Martírio de Perpétua, Felicidade, Revocato, Saturnino e Secundo, via wikicomons |
Víbia Perpétua (Cartago, 203 DC)
Conforme observamos em nosso post de agosto de 2010 aqui no adcummulus, "porque os cristãos foram perseguidos",
os episódios de perseguição aos cristãos até o governo de Décio (249
DC) eram esporádicos e curtos mas, frequentemente, muito violentos. Os
cristãos viviam em relativa tranquilidade, até que alguém tivesse
disposição suficiente em acusa-los publicamente, ou que algum
administrador provincial, zeloso de suas funções, decidisse reforçar o
culto público ao imperador, ou que um Imperador quisesse dar mais
ênfase as velhas tradições e ao culto aos deuses, ou que catástrofes
levassem a população a achar que o favor dos deuses devesse ser
reconquistado, castigando os "ateus" e "ímpios" cristãos.
Um desses episódios ocorreu na cidade de Cartago, atual Tunísia, no ano de 203. Uma jovem esposa e mãe, recém convertida a fé cristã, chamada Vibia Perpétua, pertencente a elite local, foi presa pelas autoridades romanas e condenada a morte, junto com alguns de seus irmãos na fé, Saturnino e Secundo, que eram homens livres, os escravos Revocato e Felicidade, além de seu mentor na fé, Satiro, que se entregou as autoridades quando soube da prisão de seus discipulos. Professora Mary Beard, da Universidade de Cambridge fornece mais alguns detalhes:
Um desses episódios ocorreu na cidade de Cartago, atual Tunísia, no ano de 203. Uma jovem esposa e mãe, recém convertida a fé cristã, chamada Vibia Perpétua, pertencente a elite local, foi presa pelas autoridades romanas e condenada a morte, junto com alguns de seus irmãos na fé, Saturnino e Secundo, que eram homens livres, os escravos Revocato e Felicidade, além de seu mentor na fé, Satiro, que se entregou as autoridades quando soube da prisão de seus discipulos. Professora Mary Beard, da Universidade de Cambridge fornece mais alguns detalhes:
One particularly revealing moment is described, in account of her own trial, by a christian woman who was sent to be killed by wild beasts in the amphitheatre in Roman Cartage in 203 CE. Vibia Perpétua, a newly converted Christian, was aged aboiut twenty-two, married and with a young baby, when she was arrested and brought before the procurator of the province, who was acting in place of the governor who had recently died. Her memoir is the most lenghty, personal and intimate account by a woman of her own experiences to have survived from the whole ancient world, dwelling on her anxieties about her child and the dreams that she experienced in prison before she was sent to the beasts. [1]
(Tradução) Um momento particularmente revelador é descrito, relatando seu próprio julgamento, por uma mulher cristã que foi enviada para ser morta por feras no anfiteatro da Cartago Romana em 203 DC. Vibia Perpétua, uma cristã recém-convertida, tinha 22 anos de idade, era casada e tinha um bebê, quando foi presa e levada ao procurador da província, que estava agindo no lugar do governador que havia morrido recentemente. Seu livro de memórias é o mais longo, pessoal e íntimo relato de uma mulher de suas próprias experiências que sobreviveu de todo o mundo antigo, insistindo em suas ansiedades sobre seu filho e os sonhos que experimentou na prisão antes de ser mandada às feras.
Tertuliano, escrevendo no inicio do século III DC, seu tratado sobre a alma, descreve a mártir Perpétua e suas revelações
"Como a heróica mártir Perpetua, no dia da sua paixão, viu apenas os seus companheiros mártires lá, na revelação que recebeu do Paraíso, se não fosse pelo fato da espada que guardava a entrada não permitia que ninguém a atravessasse, exceto aqueles que morreram em Cristo e não em Adão?" [2]Afora esta breve menção, a história de Perpétua é contada a partir de um texto conhecido como "A Paixão de Santa Perpétua, Santa Felicidade e seus companheiros", o documento é composto por uma introdução, elaborada pelo editor do texto, seguido de um diário de prisão, que teria sido escrito por Perpétua, bem como outra parte com as memórias de um certo Satiro, irmão na fé e companheiro de martírio. Por fim, o editor acrescentou um relato detalhado da morte de Perpétua e seus companheiros na Arena. O documento existe em manuscritos em latim e grego (que seria uma tradução), bem como uma versão resumida "Os Atos de Perpétua e Felicidade".
Os eventos em Cartago estão inseridos no contexto de ações de governantes locais, ou movimentos periódicos, que esporadicamente perturbavam os cristãos. Cerca de 20 anos antes, Blandina e muitos outros cristãos foram mortos em Lyon (França), assim como os 12 mártires de Scila (Numidia, atual Tunísia). Professora Francoise Thelamon, da Universidade de Rouen, situa o martírio de Perpétua entre mais alguns outros do mesmo período:
Mas houve perseguições. Algumas visavam os convertidos, os catecúmenos e os recém batizados, assim como seus catequistas; em Alexandria em 202-203; em Cartago, para onde são levados vários catecúmenos, entre eles duas jovens, Perpétua e Felicidade; julgados e condenados a serem jogados as feras, são executados em 7 de março de 203, com seu catequista, que os batizou na prisão; eles se haviam recusado a vestir, os homens, a veste dos sacerdotes de Saturno, as mulheres a das iniciadas de Ceres, para que seu martírio não fosse transformado em sacrifício aos deuses da África romana. As denúncias e a pressão popular sempre provocam surtos de violência, como o massacre anticristão de 249, em Alexandria. [3].
Mosaico de Perpétua: Basilica Eufrasiana, Porec,
Croácia, via wikicommons
|
Entretanto, para utilizar a vida de Perpétua e seus amigos para os nossos propósitos, temos que avaliar a confiabilidade da fonte.
Professor Timothy D Barnes , da Universidade de Toronto (aposentado), observa que a opinião dominante dos estudiosos, é que a "Paixão de Santa Perpétua" está entre o grupo de atos de martírio, anteriores a perseguição Deciana (250 DC), com provável historicidade, junto com os Martírio de Policarpo, de Justino Mártir, e dos Mártires de Lyon, os Atos do Martíres de Scilla, e o martírio de Ptolomeu e Lucio (contada na Segunda Apologia, de Justino Martir). [4]
Professores Jan Bremmer (Universidade de Groningen) e Marco Formisano (Universidade de Ghent) editaram, em 2007, uma coleção de ensaios que reúne a contribuição de vários pesquisadores, e em um artigo conjunto, sustentam a teoria tradicional do documento com três vozes autoriais, o editor-compilador, e os diários de Perpétua e Satiro. Assim, suportam tanto a historicidade como autenticidade do texto [5].
Emanuela Prinzivalli, da Universidade de la Sapienza (Roma), aponta as razões estilísticas que levam os estudiosos a aceitar a autenticidade do relato:
Thus was born the passion of Perpetua and Felicity (Passio Perpetuae et Felicitatis), a rare jewel of early christian literature and a literary prototype for a specific genre of Passiones in Africa. The amazement aroused in scholarly circles by this woman's achievement has sometimes bordered on incredulity, and some have wondered if her diary were not a clever piece of literary forgery. Meticolous analysis of the various sections of the Passion of Perpetua has shown that there such great differences between the language used by the compiler-editor and the language used by the author of the diary, that it is extremely unlikely that they were written by the same person, unless he (or she) were the cleverest forger in the whole antiquity. (Tradução) Assim nasceu a “Paixão de Perpetua e Felicidade” (Passio Perpetuae et Felicitatis), uma jóia rara da literatura cristã primitiva e um protótipo literário para um gênero específico de Paixões na Africa. O assombro despertado nos círculos acadêmicos pelas realizações dessa mulher às vezes beirou a incredulidade, e alguns se perguntaram se o diário dela não era uma hábil inteligente de falsificação literária. A meticulosa análise das várias seções da Paixão de Perpétua mostrou que existem grandes diferenças entre a linguagem usada pelo compilador-editor e a linguagem usada pelo autor do diário, que é extremamente improvável que fossem escritas pela mesma pessoa, a menos que ele (ou ela) fosse o mais brilhante falsificador em toda a antiguidade. [6]
Além das razões estilísticas, existem evidências associadas a verossimilhança frente ao contexto. Tais elementos levaram um estudioso que era inicialmente cético em relação a autenticidade do relato, o Professor Thomas Hefferman, Universidade do Tennessee, a reconsiderar sua posição:
I began my serious study of the text as a skeptic, believing the authenticity of the narrative a traditional pious fiction. Yet the more time I spent reading and pondering a host of issues concerning the narrative - for example, Tertullian's possible role in its composition, women's education in third century Roman North Africa, the role of the paterfamilias in the empire , the actuality that people were being executed in the most barbarous manner for their belief, the manuscript tradition, the presence of historical figures in narrative, the myriad details correctly identifying what we know of Roman prisons - the more my skepticism waned. I began to consider that perhaps the historical record could include a unique record that violates what we have come to read as normative and received. (...) I become increasingly persuaded that the Passion was indeed a document that preserved a memory of a actual event, a event which had surely changed through transmission but a whose core was a historically verifiable reality. ( Thomas J Hefferman, Passion of Perpetua and Felicity, fl. 8) (Tradução): Comecei meu estudo sério do texto como um cético, acreditando que a autenticidade da narrativa era uma ficção piedosa tradicional. No entanto, quanto mais tempo eu gastei lendo e refletindo sobre uma série de questões relacionadas com a narrativa - por exemplo, possível papel de Tertuliano em sua composição, a educação das mulheres no terceiro século Roman Norte da África, o papel do pai de família no império, a realidade que as pessoas sendo executadas da maneira mais bárbara por sua crença, a tradição manuscrita, a presença de figuras históricas na narrativa, a miríade de detalhes corretamente identificados do que sabemos das prisões romanas - mais meu ceticismo diminuiu. Comecei a considerar que talvez o registro histórico pudesse incluir um registro único que viola o que passamos a ler como normativo e recebido. (...) Eu me tornei cada vez mais convencido de que a Paixão era de fato um documento que preservava a memória de um evento real, um evento que certamente mudara através da transmissão, mas cujo núcleo era uma realidade historicamente verificável. [7]
Embora em minoria, o campo de estudiosos que considera incerta tanto a autenticidade do diário e/ou a historicidade da própria Perpétua, tem representantes de peso. Entre os que questionam tanto a autenticidade do diário quanto a historicidade do próprio evento, estão as Professoras Ross Kraemer, Brown University, e Judith Perkins, University of Saint Joseph [8]. Elas pontuam, entre outros fatores, dependências literárias do texto com outros relatos pagãos e judeus anteriores, bem como inconsistências históricas e legais, como lançar uma nobre romana a morte na Arena. Já outrpos membros do campo "minoritário", porém, como as Professoras Outi Lehtipuu, da Universidade de Helsinki, e Candida Moss, da Universidade de Birmingham, questionam a autoria de relatos como o de Perpétua, Policarpo e Justino, pelo menos em sua forma final, - concedendo, entretanto, a possibilidade de relatos orais ou escritos, que teriam usado usados como base para o texto atual - aceitando contudo, a historicidade básica de seus martírios [9][10]. Moss pondera que a descrição de Perpétua como bem educada, bem casada e de boa família é dada pelo editor/compilador, e que a leitura isolada do diário da recém convertida mártir, indica que teria sido uma concubina, não formalmente casada, o que eliminaria quase todas os problemas legais e históricos do relato. Moss observa ainda que os relatos históricos de martírio, podem se basear em relatos de testemunhas ou documentos legais, mas expandem, embelezam e interpretam a luz das necessidades e realidades de seu público, e, assim, a avaliação histórica desses relatos é sempre uma negociação. [10].
Desta forma, considerando os argumentos apresentados acima, tanto de critica literária e verossimilhança, e considerando a menção de Perpétua por Tertuliano, entendemos que, no mínimo, devemos pressupor a historicidade dos fatos básicos relatados no texto (o que corresponde não só a posição do campo majoritário, como é aceitável por boa parte dos estudiosos da "minoria"), e que a autenticidade do texto - seja diretamente escrito por Perpétua e Satiro, ou se baseado em seus relatos - é muito provável, embora com possíveis expansões do núcleo autobiográfico.
O relato inicia com a prisão de Perpétua e seus amigos e sendo visitada por seu Pai, que não era cristão. Ele tenta dissuadi-la:
Quando ainda estávamos presos, meu pai, por seu amor por mim, tentou me persuadir e abalar minha decisão.
Pai, eu disse: "você vê esse vaso aqui, por exemplo, ou esse cântaro, ou seja lá o que for? Sim, eu vejo, ele disse.
Então eu disse: "Será que poderíamos chama-lo por outro nome diferente de seu nome correto? E ele disse: "não".
Bem, eu também não posso ser chamada de qualquer outra coisa diferente daquilo que eu sou, uma cristã". Neste momento, meu pai se sentiu tão aborrecido com a palavra "cristã" que veio até mim como se quisesse arrancar meus olhos.[11]
Perturbadora, destruidora de lares. A fala de Perpétua soa quase revolucionária no contexto romano. Primeiro, porque embora fosse casada (e mãe) seu marido/companheiro não é mencionado em nenhum momento do relato, indicando que sua opção religiosa, ou sua prisão, levaram a um rompimento de seu relacionamento. Segundo, e mais importante, porque ela não segue a orientação de seu Pai, o que é "uma contestação direta aos valores romanos do patria potestas, o poder que o pai romano tinha sobre seus filhos, mesmo daqueles que já tinha se casado, como Perpétua". [12].
Perpétua e seus amigos são postos então em uma prisão escura, quente e superlotada, onde ficam sujeitos a extorsões dos soldados. Dois diáconos, chamados Tércio e Pompônio, se compadecem da situação de seus companheiros na fé e subornam os soldados para que Perpétua e seus amigos fossem deslocados para celas mais amplas e arejadas. Melhor alojada, Perpétua passa a receber visitas de sua mãe e irmãos, um deles cristão, sendo permitido também amamentar e depois ficar com seu filho. Neste interim, ela foi batizada. Lá também teria tido a oportunidade de escrever suas memórias. Com o passar do tempo, começam a contar com a ajuda de um dos guardas, chamado Pudêncio, que permite a visita de vários outros cristãos, e trata com respeito e cuidado os prisioneiros.
O fato dessa relativa liberdade na prisão romana não nos deve surpreender. O apóstolo Paulo escreveu algumas cartas na prisão ("o prisioneiro do Senhor), assim como Inácio de Antioquia. Aqui no adcummulus, em nosso texto de maio de 2009, em que falamos da imagem de Jesus como mestre e sábio, citamos o ensaio "da Amizade", de Luciano de Samosata, em que Demetrio assiste seu amigo Antifilio na prisão, visitando-o constantemente, suprindo com alimentação e roupas, e subornando os guardas, para fosse bem tratado. Da mesma forma, Proteus Peregrino, um filosofo que Luciano considerava um charlatão, e que fora cristão durante parte de sua vida, foi assistido por seus irmãos na fé na prisão "recebia toda a forma de atenção, não esporádica mas assídua. Desde o amanhecer viúvas idosas e crianças orfãs podiam ser vistas esperando perto da prisão, enquanto seus oficiais dormiam junto a ele depois de subornar os guardas (...)"
Durante o tempo em que foi mantida presa, até a execução, Perpétua relata várias experiências visionárias. No primeira, ela sobe por uma escada perigosa, sob a mira de várias armas. Ao fim de escada está uma serpente. Satiro e Perpétua passam pela escada e pela serpente, não sendo feridos. E chegam a um jardim, onde são saudados por homem de cabelo branco e uma multidão de vestes brancas, que lhes oferece leite, que tem sabor doce. Perpétua percebe então que sofrerá o martírio. No seguinte a sua condenação, ela tem uma visão em que seu irmão, morto aos 7 anos de idade, de câncer, chamado Dinocrates. Ela o vê em sofrimento, e passa a orar por ele, por vários dias, ao fim dos quais, "no dia em Geta fazia aniversário", Perpétua tem outra visão com Dinocrates feliz e saudável. Na véspera do martírio, Perpétua teve sua última visão. O diácono Pômponio a vinha chamar para o anfiteatro, e ao invés de bestas, ela viu um grande Egípcio. Ela se vê transformada em um homem, enfrenta o egípcio, e o derrota. Acorda, e se dá conta que sua verdadeira luta não seria a matéria, contra as feras, mas a espiritual, contra o demônio.
Enquanto isso, sua família tentou de várias formas dissuadi-la. No dia seguinte a prisão, Perpétua é visitada por seu Pai, que mais uma vez implora:
Tem piedade minha filha, de meus cabelos grisalhos. Tende piedade do teu pai, se eu for digno de ser chamado pai por ti. Se com estas mãos te levei a esta flor da tua idade, se te tenho preferido a todos os teus irmãos, não me entregues ao desprezo dos homens. Tenha em conta os seus irmãos, tenha em conta a sua mãe e sua tia, tenha em conta o seu filho, que não poderá viver sem você [13]
Após algum tempo na prisão, os prisioneiros são trazidos diante do Procurador Hilariano, que substituía o Proconsul Minucio Opimiano (seguindo a versão grega, uma vez é figura atestada no governo da província em 202/203 DC), que os interroga. Mary Beard descreve a cena:
Even in this account the frustration of her interrogator comes across, and his keenes to get her recant "Have pity on the white hairs of your father, have pity on your tiny baby" he urged her. Just make a sacrifice for the well being of emperor". I will not do so", she replied. Are you a Christian? he asked, now putting a formal question. When she said she was "Christiana sum" she was sentenced to death. The procurator was obviously baffled, and so it was the crowd who watched her die in the amphitheatre.(Tradução) Mesmo nesse relato, a frustração de seu interrogador se manifesta, bem como seu desejo de fazê-la se retratar "Tem pena dos cabelos brancos de seu pai, tenha piedade de seu pequenino bebê", ele insistiu. Basta fazer um sacrifício pelo bem estar do imperador ". Eu não farei isso", ela respondeu. Você é cristã? ele perguntou, agora colocando uma questão formal. Quando ela disse que ela era "Christiana sum", ela foi condenada à morte. O procurador estava obviamente perplexo, assim como a multidão que a viu morrer no Anfiteatro.[14]
Perturbadora da ordem, subversiva: Muitos deuses e religiões eram adorados no Império, os deuses olímpicos, os deuses ancestrais das várias populações do Império e fora dele, novas crenças e sistemas religiosos. Contudo, um elemento fundamental a unidade era o culto ao Imperador, que supunha, teria participação de todos os súditos do Império, ao recusar um "mero sacrifício para o bem do Imperador", Perpétua não só se declarava como adepta de uma crença nova e não reconhecida pelas autoridades, que seguia alguém que foi condenado como Rei dos Judeus, mas como se negava a um dever cívico considerado básico, e julgado vital para sobrevivência do Império. A recusa em participar do culto imperial irritava as autoridades muito mais do que as crenças cristãs, que seriam toleráveis para os que não fossem muito tradicionalistas. Todo o processo era feito para que o acusado se retratasse, se submetendo. Pouco importa se manteria suas convicções depois. Cem anos antes, como já comentamos aqui no adcummulus, o Imperador Trajano, respondendo a carta de Plínio, o Moço, que nada tinha encontrado de perigoso, criminoso, ou subversivo no grupo, determina que "(...) Eles não devem ser perseguidos. Se eles forem denunciados, e for provada a culpa, eles deverão ser punidos, com esta ressalva, qualquer um que negar que é cristão, e provar isso, istoé, adorando os nossos deuses, mesmo que tenha sido suspeito no passado, obterá perdão mediante seu arrependimento, mas acusações anônimas não devem ser permitidas (...)". Se houvesse submissão, mesmo que fingida, tudo ficaria bem. No entanto, a integridade de Perpétua e seu amigos selou seu destino. Foram condenados a serem lançados as feras.
Criminoso lançado aos leopardos. Mosaico de Piso Romano,
século III DC, Museu Arqueológico da Tunisia, wikicommons
|
Passados mais alguns dias, os condenados são trazidos para a arena, e o relato de Perpétua se encerra. O registro dos eventos no anfiteatro é dado pelo narrador/editor/compilador. Secundo havia morrido na prisão. Felicidade deu a luz a uma filha, e foi para a execução junto com seus companheiros. Ao entrar no anfiteatro recusam as vestes dos deuses pagãos, os homens, dos sacerdotes de Saturno, e as mulheres de Ceres. Sem se intimidar, Revocato, Saturnino e Satiro passam a provocar a multidão, que reage exigindo que os prisioneiros fossem açoitados. Após isso, um javali selvagem, um leopardo e o urso são lançados sobre os homens, e uma vaca selvagem contra as mulheres. Muito feridos, os condenados recebem o golpe de misericórdia dos gladiadores. O que executou Perpétua era novato, e as mãos dela conduziram sua espada para feri-la em seu pescoço
Mary Beard aponta outro elemento perturbador da ordem romana:
Roman blood sports obeyed a rather strict set of rules. It was animals and criminals and the slave underclass who met their deaths, not young mothers. In fact, "the crowd shuddered at the sught", when they saw that Perpetua's fellow martyr Felicitas had breasts dripping milk. So why on earth were the romans doing this? (Tradução) Os esportes de sangue romanos obedeciam a um conjunto bastante restrito de regras. As feras eram o meio pelo qual os criminosos e a classe baixa de escravos encontravam suas mortes, e não jovens mães. De fato, "a multidão estremeceu ao ver", quando viram que a colega de Perpetua, a mártir Felicitadade, tinha seios pingando leite. Então, por que diabos os romanos estavam fazendo isso? [15]
A imagem de uma mãe de um filho recém nascido, com seios vertendo leite, e de uma jovem mãe da elite romana lançada as feras, e morrendo com dignidade, o que tornava as coisas ainda piores. Como justificar isso. Professor Pierre Grimal (1912-1996) explica o que as multidões costumavam ver em eventos como esse:
Mas não nos esqueçamos, antes de protestarmos com horror, de que esses não eram os únicos espetáculos que se ofereciam a plebe (...) Frequentemente, também, os condenados que deviam enfrentar leões e ursos eram bandidos que tinham cometido muitos crimes, submetido viajantes a tortura, massacrado, pilhado, incendiado e se a justiça as vezes confundia com autênticos culpados os escravos fugitivos, cujo o único crime era terem querido escapar de um senhor desumano, é que, em épocas diferentes, a consciência dos homens não é sensível aos mesmos escrúpulos, e não que os romanos, tomados um a um, fossem mais cruéis ou mais depravados do que os homens do nosso tempo, capazes, por seu lado, de tolerar (desaprovando-os, às vezes, só com palavras) mil horrores dos quais os romanos não podiam ter nem idéia. [16].
O martírio de Perpétua ocorreu no reinado de Sétimo Severo. Como vimos no post anterior, nesse tempo, Marco Aurélio Prosenes galgava postos na hierarquia imperial, até chegar ao posto de mordomo de Caracalla, filho de Sétimo Severo, que, por sua vez, tinha tido uma ama de leite cristã. Em suma, " o próprio Imperador, beneficiário do culto em sua honra e cujo nome era invocado para executar os cristãos, mantinha mordomos, babás, servos de confiança, e até amantes que seguiam a fé proibida." . O cristianismo estava se normalizando e fincando raízes na sociedade romana, milhões de pessoas já seguiam a nova fé. Ao mesmo tempo, mais e mais relatos de execução surgem. Os cristãos são membros produtivos da sociedade e também criminosos. Servem ao Imperador e são mortos em nome dele. Pouco a pouco vão se inserindo, principalmente nas cidades. Tal elemento acrescenta um terceiro ponto de subversão a ordem vigente: a que pessoas que haviam subvertido a ordem imperial daquela forma não mereciam ser castigadas assim. Tal como Plínio, que não conseguia ver crime ou ameaça nos cristãos que interrogou, além de sua própria teimosia.
Perpétua pode escandalizar o mundo moderno por suas convicções, que podem soar como radicais, até fanáticas. Contudo, em um mundo tão polarizado como o nosso, os mais conservadores verão nela a inspiração para lutar até o fim por valores que lhe extremamente caros são caros, como a fé cristã e seus princípios. O mais progressistas perceberão que o avanço das conquistas sociais, a luta pelo direito dos pobres, dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, das minorias, foi feita também por aqueles que enfrentaram a ordem vigente, foram presos e até mortos. A integridade é poderosa como força transformadora, mesmo quando seus efeitos não são percebidos imediatamente. Como disse certa vez Alexandre Solzhenitsyn "Você pode resolver viver sua vida com integridade. Deixe seu credo ser este: Deixe a mentira vir ao mundo, deixe-a mesmo triunfar. Mas não através de mim".
Blandina (Lyon, 177 DC)
Potino era um cristão da Ásia Menor, que enviado missionário por Policarpo, Bispo de Esmirna. Em algum ponto do II século, ele se estabeleceu em Lugduno, atual Lyon, na Gália (França), e fundou uma igreja lá, se tornando posteriormente Bispo. Lugduno foi fundada como colônia romana, localizando-se em um entroncamento de estradas, com localização estratégica, crescendo rapidamente, tornando-se o principal centro urbano de toda a Gália, com dezenas de milhares de habitantes. Era a capital da província da Gália Lugdunensis. Lá também, no Anfiteatro das Três Gálias, os líderes das 60 tribos gaulesas se reuniram em 12 AC para prestar culto a Roma e ao Imperador, reconhecendo publicamente sua autoridade, e formaram também o conselho provincial. Sendo assim, muitos imigrantes, boa parte deles gregos, foram recebidos. O Bispo Potino, e vários dos membros de sua congregação, entre eles.
Blandina, era uma jovem escrava. Sua senhora também era cristã. Naquele ano de 177 DC as coisas não estavam muito boas para os seguidores de Cristo na cidade. A população, em geral, era hostil, e os cristãos evitavam os lugares públicos, pois corriam o risco de não só serem objeto de escárnio, quanto de espancamentos, e roubos. Casas de cristãos tinha sido vandalizadas.
As turbas estavam sob provável incitação de boatos associando os cristãos a acusação de promoverem "banquetes de Tieste e relações Edipianas", ou seja, canibalismo e incesto. Tal acusação é respondida na obra de Minucio Felix, que a transcreve e cita como fonte do rumor Cornélio Fronto: (100-170 DC).
Um infante recoberto de comida, para enganar os desavisados, é colocado diante dele, que deve ser maculado com seus ritos: esse infante é morto pelo jovem aluno, que foi impelido como se fosse golpes inofensivos na superfície de uma criança. a refeição, com feridas escuras e secretas. Sedento - ó horror! - eles lambem seu sangue; ansiosamente eles dividem seus membros. Por esta vítima eles estão comprometidos juntos; com essa consciência da maldade, eles são comprometidos com o silêncio mútuo. Tais ritos sagrados, como estes são mais sujos do que qualquer sacrilégio. E de seus banquetes é bem conhecido que todos os homens falam disso em toda parte; até o discurso do nosso cirtense testemunha disso. Em um dia solene, eles se reúnem na festa, com todos os seus filhos, irmãs, mães, pessoas de todos os sexos e de todas as idades. Lá, depois de muito banquete, quando a comunhão se aqueceu, e o fervor da luxúria incestuosa esquentou com a embriaguez, um cachorro que foi amarrado ao candelabro é provocado, jogando um pequeno pedaço de miudezas além do comprimento de uma linha. pelo qual ele é obrigado a correr e a saltar; e assim a luz consciente sendo derrubada e extinta na escuridão desavergonhada, as conexões da luxúria abominável os envolvem na incerteza do destino. Embora nem todos de fato, ainda assim na consciência todos são igualmente incestuosos, já que pelo desejo de todos eles tudo é buscado para que possa acontecer no ato de cada [17]
Tais acusações, o correspondente as fake news de hoje , circulavam principalmente no século II. Na polêmica posterior, a medida que o cristianismo se torna mais conhecido, em autores como Celso, Sosiano Hierocles e Porfirio, essa acusação vai perdendo cada vez mais força, substituída por questionamentos filosóficos ao cristianismo, até desaparecer. Contudo, em meados do século II, ainda podia ser relevante.
A perseguição de Lyon parece se enquadrar no caso de mobilização popular. O relato é encontrado numa Carta enviada pela Igreja de Lyon e Vienne para as Igrejas da Ásia e da Frigia [16], em 178 DC, preservada na Historia Eclesisastica, de Eusébio de Cesaréia. Novamente, temos que abordar a questão da historicidade dos eventos. Na discussão mais acima relativa a autenticidade do relato de Perpétua, que foi inserida na discussão conjunta dos 6 atos de martírio anteriores a 250 DC que teriam se baseado em eventos históricos, conforme a posição dominante entre os estudiosos resumida por Timothy D. Barnes, expressa da seguinte forma (referindo-se as cartas de Policarpo e da Igreja de Lyon):
Both letters describe trials conducted in public before a large audience. It must be presumed, therefore, that their account derive either from autopsy or from the accounts of those who witnessed them (tradução) Ambas as cartas descrevem julgamentos realizados em público perante uma grande audiência. Deve-se presumir, portanto, que a narrativa deriva do processo ou dos relatos daqueles que as testemunharam [18]
Semelhantemente, Stéphanie Machabée cita o trabalho clássico de Paul Keresztes
Paul Keresztes writes: “there is nothing in this moving description of the Lugdunum [Lyons] tragedy that would discredit the historical value of what we have, thanks to Eusebius’ transmission, of the original document.” I agree with Kereszetes; very few scholars accuse Lyons of being false and of those who do, not many scholars are convinced by their arguments. (Tradução) Paul Keresztes escreve: “não há nada nesta descrição comovente da tragédia de Lugdunum [Lyons] que desacredite o valor histórico do que temos, graças à transmissão de Eusébio, do documento original.” Concordo com Kereszetes; pouquíssimos acadêmicos acusam Lyons de ser falso e daqueles que o fazem, não muitos acadêmicos estão convencidos por seus argumentos [19]
Sendo assim, iremos pressupor a historicidade dos fatos básicos relatados. Ou seja, a Igreja na região de Lyon foi perseguida em 177 DC, e muitos de seus membros executados, como Blandina e Potino. Seguiremos o texto da carta, com os devidos comentários.
Blandina é introduzida como uma jovem de constituição física frágil e delicada:
Blandina, através de quem Cristo mostrou que as coisas que para os homens parecem vis, deformadas e desprezíveis estão com Deus de grande glória, por causa do amor a Ele, um amor que não é uma mera aparência arrogante, mas mostra-se no poder que exerce sobre a vida. Estávamos todos com medo, especialmente sua senhora terrena, também entre aqueles combatentes que deram testemunho, que ela não seria capaz de fazer uma confissão ousada por causa da fraqueza de seu corpo.
Os tumultos populares aumentam, e as autoridades intervém. A Galia Lugdnense era uma província imperial, com legiões estacionadas, e portanto governada por um Legado (comandante de legião). O legado, estava ausente, e seu imediato, um tribuno militar, que o substituía, junto com os oficiais civis da cidade prendem vários cristãos, diante de uma multidão, jogando, literalmente, para a plateia. Lá aguardam o retorno do governador.
O governador retorna, e os prisioneiros são julgados. Sob intensa pressão da multidão, não é dado aos cristãos a oportunidade de um julgamentos justo. Um cidadão respeitado, chamado Vétio Epagato, se revolta contra o procedimento e se prontifica a defender os cristãos. O governador pergunta se ele também era cristão, ele responde que sim. O governador o prende junto com os outros mártires. Em seguida, alguns escravos que não eram cristãos, temendo serem torturados (na lei romana, escravos eram sempre torturados antes de serem interrogados) denunciam seus senhores cristãos (que haviam sido presos), e dezenas de pessoas são presas nas igrejas de Lugduno e Vienne, dentre os quais o Bispo Potino, o diácono Sancto, o respeitado e proeminente Atálio, o adolescente Pôntico, e, claro, Blandina. Enquanto isso, pelo menos dez cristãos negam a fé (embora alguns tenham se arrependido depois), indicando que boa parte se intimidava em face da ameaça de tortura e morte.
Diferentemente do caso de Perpétua e seus amigos, os cristãos de Lyon foram submetidos a torturas e a um tratamento bem mais degradante. Não há transferências para celas mas arejadas, simpatia dos guardas ou assistência dos irmãos. Possivelmente, as autoridades em Lyon estavam pressionadas pelas turbas, estas, por sua vez, atiçadas pelas "fake news" de incesto e canibalismo. Fazer justiça era obrigação dos magistrados romanos, mas manter a paz era muito mais importante, e nesse caso significava aplacar a multidão. O caso de Perpétua e seus companheiros há um processo relativamente normal, que segue os parâmetros estabelecidos por Trajano, focado nos casos efetivamente denunciados e buscando faze-los sacrificar aos deuses e cultuar ao Imperador. Um outro relato contemporâneo, a paixão dos mártires de Scilla , (Tunísia) datado de 180 DC, mostra um proconsul disposto a oferecer várias oportunidades a um grupo de 12 cristãos para que reconsiderassem sua decisão de não participar do culto imperial, propõe até uma pausa de 30 dias, que é recusada pelos cristãos, que são então executados, mas sem menção a torturas. Talvez fosse a prática na Africa do Norte, mas o tratamento aos cristãos é, em geral, destoante de outros atos de martírio considerados autênticos, anteriores ao reinado de Décio. Em Lyon, a perseguição embora curta, foi bem mais generalizada, agressiva e cruel. Tudo o que Trajano não queria.
Além das particularidades das províncias e seus administradores, o contexto mais geral do Império pode ter tido influência relevante. Em 17 de março de 180 DC, o Imperador Marco Aurélio morreu e foi substituído por seu filho Comodo que, pelo menos em relação aos cristãos, resultou em um governo menos hostil (Comodo teve um relacionamento com a cristã Márcia, além de vários de seus escravos e libertos de confiança serem daquela religião). Como observa Francoise Thelamon:
"Nota-se uma recrudescência das perseguições no reinado do imperador filósofo Marco Aurélio (161-180), que despreza profundamente os cristãos a despeito da coragem dos mártires diante da morte. Os cristãos são responsabilizados pelas desgraças da época e constituem as vítimas potenciais dos ritos expiatórios. Assim, o filósofo e apologista Justino é morto em Roma, , enquanto em Lyon, em 177, o velho bispo Potino e vários cristãos morrem na prisão; Sanctus, diácono da Igreja de Vienne, Atálio, apesar de ser cidadão romano, a escrava Blandina, o adolescente Pontico e outros são jogados às feras no anfiteatro das Três Gálias; (...) em Pérgamo, cristãos são torturados e queimados vivos no anfiteatro. Em 180, pela primeira vez na Africa do Norte, cristãos são decapitados por causa da sua fé; em Roma, alguns são condenados aos trabalhos forçados nas minas da Sardenha. Mas veem-se também governadores soltarem cristãos e o imperador Cômodo anistiar confessores sob a influência dos próximos, porque o cristianismo penetrou em todos os meios, inclusive na corte. [20]
Sancto, diácono da igreja de Vienne, foi submetido a várias torturas, e como permanecia inflexível dizendo "sou cristão", foram postas placas em brasa, "nas partes mais delicadas de seu corpo". Os presos foram colocados em celas superlotadas, fedorentas e escuras, amontoados, o que levou alguns a morrerem de asfixia. O Bispo Potino, doente e com 90 anos de idade, após seu julgamento foi arrastado, levou pontapés e socos da multidão, além de lhe serem arremessados objetos. Morreu na prisão dois dias depois. E não podemos deixar de falar de Blandina:
Mas, Blandina estava cheia de tal poder, que aqueles que a torturavam um após o outro de todas as formas desde a manhã até a noite estavam cansados e esgotados. Eles admitiram que estavam perplexos. Não havia mais torturas que pudessem aplicar a ela. Eles ficaram surpresos que ela permaneceu viva. Seu corpo inteiro estava rasgado e aberto. Eles disseram que até mesmo uma das formas de tortura empregadas era suficiente para destruir sua vida, sem mencionar tantas punições excruciantes. Mas a mulher abençoada, como um atleta nobre, renovou sua força em sua confissão. Sua declaração, "Eu sou cristã, e não fizemos nada de errado", trouxe-lhe descanso, repouso e insensibilidade a todos os sofrimentos infligidos a ela.
Ao longo da carta, embora tenhamos um bispo que foi discípulo de Policarpo, (que, por sua vez, foi auxiliar de Inácio de Antioquia, e este teria acompanhado o apóstolo João), de um respeitável Vétio Epagato, que optou compartilhar do destino dos mártires, o diácono Santo, e a própria senhora de Blandina (a qual não se recordou o nome) é a escrava que "rouba a cena". Além da subversão da ordem imperial, apontada no caso de Perpétua, há uma perturbação na ordem social e até na própria hierarquia da Igreja, como pontua Gabrielle Friesen:
Among the Galic martyrs was Blandina, whose martyrdom came to be more famous than those of her compatriots. Blandina was a slave-girl, much as Felicitas, who was to be martyred with her mistress. Whereas Perpetua eclipsed Felicitas in Perpetua’s journal and later remembrance, Blandina is the martyr who achieves the most fame among her group. Blandina’s faith allows her to supersede her mistress in fame, (…) and even physically embodies Christ’s image in the amphitheatre. Blandina’s faith and martyrdom, a gruesome affair, allows her to move past the earthly limitations of her class status not only in the afterlife, but even, according to the author of the account, in the physical world (tradução) Entre os mártires gálicos estava Blandina, cuja o martírio se tornou o mais famoso entre os seus compatriotas. Blandina era uma escrava, tanto quanto Felicitas, que seria martirizada com sua senhora. Contudo, Perpetua eclipsa Felicitas em seu diário e no registro posterior, Blandina é o mártir que alcança o mais fama entre seu grupo. A fé de Blandina permite que ela superar sua senhora na fama, (...) e até fisicamente incorpora a imagem de Cristo no anfiteatro. A fé e o martírio de Blandina, um caso horrível, permite-lhe ultrapassar as limitações terrenas do seu condição de classe, não só na vida após a morte, mas também até, segundo o autor do relato, no mundo físico.[21]
Após serem torturados extensivamente, os sobreviventes Átalio, Maturo, Sancto e Blandina são levados ao Anfiteatro das Três Gálias para serem lançados as feras, no meio de um festival. Previamente, os cristãos que eram cidadãos romanos foram decapitados. No último momento, Átalio foi separado pelo governador, uma vez que declarou ser cidadão romano, e havia apelado ao Imperador. Os demais enfrentaram seu destino:
Anfiteatro das Três Gálias, Lyon, via wikicommons
Eles
foram arrastados pelas bestas selvagens e sofreram toda a indignidade que o
povo enlouquecido clamava ao redor do anfiteatro. Último de todos eles foram
colocados em uma cadeira de ferro em brasa, em que seus corpos foram assados. Eles mesmos sentiam o cheiro das emanações de sua própria carne. Mas os pagãos não pararam
nem mesmo aqui, mas tornaram-se ainda mais frenéticos em seu desejo de superar
a resistência dos cristãos.
Blandina assume então um papel de proeminência, acaba sendo vista como uma lembrança de Jesus crucificado:
Mas Blandina foi amarrada a uma estaca e exposta, como alimento para as feras selvagens que foram lançadas contra ela. Porque ela parecia como se estivesse pendurada em uma cruz e por causa de suas sinceras orações, ela inspirou os combatentes com grande zelo. Pois eles olharam para esta irmã em seu combate e viram, com seus olhos corpóreos, Aquele que foi crucificado por eles, para que Ele pudesse persuadir aqueles que confiam Nele que todo aquele que sofre pela glória de Cristo tem comunhão eterna com o Deus vivo . Quando nenhuma das feras selvagens da época a tocou, ela foi retirada da estaca e levada de volta para a prisão.
Ao fim do dia, torturada, assada em brasa, tendo sido lançada como comida para feras, de alguma forma, Blandina ainda está viva. É a última guerreira de pé. No meio da multidão, um médico chamado Alexandre, proveniente da Frígia, foi descoberto tentando encorajar e ajudar seus irmãos cristãos, foi levado ao governador, e como não negou sua fé, foi condenado a destino semelhante a seus companheiros. O governador, talvez se sentindo fortalecido ante ao "sucesso" da performance dos cristãos com a multidão, tomou outra decisão arbitrária, condenou Atálio a morte, sem aguardar o resultado de seu apelo.
A lei romana dava garantias a seus cidadãos, inclusive de apelar ao Imperador, para evitar injustiças e arbitrariedades como a que Atálio, Vettio Epagato e outros foram submetidos. Isto pode contar como contradição ou inconsistência histórica na carta. Ou não. Na verdade, há indícios que alguns direitos estavam, cada vez mais, sendo "pra inglês ver". Professora Mary Beard, observa que "(...) o sofisticado edifício da lei romana, a despeito de sua extraordinária expertise em formular regras legais e princípios (....) tinham pouco impacto nas vidas daqueles que não eram da elite, e ofereciam pouca ajuda para seus problemas (...)" [22] um dos motivos é que, naquele período, já havia romanos demais recorrendo, citando o exemplo do Egito, Beard observa que "(...) O que nós realmente sabemos, com base em outros documentos em papiro, que no começo do século terceiro DC um governador do Egito (o prefeito, como era chamado lá) tinha recebido em apenas três dias em único lugar 1800 petições de interessados na solução de problemas ou reclamações. A grande maioria deve ter sido jogada para debaixo do tapete (...)" [22].
A morte de Atálio e Alexandre foi semelhante a de seus irmãos, lançados as feras, sendo antes submetidos a torturas, dentre as quais ser assados na horrenda "cadeira de ferro em brasa". Blandina foi então novamente levada a arena, no último dia dos jogos, desta vez acompanhada de Pontico, com 15 anos de idade. Não antes de serem forçados a ver os sofrimentos impostos a seus companheiros.
Depois de tudo isso, no último dia dos shows de gladiadores, Blandina foi novamente trazida junto com Pôntico, um menino de cerca de quinze anos de idade. Estes dois foram levados diariamente ao anfiteatro para ver as torturas que o resto sofreu. As autoridades tentaram forçar Blandina e Pontico a jurar pelos ídolos pagãos. Mas eles permaneceram firmes em sua recusa. Então a multidão ficou furiosa contra eles. Não tinham compaixão pela juventude do menino ou pelo respeito pelo sexo da mulher. Por isso, expuseram-nos a todo o terror e a todos os terríveis sofrimentos e levaram-nos a cada rodada de tortura. Repetidamente eles tentaram obrigá-los a jurar aos ídolos. Mas não funcionou. Pôntico foi encorajado por sua irmã; até mesmo os pagãos viram que ela o encorajou e fortaleceu. Depois de suportar nobremente todo tipo de tortura, ele morreu. Mas a abençoada Blandina, a última que restou, tendo como mãe nobre encorajou seus filhos e os enviou antes dela vitoriosa para o Rei, suportou os mesmos conflitos. Ela correu para eles com alegria e exultação por sua partida. Era como se ela fosse chamada para um jantar de casamento em vez de ser lançada em feras. Depois que ela foi flagelada e exposta às feras selvagens e assada na cadeira de ferro, ela foi finalmente encerrada em uma rede e lançada diante de um touro. Ela foi jogada pelo touro. Mas ela não sentia as coisas que estavam acontecendo com ela. Isto foi por causa de sua esperança e firmeza do que lhe havia sido confiado e sua comunhão com Cristo. Assim, ela também foi sacrificada. Os próprios pagãos confessaram que nunca entre eles a mulher suportou tantas e terríveis torturas.
A resistência de Blandina beira ao inacreditável, quase uma super heroína, assim como o sobrehumano diácono Sancto. De um lado, é um elemento do texto que parece atender ao viés de seus autores, possivelmente líderes remanescentes da comunidade cristã de Lyon. Mostrar que os cristãos receberam força sobrehumana. Por outro lado, torturas, em geral, são elaboradas para permitir que a vítima sofra prolongadamente, sem morrer, o fim da vida passa a ser uma benesse do carrasco. E a maioria dos condenados parece ter morrido antes de chegar a arena. Sem falar que Blandina não era uma das líderes da Igreja, como o bispo, presbíteros e diáconos presentes, mas uma mulher escrava. Assim, ainda que haja provável exagero na resistência de Blandina, é factível que tenha simplesmente tenha resistido mais do que os outros.
Mesmo mortos, seja na arena, seja na prisão, seja aquele que foram decapitados, houve ainda um outro ato de crueldade. Não foi permitido o enterro digno dos mortos, os corpos foram jogados aos cães, o restos insepultos expostos aos elementos por seis dias, ao fim dos quais foram cremados, e suas cinzas jogadas no Rio Ródano, que vai para o Mediterrâneo. Restou aos cristãos a lembrança do bom combate na Arena e a esperança de que o mar, no último dia, trará os seus mortos. De toda forma, Blandina e seus companheiros nunca foram esquecidos, imortalizados na carta e nos vários monumentos a sua memória em Lyon.
A inclusão de Blandina em uma série que trata do avanço do cristianismo na elite romana, pode causar alguma confusão. Contudo, o avanço do cristianismo em Roma esteve profundamente ligado aos escravos, como vimos anteriormente aqui no adcummulus. A sobrevivência do cristianismo e sua assimilação do Império, deve muito a pessoas como Perpétua e Blandina.
Referência Bibliográficas:
[1] Mary Beard (2015), SPQR - A History of Ancient Rome, fl. 518-519
[2] Tertuliano, Sobre a Alma, 55 http://www.newadvent.org/fathers/0310.htm, acessado em 22 de julho de 2018
[3] Francoise Thelamon (2007) "Perseguidos mas submetidos ao Império" in Alain Corbin, Historia do Cristianismo, fl. 36
[4] Timothy D Barnes (2010) "Early Christian Hagiography and Roman History", fls 58-72
[5] Jan N Bremmer e Marco Formisano (2007) Introduction In Jan N Bremmer e Marco Fomisano, Perpetua's Passion, fl. 5-7.
[6] Emanuella Prinzivalli (2001), A Womem Writer, in Augusto Fraschetti, Roman Women, fl. 118
[7] Thomas J Heffernan (2012) Passion of Perpetua and Felicity, fl.8
[8] Ross Shepard Kraemer, Unreliable Witness - Religion, Gender and History in Greco - Roman Mediterranean, fl. 118-119.
[9] Outi Lehtipuu (2014), “What Harm Is There for You to Say Caesar Is Lord?” , fl. 103
https://helda.helsinki.fi/bitstream/handle/10138/161318/07_Lehtipuu2104.pdf?sequence=1
[10], Candida Moss (2012), Ancient Christian Martyrdom, fl. 16 (sobre a necessidade de "negociar" com as fontes) e 131 (sobre a teoria de Perpetua não ser uma nobre romana, proposta por Kate Cooper)
[11] Paixão de Perpétua e Felicidade, (3), acessado em 22 de julho de 2018 https://sourcebooks.fordham.edu/source/perpetua.asp
[12] Eric Cline e Mark Graham (2011), Impérios Antigos, fl. 180
[13] Paixão de Perpétua e Felicidade, 6, acessado em 22/07/2018
[14] Mary Beard (2015), SPQR - A History of Ancient Rome, fl. 519
[15] Pierre Grimaldi (2003); História de Roma, fl. 147
[16] Minúcio Felix, Octávio, capitulo XXXI, acessado em 22 de julho de 2018 http://www.earlychristianwritings.com/text/octavius.html
[17] The Letter of the Churchs of Vienna and Lyons to the Churches of Asia and Phrygia including the story of the Blessed Blandina In Eusébio de Cesáreia, Livro V, capitulo 1 (§1 a 63) https://sourcebooks.fordham.edu/source/177-lyonsmartyrs.asp (acessado 22/07/2018)
[18] Timothy D Barnes (2010) "Early Christian Hagiography and Roman History", fl. 62
[19] Stephanie Machabée (2013) " The “Cheap, Unseemly, and Readily Despised” One: A Rhetorical Understanding of Blandina’s Gendered Performance in The Martyrs of Lyons and Vienne", fl. 37 Tese de Mestrado, McGill University, Montreal.
http://digitool.library.mcgill.ca/webclient/StreamGate?folder_id=0&dvs=1532282045017~334
[20] Francoise Thelamon (2007) "Perseguidos mas submetidos ao Império" in Alain Corbin, Historia do Cristianismo, fl. 35-36
[21] Gabriele Friesen (2014) "Perpetua Before the Crowd: Martyrdom and Memory in Roman North Africa", fl. 11, Undergraduate Honors Theses. 94. (acesso 22/07/2018) https://scholar.colorado.edu/honr_theses/94
[22] Mary Beard (2015), SPQR - A History of Ancient Rome, fl. 464
0 comentários:
Postar um comentário