelos classicistas como "paradoxografia" - divertidas coleções de contos estranhos e maravilhosos na melhor tradição do jornalismo tablóide. De longe, o trabalho mais substancial e mais conhecido de Flegon foi uma cronologia dos Jogos Olímpicos desde seu início em 776 AC até a 229ª Olimpíada (137-140 dC), durante a qual Adriano morreu. Embora esta obra sobreviva apenas em fragmentos, é claro que, além de uma lista dos vencedores olímpicos em cada um dos jogos, Flegon discute pessoas e eventos notáveis ​​do respectivo período, incluindo vários milagres e oráculos [3]

Em seu livros Flegon demonstra interesses diversos. Suas crônicas se estruturam em torno dos jogos olímpicos, evento central para identidade das populações gregas, desde tempos antigos. Os jogos da antiguidade eram realizados na cidade de Olímpia, a partir de 776 AC (data tradicional), a cada quatro anos. Os jogos eram sagrados em toda Grécia, com uma trégua olímpica (ékécheiria) sendo observada, de forma que a integridade e segurança dos participantes em seu caminho para Olímpia e a proteção do próprio santuário fosse garantida. Assim, uma crônica estruturada em torno dos conclaves olímpicos era uma forma bastante tradicional de recordar a história, e cobriria um período de cerca de 900 anos, do ano 776 AC até 140 DC. Da mesma forma, Flegon teria escrito uma descrição da Sicília (que pode ter sido análogo ao "descrições da Grécia" de Pausânias). Tanto "Crônicas" quantos "Descrição da Sícilia" não chegaram até o nosso tempo, embora partes das "Crônicas" sejam citadas por autores posteriores, como Eusébio, George Sincelo e Fócio de Constantinopla.

Por outro lado, Flegon foi também o autor de obras com uma veia mais "sensacionalista". Assim, ele percorre os censos romanos para encontrar cidadãos com mais de 100 anos de idade ("sobre pessoas velhas" ou "Peri Macrobion"). E, principalmente, seu "livro das maravilhas", que coleciona relatos de fatos estranhos, sensacionais e maravilhosos, no melhor estilo "Acredite se quiser", e sua obra é representativa de um gênero chamado paradoxografia. Flegon descreve a descoberta de ossadas gigantescas, nascimentos "monstruosos", hermafroditas e locais mal assombrados. Essas duas obras foram preservadas e existem até hoje.

Considerando esses interesses de Flegon, de que forma a vida de Jesus poderia ter lhe chamado a atenção? No que se refere as menção as previsões de Jesus e sua acurácia, Professora Kelly observa:

This passage from Phlegon (by way of Origen) indicates that some pagans among the well - connected, intellectual set understood Jesus of Nazareth to have been a prophet. Jesus' actions and message could be understood as being intentionally in line with prophets of the jewish scriptures or as a representative of a new type of eschatological prophet, with a focus on the in-breaking age of catastrophic (and then heavenly) change. (tradução) Esta passagem de Flegon (citada por Orígenes) indica que alguns pagãos no meio intelectual e bem relacionado entendiam que Jesus de Nazaré era um profeta. As ações e a mensagem de Jesus podem ser entendidas como estando intencionalmente alinhadas com os profetas das escrituras judaicas ou como representantes de um novo tipo de profeta escatológico, com foco na era iminente de mudanças catastróficas (e depois celestiais). [4]

 Conforme já descrevemos acima, além do interesse em Jesus como o fundador da seita dos cristãos (que, no tempo de Flegon, já eram conhecidos da elite romana desde, pelo menos, o tempo de Nero, 80 anos antes), este era apresentado como "poderoso em palavras e obras" pelos seus seguidores, "mestre e realizador de feitos controversos" (admitindo um texto "neutro" por Josefo), ou "mágico e aliciador do povo" (seguindo Celso, os oponentes de Justino e Tertuliano, o Talmude, e se for considerado um texto original hostil no texto de Josefo). Em todo caso, Jesus seria um personagem que, potencialmente, se adequa aos interesses de Flegon, como indica o Professor Bockmuehl:

 It is clear this work, composed in sixteen books, that Origen cites here. Assuming that after the extant account of the founding of the games, the remainder of the 916-year history is evenly divided over the sixteen books, it is indeed book 13 that may plausible be assumed to cover the lifetime of Jesus, and book 14 the apostolic period. Another popular patristic citation from book 13, known to Origen (Cels. 2.33, 59), Jerome, and others, concern a solar eclipse associated with the darkness at the crucifixion of Jesus. Quite what Phlegon says ou Known, whether about Jesus's predictions or Peter's, is impossible to tell from Origen's fleeting comment. It seems nevertheless fair to assume that it must have been a sufficiently impressive tale for Phlegon to have heardof it and to comment on it. - though it is impossible to be more precise than that. In interpreting Origen's obscure citation, then, it is significant that he does not attribute any explicit knowledge of Peter. (tradução) Fica claro esta obra, composta em dezesseis livros, que Orígenes cita aqui. Supondo que, após o relato existente sobre a fundação dos jogos, o restante da história de 916 anos esteja dividido igualmente entre os dezesseis livros, é de fato o livro 13 que pode ser plausivelmente assumido como cobrindo a vida de Jesus, e o livro 14, o período apostólico. Outra citação patrística popular do livro 13, conhecida por Orígenes (Cels. 2.33, 59), Jerônimo e outros, diz respeito a um eclipse solar associado às trevas na crucificação de Jesus. Exatamente o que Flegon diz ou sabe, seja sobre as predições de Jesus ou de Pedro, é impossível dizer a partir do comentário fugaz de Orígenes. No entanto, parece justo supor que deve ter sido uma história suficientemente impressionante para que Flegon a tenha ouvido e comentado. - embora seja impossível ser mais preciso do que isso. Ao interpretar a obscura citação de Orígenes, então, é significativo que ele não atribua nenhum conhecimento explícito de Pedro.[5]

Professor Martin Hengel (1926-2009), também pondera o interesse de Flegon por Jesus, já atestando a uma distribuição relativamente ampla dos evangelhos na primeira metade do século II. De fato, os fragmentos mais antigos do evangelho, na forma do papiro John Rylands (P52) e P90, contendo versos de João, são geralmente datados da mesma época em que Flegon escreveu (120 -150 DC). Os papiros foram preservados no clima quente e seco do Egito, distante do seu provável local de composição na Ásia Menor ou Síria, indicando uma distribuição ampla do texto do evangelho. Na mesma época, Justino, em seu dialogo com Trifo, tem seu oponente, um rabino helenista, afirmando que  (...) tomou conhecimento e leu com atenção os preceitos dos evangelhos cristãos, os considerou maravilhosos e grandes, de tal forma que suspeitava que ninguém seria capaz de cumpri-los"

 From this same time of Hadrian, we also have the earliest example of a Gentile author who was familiar with a gospel. Phlegon of Tralles, who was freed by Caesar, loved sensational stories. He not only describes an eclipse of the sun that took place at the time of Jesus' crucifixion but, according to Origen, produced "Pertaining to Christ's advange knowledge of Future Events", and, in a most remarkable way, mention in this context also the person of Peter (tradução) Da mesma época de Adriano, também temos o exemplo mais antigo de um autor gentio familiarizado com um evangelho. Flegon de Trales, liberto do imperador, adorava histórias sensacionais. Ele não apenas descreve um eclipse do sol que ocorreu no momento da crucificação de Jesus, mas, de acordo com Orígenes, escreve "referente ao conhecimento presciente de Cristo sobre eventos futuros", e, de uma forma mais notável, menciona neste contexto também a pessoa de Pedro [6]

Além da referência a capacidade profética de Jesus, Origenes afirma que Flegon também deu testemunho em relação as trevas e o terremoto durante a Paixão, descritas nos evangelhos. Desde cedo, porém, um contemporâneo de Orígenes, Julio Africano, que já mencionamos aqui no adcummulus, cita o relato de Flegon em conjunto com Talo, que é geralmente associado a um samaritano, outro liberto imperial, mencionado por Josefo, e que teria escrito em meados do século I DC, por volta do ano 50 DC. A Crônica de Talo, segundo Eusébio de Cesareia, reconta a história do mundo grego desde a Guerra de Tróia até 167ª ou 207ª Olímpiada (112-109 AC ou 49-52 DC, uma vez que os manuscritos são problemáticos nesse ponto, mas a segunda data é preferida pela maioria dos estudiosos)[7]. O fragmento de Júlio Africano que menciona Talo e Flegon é preservado por George Sincelo (que escreveu no século IX DC) 

Esta escuridão Talo, no terceiro livro de sua História, chama, como me parece sem razão, um eclipse do sol. Pois os hebreus celebram a páscoa no 14º dia de acordo com a lua, e a paixão de nosso Salvador termina no dia anterior à páscoa; mas um eclipse do sol ocorre apenas quando a lua fica sob o sol. E isso não pode acontecer em nenhum outro momento, a não ser no intervalo entre o primeiro dia da lua nova e o último da lua antiga, ou seja, na sua junção: como então deveria acontecer um eclipse quando a lua está quase diametralmente oposta? o sol? Deixe essa opinião passar, entretanto; deixe-o levar consigo a maioria; e que este presságio do mundo seja considerado um eclipse do sol, como outros, um presságio apenas para os olhos. Flegon registra que, no tempo de Tibério César, na lua cheia, houve um eclipse total do Sol da sexta à nona hora - manifestamente aquela da qual falamos. Mas o que um eclipse tem em comum com um terremoto, com as rochas dilaceradas e com a ressurreição dos mortos, e com uma perturbação tão grande em todo o universo? Certamente nenhum evento como este é registrado por um longo período. Mas foi uma escuridão induzida por Deus, porque aconteceu então que o Senhor sofreu.

O (possível) testemunho de Talo sobre os eventos da paixão de Cristo é um assunto que merece um post por si só, em nossa opinião (podemos incluir entre as resoluções para 2024!!!). Em geral, há uma polêmica significativa em relação ao que Talo (e Flegon) teriam escrito em relação a crucificação de Jesus, as trevas e o terremoto, com vários historiadores do cristianismo primitivo expressando opiniões divergentes. Mas como a discussão se dá principalmente em relação a relevância do que Talo teria escrito (até pela sua maior proximidade, em quase um século, com a crucificação), podemos manter nosso foco em Flegon. Sobre isso, Professora Loveday Alexander, da Universidade de Sheffield:

It is not surprising, then, to find that the first part of the gospel story known to pagans in the second century is the fact (and to differing degrees the manner) of Jesus' death. Possibly the earliest references to the gospel narratives occur in two early chronographers, Thallos (?mid to the late first century CE) and Phlegon of Tralles (second century CE), who report a solar eclipse with the in the reign of Tiberius. Both are cited by later Christian writers, who connect the eclipse with the gospel report of 'darkness' at the time of the crucifixion (a connection denied by Julius Africanus); thought it is unclear whether either Thallos or Phlegon mentioned the crucifixion himself (traduçãoNão é surpreendente, então, descobrir que a primeira parte da história do evangelho conhecida pelos pagãos no segundo século é o fato (e em graus diferentes a maneira) da morte de Jesus. Possivelmente, as primeiras referências às narrativas do evangelho ocorrem em dois primeiros cronógrafos, Talo (de meados ao final do século I dC) e Flegon de Trales (século II dC), que relatam um eclipse solar no reinado de Tibério. Ambos são citados por escritores cristãos posteriores, que conectam o eclipse com o relato do evangelho sobre as “trevas” no momento da crucificação (uma conexão negada por Júlio Africano); pensei que não estava claro se Talo ou Flegon mencionaram a crucificação[8];

De qualquer forma, a indícios de que Flegon tenha dito "algo" sobre um eclipse contemporâneo a crucificação, até pelas várias vezes em que é mencionado por escritores cristãos posteriores. Além disso, a menção ao eclipse parece surgir no contexto da outra observação sobre os poderes premonitórios de Jesus, também no mesmo 13° ou 14° livro. 

Os astrônomos Pang e Yau [9], observam que há registro de um eclipse solar em 24 de novembro do ano 29 DC, e de um eclipse lunar em 3 de abril de 33 DC. No entanto, apontam a inconclusividade dessas associações uma vez que "(...) Humphreys e Waddington (Nature 306, 743) sugeriram o escurecimento meteorológico e o eclipse lunar de 3 de abril de 33 DC. Schaefer questionou a visibilidade do eclipse em Jerusalém (31.46N, 35.14E). Os seis cálculos que ele citou deram respostas diferentes devido às taxas imprecisas da aceleração lunar secular e ao prolongamento do dia usado (...)", indicam que seus próprios cálculos, baseados em registros chineses, indicavam que o eclipse de abril de 33 DC foi visto em Jerusalém com a Lua em 1/3 na umbra (encoberta) e que "(...)o escurecimento meteorológico remanescente com massa de ar de absorção longa também poderia ter ajudado a avermelhar a lua (...)"[9].  o Professor Fred Espenak lista as várias vezes em que eclipses e outros eventos naturais foram associados pelos povos antigos a eventos de significância [10]. Por exemplo, as legiões na Panônia (Hungria) tinham iniciado uma rebelião ao serem informados da morte do Imperador Augusto (ocorrida em 19 de agosto do ano 14 DC, mas omitida por alguns dias pela sua esposa, Lívia, até que Tibério retornasse da Ilíria), mas teriam sido contidas ao presenciarem um eclipse lunar (que aconteceu em 27 de setembro do mesmo ano), conforme Cassio Dio e Tácito [10].

Assim, entendemos como o cenário mais provável uma citação ao eclipse, talvez contestando diretamente o relato evangélico. Mas desenvolveremos esse ponto em um post futuro.

Referências Bibliográficas

[1] Leslie Kelly, 2018 Prophets, Prophecy and Oracles in the Roman Empire: Jewish, Chrstian, and Greco-Roman cultures, fl. 29)
[2] Gerd Theissen e Annete Merz (1996) Jesus Histórico, Um Manual, fl. 83
[3] Markus Bockmuehl, 2012, Simon Peter in Scripture and Memory, fl. 107
[4] Leslie Kelly, 2018 Prophets, Prophecy and Oracles in the Roman Empire: Jewish, Chrstian, and Greco-Roman cultures, fl. 29)
[5] Markus Bockmuehl, 2012, Simon Peter in Scripture and Memory, fl. 107 
[6] Martin Hengel (2006) Saint Peter: The Underestimated Apostle, fl. 33
[7] Robert Van Voorst (2000) Jesus Outside the Gospels, fl. 21
[8] Loveday Alexander (2005) "Four Among the Pagans", in Markus Bockmuehl e Donald Hagner, The Written Gospel, fl. 225; 
[9] K D Pang e Yau K.K (2000) Eclipses and the Olympics, In American Astronomical Society, 197th AAS Meeting, id.23.01; Bulletin of the American Astronomical Society, Vol. 32, p.1439
[10] Fred Espenak  NASA - Lunar Eclipses of History Eclipse Predictions by Fred Espenak, NASA's GSFC. Cassio Dio, História Romana, Livro 57, 4 Cassius Dio — Book 57 (uchicago.edu) e Tacito, Anais, Livro 1, 28 LacusCurtius • Tacitus, Annals — Book I Chapters 16‑30 (uchicago.edu)

sábado, 22 de julho de 2023

O que aconteceu com os doze apóstolos de Jesus - Parte 4 - A Igreja do Santo Sepulcro, o Gólgota e o sepultamento de Jesus

 

Mosaico Grego na Pedro da Unção Igreja do
Santo Sepulcro, Jerusalém, via wikicommons

O cristianismo tem como crença    fundamental   que  Jesus de Nazaré é o  messias, morreu pelos  pecados do mundo e ressuscitou dos mortos.   Conforme afirma o Apóstolo Paulo "(...) Pois o   que primeiramente lhes transmiti foi o que   recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras, 5e apareceu a Pedro e depois aos Doze"(I Coríntios 15:3-4). Paulo faz uma declaração teológica, mas afirma se basear em uma tradição recebida, anterior a sua atuação como apóstolo, já que ele somente seria assim designado após uma aparição tardia do Jesus ressurreto, "como um nascido fora do tempo".

Uma conclusão histórica raramente contestada em relação a vida de Jesus de Nazaré, é, nas palavras do Professor John Dominic Crossan"(...) que ele foi crucificado, é tão certo quanto qualquer coisa histórica pode ser, já que tanto Josefo quanto Tácito (...) concordam com os relatos cristãos sobre pelo menos esse fato básico (...)"[1].  Os evangelhos,  Flávio Josefo, Cornélio Tácito, bem como outras fontes judaicas e greco-romanas também concordam que Jesus foi executado sob o Prefeito Pôncio Pilatos, em Jerusalém. Contudo, uma vez crucificado, onde foi sepultado? E tendo sido sepultado, como se originaram os relatos de sua ressureição? Qual foi a memória do seu local de suplício e de enterro, considerando os quase três séculos que separam a crucificação e a construção do primeiro grande monumento sobre o local em que teria sido sepultado, a Basílica do Santo Sepulcro. E porque a tradição que liga o sepultamento de Jesus a Igreja do Santo Sepulcro é tão mais favorecida entre os estudiosos em relação a outros "candidatos" mais recentes como a Tumba do Jardim, e até mesmo a famosa Tumba de Talpiot?

A tradição evangélica afirma que Jesus foi crucificado fora da cidade de Jerusalém (Hebreus 13:12), por volta do ano 30 DC, em um lugar chamado Gólgota ou Caveira (Marcos 15:22; Mateus 27:33, Lucas 23:33; João 19:17 a 20), que havia um caminho próximo por onde as pessoas passavam e zombavam dele (Mc. 15:29), que foi sepultado em um lugar relativamente próximo da execução (João 19:42), e que próximo a esse local de sepultamento havia um jardim (João 19:41). Nos anos seguintes, Jerusalém se expandiu, foi destruída em 70 DC, pelo futuro Imperador Tito, e reconstruída por Adriano pouco antes da grande rebelião de Bar Kochba, com seu nome alterado para Aelia Capitolina. Em 326, após a conversão do Imperador Constantino ao cristianismo, houve a "descoberta" da localização do túmulo. Esse evento é descrito pela Professora Maria Françoise Baslez (1946-2022):  
O evangelho de João o localiza num jardim próximo do Gólgota - no assim chamado lugar do "Crânio", diz ele com precisão, como o fazem também Mateus e Marcos, sugerindo uma pequena saliência em forma de calota rochosa. Parece que a memória cristã se esforçou desde as origens por salvaguardar a lembrança do lugar da morte e da ressureição de Cristo, apesar das vicissitudes por que passou o lugar em 135, quando o Imperador Adriano mandou erigir ali um templo a Afrodite e um fórum. Estes grandes trabalhos, que visavam transformar Jerusalém em colônia romana, ocultaram a lembrança de Jesus, mas também tiveram uma caráter conservador, já que a passagem original permaneceu intacta sob o muro de sustentação do Templo. Em 326, quando Constantino mandou procurar o túmulo de Jesus, foi indicado a seus arquitetos que era preciso cavar sob o templo romano. O tumulo, uma vez descoberto, foi coberto por uma rotunda, enquanto o rochedo do Gólgota foi conservado a céu aberto. Em seguida, o edíficio foi incessantemente retocado, destruído e reconstruído no decorrer das invasões, incêndios até as cruzadas, mas a arqueologia recente, desde as escavações realizadas entre 1961 e 1984 e retomadas em 2016-2017, tendem a confirmar a autenticidade deste lugar de memória. [2]

As circunstâncias em que o santo sepulcro foi localizado seriam, a princípio, um elemento a pesar contra sua autenticidade. Já sob reinado de Constantino, recém convertido ao cristianismo, em um processo que foi conduzido em grande parte por sua mãe, Helena, que era uma cristã devota. O próprio Constantino celebra a descoberta em uma carta ao Patriarca Macário de Jerusalém (no cargo entre 312-334 DC) "(...) o monumento de sua santíssima Paixão, há tanto tempo enterrado sob a terra, deveria ter permanecido desconhecido por uma série de anos tão longa, até que seu reaparecimento a seus servos agora libertados pela remoção daquele que era o inimigo comum de todos, é um fato que realmente supera toda admiração (...)"A descoberta do Santo Sepulcro aconteceu pouco depois da derrota e execução do rival (e antigo aliado) de Constantino, Licínio (e co-autor do Edito de Milão), garantindo a hegemonia de Constantino sobre todo o Império. 

No entanto, apesar dessas circunstâncias, há vários elementos que, em conjunto, indicam que o Santo Sepulcro é, muito provavelmente, o lugar de sepultamento de Jesus. Conforme Crossan e o Professor Jonathan Reed, da La Verne University, descrevem:

Teriam encontrado mesmo o lugar de sepultamento de Jesus? Pensamos que ao lado da Casa de Pedro em Cafarnaum, o Santo Sepulcro de Jerusalém é um dos poucos lugares sagrados cristãos dignos de credibilidade. A igreja constantiniana pode muito provavelmente ter sido erguida em cima do lugar que Jesus foi crucificado e o corpo sepultado. Estava dentro do terceiro muro da parte norte de Jerusalém construído por Agripa I (41-44 DC), mas do lado de fora do segundo muro que demarcava a cidade no tempo de Jesus. Estava fora, portanto, da cidade do primeiro século, como prescreviam os judeus para crucifixões e sepultamentos. Os arqueólogos de Constantino acharam, depois, túmulos de um cemitério quando cavavam debaixo do templo de Afrodite. As camadas escavadas por Constantino foram corroboradas por recentes missões estatigraficas. Encontraram paredes de uma estrutura monumental do tempo de Adriano que deveriam ter pertencido ao templo da deusa. Debaixo desse complexo havia muitos túmulos do primeiro século ou anteriores a ele. Antes dessas descobertas o lugar estava desabitado e era uma pedreira. [3]

Fonte: Jerusalem no período do Segundo Templo: Map,”
The Land of Israel / Palestine: Image Database, accessed July 13, 2023,
https://image-database.nes.lsa.umich.edu/items/show/182 

Os cemitérios no antigo Israel, segundo a tradição judaica, deveriam ser localizados fora da cidade. Assim, alguns dos principais complexos funerários como o do Monte das Oliveiras,  e do Monte Scopus, ficam fora dos muros da antiga cidade. Até a construção da terceira muralha, o lugar onde hoje se localiza a Igreja do Santo Sepulcro não fazia parte da cidade antiga de Jerusalém (ou seja, fora do muros). A construção da terceira muralha foi iniciada por volta do ano 41 DC, quando Herodes Agripa I foi nomeado pelo Imperador Claúdio como Rei sobre toda a Judéia, como seu avô, Herodes, o Grande, havia sido (37 DC-4AC). Flávio Josefo, ao descrever a Jerusalém de seu tempo, chama a muralha construída por Herodes, o Grande, de segunda muralha "(...) que se iniciava no portão chamado de "Genate", pertencente ao primeiro portão; e abrangia apenas o bairro norte da cidade e chegava até a torre Antônia (...)".[4] Já o terceiro muro, de Herodes Agripa, se estendia "(...) da torre Hipicus (Fasael), de onde chegava até o bairro norte da cidade, e a torre Fesefina, e então se estendia até chegar aos monumentos de Helena, que era rainha de Adiabene, filha de Izates; estendeu-se então por uma grande extensão e passou pelas cavernas sepulcrais dos reis, e dobrou-se novamente na torre da esquina, no monumento chamado "Monumento do Pisador", e junta-se à velha muralha no vale chamado "Vale do Cedron"(...) [4]. A Jerusalém do tempo dos reis bíblicos existia principalmente no sul e leste da atual cidade velha. A segunda e, principalmente, a terceira muralha marcam uma significativa expansão dos limites da cidade, com direção ao norte e oeste, como pode ser visto no mapa acima

O Rei da Galiléia, Herodes Antipas (4-37 DC), nos relata Flávio Josefo, havia tido problemas em edificar sua nova capital, Tiberíades, por volta do ano 20 DC. Apesar da cidade ter sido construída as margens do Lago da Galiléia, em uma região considerada aprazível, e de Antipas ter construído "casas muito boas" para que alguns colonos pobres fossem morar lá, teve que força-los a habitar na cidade, já que muitos judeus piedosos consideravam que os "que moravam lá estavam transgredindo a lei", pois "muitos sepulcros tiveram que ser retirados para que a cidade de Tiberíades fosse edificada, uma vez que nossas leis declaram tais habitações como imundas" [5]. Como observa Magen Broshi (1929-2020), que foi arqueólogo do Museu de Israel, e professor convidado da Universidade Bar Ilan, "

De mais a mais, antigas tumbas judaicas encontradas na vizinhança apontam para existência de um local de sepultamento anterior ao ano 70 DC. Está dentro dos limites dos muros da cidade, e parece estar situado de forma estranha, uma vez que as escrituras nos dizem que o local estava "próximo da cidade" (João 19:20) ou "do lado de fora da porta" (Hebreus 13:12). A execução ou o sepultamento dentro de uma área colonizada eram estritamente proibidos segundo a Lei judaica, ainda mais na Cidade Santa, onde antigas tumbas ficavam do lado de fora dos muros da cidade. Por ocasião da crucificação, entretanto, esta área estava realmente do lado de fora das muralhas. Ela seria cercada pela assim chamada "terceira muralha" somente uma década mais tarde". [6]


Maquete (1:50) da Jerusalém do tempo de Jesus (segundo templo), em exposição no Museu de Israel. Via wikicommons.  

Ou seja,  o túmulo encontrado pelos arqueólogos de Constantino, e no qual também foram encontrados outros pela escavações arqueológicas modernas, se localizava fora do perímetro do segundo muro, e dentro do terceiro. Assim, só pode ter existido como lugar de sepultamento em um período de tempo de 40 a 50 anos, mais ou menos, na primeira metade do século I DC.  Além disso, Jerusalém foi totalmente destruída durante a primeira guerra judaica (66-73DC), e reconstruída por volta de 130 DC, tendo sido construído sob o local um templo dedicado a Vênus (Afrodite). Sendo assim, fica evidenciada a existência de uma memória cristã antiga, de antes de 40DC, de um cemitério ali localizado, que é confirmada pela arqueologia.

Professores Gerd Theisen (Universidade de Heildelberg) e Annete Merz (Universidade de Utrecht), comentam que "sem uma antiga tradição local sobre o túmulo de Jesus ninguém teria procurado seu túmulo no meio da cidade". Consolidam assim os argumentos pelos quais a localização da Gólgota e do Santo Sepulcro se baseiam em tradições contemporâneas a crucificação:

O túmulo "descoberto" na época de Constantino não pode ser uma "invenção". Ele foi descoberto no meio da cidade bizantina, sob um templo de Vênus associada à fundação de Aelia Capitolina em 136 DC. Na Antiguidade, os túmulos ficavam fora da cidade. Sem uma antiga tradição local sobre o túmulo de Jesus, ninguém teria procurado seu túmulo no meio da cidadeÉ altamente provável que na época de Jesus seu túmulo estivesse fora dos muros da cidade. Herodes Agripa I foi o primeiro a mandar construir um terceiro muro entre 41 e 44 DC em virtude do qual o Gólgota e o túmulo vieram a se localizar entre os muros. Por conseguinte, é provável que já houvesse no séc. I uma tradição local que situava o túmulo de Jesus onde ele é hoje venerado na Igreja do Santo Sepulcro. O túmulo na Igreja do Santo Sepulcro é um "túmulo novo". Faltam os diversos loculi adicionais que partem da câmara principal. Além disso, ele está na proximidade do Gólgota, numa pedreira abandonada que poderia muito bem ter servido como Jardim. Tudo isso se coaduna com João 19:41. A tradição joanina pressupõe um tipo de túmulo que podemos ver hoje. [7]

Um ponto relevante, antes de prosseguir, são as circunstâncias em que Jesus foi sepultado. Jesus foi vítima de uma execução por crucificação, tendo sido acusado de ser um pretendente real (rei dos judeus). Vítimas de crucificação, principalmente na ocorrência de rebeliões contra Roma, eram deixadas expostas aos elementos por vários dias, e depois serviam de alimento as aves de rapina [8]. Nas palavras de Crossan "(...) em circunstâncias normais, os soldados guardavam o corpo até a morte e depois ele era deixado ao corvo, cão carniceiro ou animais selvagens, para que acabassem com trabalho brutal" (...) [8]. Assim, Apiano nos conta que após Marco Licinio Crasso derrotar os escravos rebeldes liderados por Espártaco, na Batalha do Rio Silárico, os seis mil prisioneiros foram crucificados na estrada entre Roma e Cápua [9]. Josefo nos conta que Quintilio Varo crucificou em Jerusalém 2 mil judeus acusados de envolvimento na revolta após a morte de Herodes, liderada por Simão de Peréia, Atronges e Judas Galileu [9]. Josefo também nos conta que, no auge do cerco de Jerusalém, Tito ordenou crucificar até 500 judeus por dia, diante dos muros, de forma que chegou a faltar lugar e madeira para tantas cruzes [9]. Crossan também nos diz que a crucificação era "terrorismo de estado", o que é dito de outra forma numa declaração atribuída a Quintiliano (35-96 DC), "sempre que crucificamos os culpados, as estradas mais movimentadas são escolhidas, onde o maior número possível de pessoas possam ser impactadas pelo medo. Pois as penalidades não se medem tanto pela retribuição, mas para servir de exemplo"[10] . Segundo Suetônio, durante as guerras civis da republica Romana, o futuro imperador Augusto, após derrotar Bruto e Cassio em Filipi, recebendo um pedido de clemência de um prisioneiro - que, humildemente, apenas pedia que seu corpo fosse enterrado após a execução - disse "os pássaros em breve resolverão o problema" [11].

Retábulo de Isenheim, de Mathias Grunewald e Nikolau de Hagenau, 1512-1516, Museu de Unterlinden, Colmar, France, via wikicommons

Por outro lado, a crucificação era de uma natureza tão brutal e chocante, que levou a algumas limitações de seu emprego em tempos de paz. Os casos acima ocorreram durante insurreições provinciais generalizadas ou nas guerra civis de Júlio Cesar e Otávio Augusto. Em tempos "normais" (ou em lugares não conflagrados), a crucificação não era aplicada contra cidadãos romanos. Assim, por exemplo, uma das acusações mais graves que Cicero faz contra o Governador da Sicília, Gaio Verres, foi de que ele havia mandado crucificar o cidadão romano Públio Gávio, o que era ilegal [12]. Para os demais súditos do império,  Filo de Alexandria utiliza como uma das provas da crueldade e incompetência do  governador do Egito, Avílio Flaco, o fato dele não deixar que os corpos de pessoas crucificadas fossem, nas vésperas de festivais e feriados, "retirados da cruz, e dados a seus familiares, para que pudessem ser adequadamente sepultados" (Contra Flaco, 10:83). Josefo também relata a preocupação dos judeus com os sepultamentos, "pois eles costumar tomar os corpos dos condenados e crucificados, e enterra-los antes do por do sol" (Guerras Judaicas, Livro 4. capítulo V, §2), em observância a Deuteronômio 21:22-23, "(...) Se um homem culpado de um crime que mereça a morte for morto e pendurado num madeiro, não deixem o corpo no madeiro durante a noite. Enterrem-no naquele mesmo dia, porque qualquer que for pendurado num madeiro está debaixo da maldição de Deus. Não contaminem a terra que o Senhor, o seu Deus, lhes dá por herança (...)".  Além disso, justamente nas proximidades de Jerusalém,  foram encontrados os restos mortais de um individuo crucificado no século I DC, chamado Yehohanan son of Hagakol, em um ossuário (pequena urna funerária, onde os ossos da pessoa falecida eram acomodados um ano após o sepultamento) numa tumba familiar A constatação de Yehohanan foi crucificado decorreu de um acaso. O osso do tornozelo foi transpassado por um prego, que por estar torto, ficou preso na madeira. Quando o crucificado foi retirado do madeiro, foi necessário retirar também um pedaço da cruz, de forma que madeiro, prego e osso do calcanhar ficaram juntos. Assim, as circunstâncias peculiares da retirada da cruz, se somam ao fato de que Yehohanam veio de uma família abastada (pelo simples fato de ter sido enterrado em um sepulcro familiar), e que os romanos permitiram seu enterro. A partir dessa evidência arqueológica e literária, a Professora  Jodi Magness (Universidade da Carolina do Norte em Chapell Hill), sustenta que "(...) embora vítimas de crucificação fossem, em algumas ocasiões, deixadas em suas cruzes por dias, esta não era a situação mais usual (...)". [13] O evangelho deixa claro, porém, que era uma situação tensa, as mulheres que seguiam de Jesus observavam "de longe"(Mc 15:40), e o pedido de José de Arimatéia a Pilatos para sepultar Jesus era "ousado" (Mc 15:43).

 Maurice Casey (1942-2014), que foi professor da Universidade de Nottingham, aponta passagem na Mishná, em que as cortes judaicas mantinham sepulturas para criminosos executados: "E eles não serão enterrados junto de seus ancestrais, mas duas sepulturas serão preparadas pelo tribunal, uma para os apedrejados e queimados, outra para os estrangulados e decapitados"(Mishná Sinédrio VI.11)".Casey observa que mesmo executado pelos romanos, a sepultura do tribunal judaico poderia ser utilizada, sendo consistente com a tradição contida em Atos 13:27-29, onde os "habitantes de Jerusalém e seus lideres (...) pediram a Pilatos que o mandasse executar (...) tiraram-no do madeiro e o colocaram num sepulcro", e com o relato de Marcos 15:46, em que José de Arimateia manda sepultar Jesus, e Maria Madalena e Maria, Mãe de Tiago e José, apenas acompanham de longe (v. 40 e 47), sem "qualquer evidência de atuarem juntos, ou cooperando". Na verdade, segundo Casey, José de Arimateia estaria, na verdade, "submetido aos principais sacerdotes", agindo de forma piedosa em garantir o sepultamento de um desassistido.[14]. 

Casey, sustenta, portanto, que Jesus foi sepultado como um criminoso, longe de seus ancestrais, sem os ritos funerários adequados, em um túmulo destinado a executados. Já para Jodi Magness "(...) os relatos dos evangelhos sobre o sepultamento de Jesus são amplamente consistentes com as evidências arqueológicas. Embora a arqueologia não prove que houve um seguidor de Jesus chamado José de Arimatéia ou que Pôncio Pilatos concedeu seu pedido pelo corpo de Jesus, os relatos do Evangelho que descrevem a remoção de Jesus da cruz e o sepultamento são consistentes com as evidências arqueológicas e com a lei judaica (...)"[15]. A opinião é parecida com a de Geza Vermes (1924-2013), que foi professor de estudos judaicos em Oxford, que reconstrói os eventos da seguinte forma, "(...) com a permissão de Pilatos, José de Arimatéia, ou Jose e Nicodemos, deitou o corpo de Jesus numa tumba nova talhada na pedra pouco antes do início da festa da Páscoa e do Sabá, no sábado, 15 Nisan (...)"[16]. Crossan, porém, diverge "(...) se os romanos não observavam o decreto deuteronômico, o corpo de Jesus seria deixado na cruz para os animais selvagens. E seus seguidores, que haviam fugido, saberiam disso. Se os romanos observavam o decreto, os soldados se certificariam de que Jesus estava morto e o sepultariam como parte de seu trabalho. Em ambos os casos, seu corpo deixado na cruz ou em uma cova rasa mal coberta com terra e pedras, os cães estavam a espreita (...)" [17]. Mesmo assim, Crossan, como indicado acima (em trabalho conjunto com Jonathan Reed) acredita que a Igreja do Santo Sepulcro marca o local em que Jesus foi executado e possivelmente sepultado "A Igreja do Santo Sepulcro de Constantino foi construída em cima de um cemitério e tudo indica que esteja perto do lugar onde Jesus fora crucificado"[18]

Uma descrição do contexto arqueológico do sítio da igreja do Santo Sepulcro é apresentada pelo Professor James Charlesworth, do Seminário Teológico de Princeton.

Nos últimos anos da década de sessenta, Kenyon descobriu provas de que a muralha que hoje circunda o sítio tradicional do Calvário, em certos pontos, apoia-se numa fundação construída em 41 E.C, ou pouco depois, por Herodes Agripa. Em consequência, em 30 E.C. o lugar tradicional teria ficado fora  da cidade. (...) nos últimos anos da década de setenta, arqueólogos que trabalhavam no sítio do Gólgota desenterraram fundações do Foro Romano de Adriano, onde o Templo de Afrodite foi construído por volta de 135 E.C. Os romanos haviam provavelmente construído esse templo para cobrir o Golgota e talvez o túmulo de Jesus. Agora duas importantes descobertas confirmam, na minha opinião, que a igreja do Santo Sepulcro abriga a rocha em que Jesus foi crucificado (...) M. Broschi, em 1976, descobriu restos de uma muralha herodiana na seção nordeste da própria igreja. Consequentemente, em 30 E.C, o Gólgota ficava fora da muralha ocidental. [19] 
Ainda mais importante que isso é o fato de que ficou agora claro, graças as escavações de D. Katsiminibinis nos últimos anos da década de setenta, que a rocha do Cálvario ainda se ergue apoximadamente 13 metros acima do leito da rocha. A rocha exposta mostra sinais de antigo trabalho de pedreiro; é uma porção rejeitada de uma antiga pedra branca anterior ao exílio israelita, malaki, pedreira. Na altura do primeiro século AEC esse sítio evoluiu de uma pedreira do sétimo ou oitavo século até tornar-se um depósito de entulho e, finalmente, um cemitério, já que são visíveis túmulos judeus anteriores a 70 E.C. [19]   

 Como já exposto aqui no adcummulus, um princípio fundamental da arqueologia é que as várias camadas de ocupação humana, os contextos, vão se sobrepondo a medida que o tempo vai passando, de forma  que é possível inferir a história da ocupação do sítio em função de sua estratigrafia. Então os vários contextos sucessivos de ocupação indicam a construção da atual igreja (século IV DC), sobre o templo de Afrodite e Foro da Aelia (século II DC), um cemitério (sec I DC) e antes um depósito de entulho, remanescente de uma pedreira que existiu desde tempos antigos, a partir do século VII-VIII AC. No tempo de Jesus, observa Charlesworth [19], o local estava perto de uma estrada pública importante, o que é refletido na memória de transeuntes zombando de Jesus, (Mc 15:29), atendendo as requisitos romanos para crucificação ("sempre que crucificamos os culpados, as estradas mais movimentadas são escolhidas, conforme Quintiliano, acima), e judaicos, pouco além dos muros da cidade ("fora do arraial", conforme Levítico 24:14,"mas pouco além dele"Mishná Sanhedrin 6.1) [19], em frente ao portão Genate ("jardim", cf João 19:42), onde a primeira e o segunda muralha se encontravam. A memoria incorporada a tradição evangélica de uma antiga pedreira no local do Gólgota, fora de Jerusalém, é compatível com as recorrentes citações nos textos neotestamentários (ex.  Atos 4.11, Romanos 9:33 e I Pedro 2:7) ao Salmo 118:22 "A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular", uma das quais na parábola dos lavradores maus "Assim eles o agarraram [o Filho], e o mataram, e o lançaram para fora da vinha (...) Vocês nunca leram esta passagem das Escrituras? ‘A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isso vem do Senhor, e é algo maravilhoso para nós (...)" (Marcos 12:8 e 10).

Mapa de Madaba: Mosaico no piso da Igreja de São Jorge em Madaba, Jordânia, do século VI
com a mais antiga representação do oriente médio, palestina, e, principalmente, Jerusalém.

Professora Joan E Taylor, da Universidade de Londres, chama a atenção a menção do Bispo Melito de Sardes (II século), em sua homília "Peri Pasca"(Sobre a Páscoa) "(...) Um assassinato extraordinário aconteceu no centro de Jerusalém, na cidade dedicada à lei de Deus, na cidade dos hebreus, na cidade dos profetas, na cidade considerada justa (...) no meio da rua principal, mesmo no centro da cidade, enquanto todos assistiam, que o injusto assassinato deste justo ocorreu (...)" (Peri Pasca, 94). Melito escreveu entre 160-170 DC, cerca de 30 anos após a reconstrução de Jerusalém sobre Adriano, sobre as ruínas da cidade destruída por Tito em 70 DC. O Templo de Vênus/Afrodite (sobre o qual Constantino depois construiria a Igreja do Santo Sepulcro) ficava junto ao Foro na Aelia Capitolina de Adriano. Isso é relevante porque a partir de 140 DC aquele ponto ficava na parte central da cidade reconstruída (um "centro novo"), junto a plateia ("rua larga" ou rua principal), muito improvável para um crucificação, diferentemente da Jerusalém anterior a 40 DC, onde ficava, muito provavelmente, junto a estradas mas logo fora dos muros. Mais significativo ainda é o fato de que, como provavelmente sabido pelo Bispo Melito, era inconsistente com o descrito no novo testamento, que dizia que Jesus foi crucificado fora da cidade. O fato de cristãos como Melito indicarem para um local da crucificação em pleno centro de Jerusalém, mesmo que fosse remoto para eles que mais de cem anos antes esse local ficava fora da cidade é evidência que uma memória antiga foi conservada, e existia séculos antes de Constantino. Taylor estima que o sítio da crucificação ficava mais ou menos 200 metros ao sul do lugar hoje indicado na igreja do Santo Sepulcro, na junção de duas importantes estradas, que iam para o norte (na direção de Samaria e Damasco) e oeste (para Emaus, Lida e Jope).  Taylor conclui a partir da evidência disponível que "de qualquer forma, os cristãos da Palestina sabiam que o imperador havia coberto a tumba, e colocado uma estátua de Jupiter (como ele mesmo?) no lugar. Eles também recordaram a local da crucificação sob a plateia (rua larga), mais provavelmente o decumanus da Aélia, e contado a visitantes como Melito sobre isso". [20]. 

Dan Bahat, que foi arqueólogo distrital de Jerusalém e professor da Universidade Bar Ilan, pondera as várias questões envolvidas em relação ao sítio da igreja do Santo Sepulcro, e sua plausibilidade como a identificação com a Gólgota e o tumba mencionada no novo testamento. 

 Was the Constantinian rotunda actually built over the true site of Jesus’ burial? Although we can never be certain, it seems very likely that it was. As we have seen, the site was a turn-of-the-era cemetery. The cemetery, including Jesus’ tomb, had itself been buried for nearly 300 years. The fact that it had indeed been a cemetery, and that this memory of Jesus’ tomb survived despite Hadrian’s burial of it with his enclosure fill, speaks to the authenticity of the site. Moreover, the fact that the Christian community in Jerusalem was never dispersed during this period, and that its succession of bishops was never interrupted supports the accuracy of the preserved memory that Jesus had been crucified and buried here. (traduçãoA rotunda Constantiniana foi realmente construída sobre o verdadeiro local do sepultamento de Jesus? Embora nunca possamos ter certeza, parece muito provável que tenha sido. Como vimos, o local era um cemitério do início da era cristã. O cemitério, incluindo o túmulo de Jesus, estava enterrado há quase 300 anos. O fato de ter sido de fato um cemitério e de essa memória da tumba de Jesus ter sobrevivido, apesar do fato de Adriano o ter soterrado com preenchimento do recinto, fala da autenticidade do local. Além disso, o fato de a comunidade cristã em Jerusalém nunca ter se dispersado durante esse período e de sua sucessão de bispos nunca ter sido interrompida apóia a precisão da memória preservada de que Jesus foi crucificado e sepultado aqui.[21]

Bahat aponta a improbabilidade de Constantino ter encontrado um lugar semelhante ao da atual igreja do Santo Sepulcro sem uma "pista" do que estava buscando. Era um lugar apropriado a execução e um cemitério nos anos 30 DC, logo na saída da cidade. Foi incorporado a cidade em 40 DC, segundo Josefo. Posteriormente a cidade foi destruída em 70 DC, e reconstruída em 135 DC, localizado agora na rua principal no novo centro da nova cidade, com um templo romano construído lá. E duzentos anos depois, a busca ocorre ali, e não nos vários complexos funerários fora da cidade. A hipótese mais provável é que havia a memória, conservada pela comunidade cristão palestina que, embora tenha perdido relevância, se manteve desde os anos 30 da era cristã liderada, pelo menos nas primeiras gerações de cristãos, por membros da família de Jesus e seus descendentes. Tiago, irmão de Jesus, chamado o Justo, foi citado pelo apóstolo Paulo como uma das colunas da Igreja de Jerusalém (Gálatas 2:9), e sua execução é relatada por JosefoHegésipo, escrevendo em meados do século II, também menciona a execução de Tiago em Jerusalém, pouco antes da queda, acrescentando o papel de outros membros da família de Jesus, como Simeão, Judas e seus netos [22]. Tempos depois, no início do século III DC, é a vez de Julio Africano descrever os desposyni, os descendentes dos irmãos de Jesus que se concentravam na Galileia.  Assim, o argumento de Bahat, de que a memória do local de execução foi preservada pela comunidade cristã palestina e bispos de Jerusalém em sucessão é bastante plausível. Destacamos o papel relevante, e atestado em várias fontes, de Tiago, Simão, Judas e seus descendentes e seguidores na conservação de memórias e tradições evangélicas, frequentemente, e desde muito cedo, em conflito com visões dominantes das comunidades gentias paulinas (Atos 15; Gl 2:12; Tiago 2:14-17) e, posteriormente, na Igreja de Roma. Como vimos acima, relatos como o do Bispo Melito, em meados do século II DC, indicando o local da execução no centro de Jerusalém, contra todas as possibilidades, é uma das mais fortes evidências em seu favor.

Perhaps the strongest argument in favor of the authenticity of the site, however, is that it must have been regarded as such an unlikely site when pointed out to Constantine’s mother Queen Helena in the fourth century. Then, as now, the site of what was to be the Church of the Holy Sepulchre was in a crowded urban location that must have seemed as strange to a fourth-century pilgrim as it does to a modern one. But we now know that its location perfectly fits first-century conditions. (traduçãoTalvez o argumento mais forte a favor da autenticidade do local, no entanto, seja que ele deve ter sido considerado um local tão improvável quando apontado para a mãe de Constantino, a rainha Helena, no século IV. Então, como agora, o local do que viria a ser a Igreja do Santo Sepulcro ficava em um local urbano lotado que deve ter parecido tão estranho para um peregrino do século IV quanto para um moderno. Mas agora sabemos que sua localização se encaixa perfeitamente nas condições do primeiro século.[21]

Bahat então revê os vários elementos incidentais nos relatos evangélicos, a luz da evidência arqueológica disponível, e conclui que a Igreja do Santo Sepulcro tem uma reinvindição forte. Embora não acha um elemento decisivo e indiscutível em seu favor, há vários indícios e elementos circunstâncias, que tomados isoladamente não seriam significativos, mas, em conjunto, apontam para uma tradição sólida e corroborada factualmente.

The Gospels tell us that Jesus was buried “near the city” (John 19:20); the site we are considering was then just outside the city, the city wall being only about 500 feet to the south and 350 feet to the east. We are also told the site was in a garden (John 19:41), which is at the very least consistent with the evidence we have of the first century condition of the site. (traduçãoOs Evangelhos nos dizem que Jesus foi sepultado “perto da cidade” (João 19:20); o local que estamos considerando era então fora da cidade, a muralha da cidade estando a apenas cerca de 500 pés ao sul e 350 pés a leste. Também nos é dito que o local estava em um jardim (João 19:41), o que é no mínimo consistente com a evidência que temos da condição do local no primeiro século. [23]

A Igreja do Santo Sepulcro, construída e reconstruída diversas vezes desde o tempo de Constantino, em que se refletem as várias divisões da cristandade. patrimônio artístico e cultural da humanidade, se mantém imponente por dezessete séculos. Apesar de reconhecermos que certezas são muito raras, e na maior parte das vezes, precipitadas, concordamos com Dan Bahat que "(...) Podemos não estar absolutamente certos de que o local da Igreja do Santo Sepulcro seja o local do sepultamento de Jesus, mas certamente não temos outro local que possa reivindicar quase o mesmo peso e realmente não temos motivos para rejeitar a autenticidade do local. (...).[23]

Referências Bibliográficas

[1] John Dominic Crossan (1994) Jesus, Uma Biografia Revolucionária, fl. 155. Editora Imago, 1995
[2] Marie Françoise Baslez (2017), Jesus Dicionário Histórico dos Evangelhos, fls 160-161. Editora Vozes, 2018
[3] John Dominic Crossan e Jonathan L Reed (2002) Em Busca de Jesus, Debaixo das Pedras, atrás dos textos, fls,. 270-271. Edições Paulinas, 2007
[4] Flávio Josefo, Guerras Judaicas, Livro V, capitulo IV, 2, Josephus (earlyjewishwritings.com)
[5] Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, Livro 18:36-37 (II, §3), Josephus (earlyjewishwritings.com)
[6] Magen Broshi (1998), A Topografia e Arqueologia da Paixão: Uma reconstrução da Via Dolorosa, in David Flusser, Jesus, fl. 214. Editora Perspectiva, 2002
[7] Gerd Thiessen e Annete Merz (1996), O Jesus Hístorico, um Manual, fl . 529, Edições Loyola, 2° edição, 2004
[8] John Dominic Crossan (1994), Jesus, Uma Biografia Revolucionária fls. 138-139
[9] Da revolta de Espartaco e crucificação de 6 mil de seus seguidores por Crasso, ver Guerras Civis, de Apiano de Alexandria, Livro 1, §120,  Appian on Spartacus - Livius;  Sobre as crucificações em Jerusalém sobre Quintilio Varo e Tito, ver Flávio Josefo, Guerras Judaicas, Livro II, V.2, e Livro V. capítulo XI.1] Josephus (earlyjewishwritings.com)
[10] Marco Fábio Quintiliano, Declamações Menores, 274. Conforme a versão editada por Harvard da obra, há dúvidas sobre a autoria de Quintiliano, sendo possível também associar a autoria a seus seguidores no segundo II DC
[11]  Caio Suetônio Tranquilo, Vidas dos Doze Cézares, Vida de Augusto, 13
[13] Jodi Magness (2006), What Did Jesus’ Tomb Look Like? · The BAS Library  Biblical Archaeology Review 32:1, January/February 2006. 
[14] Maurice Casey (2010) Jesus of Nazareth: An Independent Historian's Account of His Life and Teaching, fls. 449-450
[15] Jodi Magness (2006), What Did Jesus’ Tomb Look Like? · The BAS Library· The BAS Library Biblical Archaeology Review 32:1, January/February 2006. 
[16] Geza Vermes (2005), A Paixão, fl. 111. Editora Record, 2007.
[17] John Dominic Crossan  (1994), Jesus, Biografia Revolucionária fl. 163
[18] John Dominic Crossan e Jonathan L Reed (2002) Em Busca de Jesus, Debaixo das Pedras, atrás dos textos, fl. 271
[19] James Charlesworth (1988) Jesus Dentro do Judaismo, fl. 139-140. Editora Imago, 1992. Levítico 24:14 "Leve o que blasfemou para fora do acampamento. Todos aqueles que o ouviram colocarão as mãos sobre a cabeça dele, e a comunidade toda o apedrejará". Mishná Sanhedrin 6.1 "Quando o julgamento for concluído com um veredicto de culpado, com a condenação de apedrejamento, ele será levado para a execução. O local de apedrejamento é fora do tribunal e um pouco além dele, como é declarado a respeito de um blasfemador:Tira fora do acampamento aquele que praguejou, e todos os que o ouviram ponham as mãos sobre sua cabeça, e toda a congregação o apedreje” (Levítico 24:14).
[20] Joan E Taylor (1998) Golgotha: A Reconsideration of the Evidence for the Sites of Jesus' Crucifixion and Burial, New Testament Studies , Volume 44 , Issue 2 , April 1998 , pp. 180 - 203. Taylor era cética em relação a identificação do Gólgota e da tumba de Jesus com o sítio da Igreja do Santo Sepulcro, e este trabalho marcou uma revisão de sua posição. 
[21]  Dan Bahat (1986). “Does the Holy Sepulchre Church Mark the Burial of Jesus?” Biblical Archaeology Review 12.3 (1986): 26–45.
[22] Sobre a execução de Tiago, irmão de Jesus, ver Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, Livro XX, 9.1 Josephus, Antiquities Book XX (earlyjewishwritings.com); Os fragmentos da obra de Hegésipo, citados por Eusébio de Cesaréia, podem ser consultados aqui Hegesippus (Roberts-Donaldson translation) (earlychristianwritings.com) . A menção de Julio Africano aos descendentes da família de Jesus, estão na sua carta a Aristides, aqui CHURCH FATHERS: Extant Works (Julius Africanus) (newadvent.org)
[23]  Dan Bahat (1986)“Does the Holy Sepulchre Church Mark the Burial of Jesus?” Biblical Archaeology Review 12.3 (1986): 26–45.
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