Imperador Cômodo, como Hércules, Museu Capitolino, via wikicommons |
Márcia, a amante do Imperador
Márcia Aurélia Ceionia Demétria, uma ex-escrava, liberta do Imperador Lúcio Vero, pode nos ser melhor apresentada por seu contemporâneo, Cássio Dio (155-235 DC), que exerceu as funções de governador de Esmirna, cônsul de Roma e procônsul da Africa e depois da Panônia (atual Hungria), e durante o governo de Comodo, atuava como Senador.
Havia uma certa Marcia, amante de Quadrato (um dos homens mortos naquele tempo) e Ecleto, seu mordomo. O último se tornou também mordomo de Cômodo. Enquanto a primeira se tornou amante de Cômodo e depois a esposa de Ecleto e os viu também perecer por violência. Conta-se que que ela favoreceu grandemente os cristãos e lhes rendeu muitas bondades, na medida em que ela poderia fazer qualquer coisa com Comodo. [1]
Cômodo , filho do Imperador Marco Aurélio, reinou entre 180-192 DC, sendo o último governante da dinastia Antonina. Seu reinado, conforme apresentado pelas fontes disponíveis, como Cassio Dio e o autor grego Herodiano (170-240 DC), entre outras foi catastrófico. Como resumem os professores Eric Cline e Mark Graham, "Cômodo foi o pior Imperador em mais de um século" [2]. Essa deficiência como governante, de certa forma, abriu caminho para que Márcia fosse muito mais que uma amante do Imperador, mas alguém que exerceu poder efetivo de várias maneiras.
Como observa a Professora Anise Strong, da Universidade de Western Michigan:
Marcia was an imperial freedwoman and probably originally belonged to the household of the Emperor Lucius Verus, who served jointly as emperor with the more famous Marcus Aurelius. She was likely born in the late 150s or early 160s CE, although we have no direct evidence on this point. According to a dedicatory inscription from the Italian town of Anagnia, she was the daughter of an imperial freedman. She may have been raised in Rome by a wealthy eunuch named Hyacinthus, who was also the Christian presbyter of Pope Victor I (Tradução) Márcia era uma escrava imperial liberta que pertencia provavelmente a casa do Imperador Lúcio Vero, que reinou conjuntamente com o mais famoso Marco Aurélio. Ela nasceu provavelmente no final dos anos 150 ou início dos anos 160, ainda que não tenhamos nenhuma evidência nesse ponto. De acordo com um inscrição dedicatória da cidade italiana de Anagnia, ela era filha de um liberto imperial. Ela pode ter sido criada em Roma por um eunuco rico chamado Hiacinto (Jacinto), que era também presbítero do Papa Vitor I [3]A inscrição a qual a Professora Anise se refere, é trancrita abaixo;
A Márcia Aurélia Ceonia Demétria, a stolata femina, em honra da dedicação dos banhos termais os quais, após muito tempo, foram restaurados a sua condição original as expensas dela, o senado e o povo de Anagnia, decidiram que uma estátua seja erigida, em lembrança de sua dedicação, ela deu 5 denários aos decuriões, 2 denários para os sacerdotes de Augusto, e um denário para cada um do povo, além de um banquete para todos [4]
A moça de Anagnia, filha de um ex-escravo e educada por um eunuco cristão, auxiliar do Bispo de Roma, no alto de sua trajetória improvável, se torna a concubina favorita do Imperador. Herodiano nos conta que Márcia tratada, na prática, como sua esposa, (...) com todas as honra imperiais, exceto o fogo sagrado (...)" [5]. Poucas alpinistas sociais foram tão bem sucedidas. Para marcar sua chegada ao topo, a filha do escravo liberto concede a sua cidade natal favores, obras públicas e banquetes. Professora Anise Strong detalha como:
Marcia’s first known sexual partner was the consul Marcus Ummidius Quadratus, who was executed on charges of attempted assassination in 182 CE. After Quadratus’ death, she became Commodus’ concubine from 182 until his death at the end of 192. At some point during this time period, she married Commodus’ cubicularius, or chamberlain, a man named Eclectus. However, this did not affect her ongoing sexual liaison with Commodus (Tradução) O primeiro amante conhecido de Márcia foi o cônsul Marcos Umidio Quadrado, que foi executado sob acusação de traição em 182 DC. Depois da morte de Quadrato, ela se tornou concubina de Comodo do ano 182 DC até sua morte no final do ano 192 DC. Em algum momento neste periodo, ela casou com o "Cubiculario", ou Mordomo de Comodo, um homem chamado Ecleto. Entretanto isso não afetou seu relacionamento sexual com Comodo.[6]
Desta forma, Márcia, após se tornar amante de um cônsul, não só não compartilha sua desgraça, mas consegue se tornar concubina do próprio Imperador, que executara seu antigo protetor. A conspiração resultou na execução do cônsul Marcus Umidio Quadrado, envolveu também até mesmo Lucilla, a irmã do Imperador. Lucilla foi exilada para ilha de Capri, e morta no ano seguinte (182 DC) por um centurião enviado por Cômodo. Por esta época a esposa de Comodo, a Imperatriz Brutia Crispina, começava a perder prestígio na corte. Assim, com o afastamento ou enfraquecimento das mulheres da família imperial, Márcia se torna, na prática, a Imperatriz de Roma, com grande influência sobre Cômodo.
Em 190 DC, ela chegaria, talvez, ao auge de seu poder. Um dos ex-mordomos do Imperador, chamado Marco Aurélio Cleander, havia chegado ao posto de Comandante da Guarda Pretoriana (a guarda imperial, unidade de elite, sediada em Roma), e um dos mais importantes conselheiros do Imperador. Nada disso, como típico naqueles tempos, sem conspirar e tramar intrigas contra seus oponentes, enriquecer as custas da corrupção, vender favores e cargos públicos, bem como distribuir dinheiro ao Imperador, a cidade de Roma e outras províncias. Em junho de 190 DC, houve fome em Roma, e o povo culpou Cleander, e um grande tumulto ocorreu na cidade. Cleander enviou tropas para conter os manifestantes, mas isso só tornou o tumulto em uma quase rebelião. Márcia teve um papel fundamental em eliminar Cleander, aplacando a ira da população. Cassio Dio nos conta que:
Em 190 DC, ela chegaria, talvez, ao auge de seu poder. Um dos ex-mordomos do Imperador, chamado Marco Aurélio Cleander, havia chegado ao posto de Comandante da Guarda Pretoriana (a guarda imperial, unidade de elite, sediada em Roma), e um dos mais importantes conselheiros do Imperador. Nada disso, como típico naqueles tempos, sem conspirar e tramar intrigas contra seus oponentes, enriquecer as custas da corrupção, vender favores e cargos públicos, bem como distribuir dinheiro ao Imperador, a cidade de Roma e outras províncias. Em junho de 190 DC, houve fome em Roma, e o povo culpou Cleander, e um grande tumulto ocorreu na cidade. Cleander enviou tropas para conter os manifestantes, mas isso só tornou o tumulto em uma quase rebelião. Márcia teve um papel fundamental em eliminar Cleander, aplacando a ira da população. Cassio Dio nos conta que:
Eles já se aproximavam de Cômodo, a quem ninguém manteve informado do que estava acontecendo, quando Márcia, a notória esposa de Quadrado, reportou as novas a ele. Cômodo ficou tão perturbado (ele sempre foi o maior dos covardes) que ele subitamente ordenou que Cleander fosse executado, assim como seu filho, que estava aos cuidados do Imperador [7].
No entanto, com o passar tempo, o comportamento do Imperador ia se tornando cada vez mais errático. Cômodo, que não só gostava das lutas de gladiadores, mas se considerava uma Gladiador, teve um ideia pitoresca: no dia da "posse" dos cônsules do ano de 193 DC, Cômodo pretendia iniciar o cortejo não do Palácio Imperial, mas do quartel dos gladiadores, acompanhado por eles. Conforme o relato de Herodiano:
Ele anunciou suas intenções a Márcia, a quem, de todas as suas amantes, ele tinha em maior afeto; Ele não ocultava nada daquela mulher, como se ela fosse sua esposa legítima, permitindo a ela as honras imperiais, com exceção do fogo sagrado. Quando ela foi informada de seu plano, tão desarrazoado e indigno de um Imperador, se jogou aos seus pés, advertindo, com lágrimas, que não trouxesse tal desgraça ao Império Romano, nem pusesse em risco sua vida expondo-se a gladiadores e homens desesperados. Após muito implorar, não conseguindo persuadir o imperador a abandonar seus planos, ela deixou sua presença, ainda em pranto. Cômodo então convocou Laeto, o prefeito pretoriano, e Ecleto, seu mordomo de quarto, ordenando que fizessem os arranjos para que passasse a noite no quartel dos gladiadores, lhes dizendo que deixaria os sacrifícios festivos de lá, e se apresentaria aos romanos sob armas. E estes homens também lhe imploraram para que nada fizesse que fosse indigno da posição de Imperador [8].
A reação de seus associados deixou Cômodo profundamente magoado, e assim, Continua Herodiano, o Imperador decidiu agir de forma drástica. Fez uma lista de pessoas que seriam executadas, começando por Márcia, Laeto, Ecleto, muitos senadores, e todos os seus auxiliares que tinham servido seu pai, confiscaria seus bens e entregaria aos soldados da Guarda Pretoriana. No entanto, a lista chegou as mãos de Márcia. Tanto Herodiano, como Cássio Dio, contam que ela se aliou a Ecleto e Laeto, entre outros, para conspirar contra Cômodo. Conforme Cássio Dio:
Por estas razões Laeto e Ecleto o atacaram, após terem feito Márcia sua confidente. Sendo assim, no último dia do ano, a noite, quando as pessoas estavam ocupadas com o feriado, eles fizeram Márcia administrar veneno em um pouco de carne. Mas o uso imoderado de vinho e banho, a qual se habituara, o impediram de sucumbir de uma vez, e ao invés vomitou parte dele; e suspeitando então da verdade, ele pronunciou algumas ameaças. Então eles mandaram Narciso, um atleta, contra ele, e fizeram que o estrangula-se enquanto se banhava. Este foi o fim de Cômodo, após ter reinado por doze anos, nove meses e quatorze dias. Ele viveu 31 anos e quatro meses, e com ele a linhagem dos Aurelios genuínos se extinguiu [9]
Laeto, Ecleto e Márcia agiram rapidamente e pediram a um dos mais respeitados generais romanos e que já havia governado várias províncias - a assumir o trono. Pertinax, o escolhido, foi aceito pelos senadores, o povo, e os oficiais e legionários romanos nas províncias. Contudo, a guarda pretoriana rapidamente passou a ve-lo com desconfiança, quando não lhes ofereceu o donativo (presente em dinheiro, dado pelo Imperador as tropas) que esperavam. Pertinax iniciou um programa de reforma e reestruturação do Império, e tentou restabelecer a hierarquia e disciplina no exército. Parte da Guarda Pretoriana se revoltou, e antes que Pertinax pudesse buscar auxílio do exército provincial, e assassinou o Imperador (após 87 dias de governo). [10]
No caos que se seguiu, o sogro de Pertinax, Flavio Sulpiciano, e o Senador Dídio Juliano passaram a disputar o apoio da Guarda Pretoriana de uma forma pitoresca, fizeram um leilão para quem oferecia o maior donativo aos soldados. Dídio Juliano, ganhou o trono, oferecendo 25 mil sestércios para cada pretoriano. Juliano reinou apenas dois meses, até ser destronado por Sétimo Severo (193-211 DC), que estabilizaria o Império e estabeleceria a dinastia severa, no trono até 235 DC. Dídio Juliano, no entanto, em dos poucos atos de seu breve governo, ordenou a execução de Márcia e seu novo marido, Ecleto.[10]
No caos que se seguiu, o sogro de Pertinax, Flavio Sulpiciano, e o Senador Dídio Juliano passaram a disputar o apoio da Guarda Pretoriana de uma forma pitoresca, fizeram um leilão para quem oferecia o maior donativo aos soldados. Dídio Juliano, ganhou o trono, oferecendo 25 mil sestércios para cada pretoriano. Juliano reinou apenas dois meses, até ser destronado por Sétimo Severo (193-211 DC), que estabilizaria o Império e estabeleceria a dinastia severa, no trono até 235 DC. Dídio Juliano, no entanto, em dos poucos atos de seu breve governo, ordenou a execução de Márcia e seu novo marido, Ecleto.[10]
O dia em que Márcia, sem saber, mudou a história da Igreja
Mesmo com uma vida cristã pouco "ortodoxa", Márcia não esqueceu suas origens. Ela vivia em uma condição em que os princípios éticos cristãos certamente condenavam como pecaminosa. Cômodo ficou conhecido como um homem devasso, violento e louco, semelhante a Calígula ou Nero. Entretanto, sua companheira atuou decisivamente em favor do cristianismo. Márcia parece ter sido importante em influenciar as políticas do Império de forma favorável aos cristãos.
Eusébio de Cesareia (263-339 DC) afirma que, sob Cômodo, os cristão viveram em tempos relativamente tranquilos [11]. Como observou o Professor Thomas Oden (1931-2016), da Drew University, "(...)aparentemente, através dos esforços de sua companheira (concubina ou amante) Márcia, Comodo foi conduzido a uma visão mais conciliatória em relação ao cristianismo, ao contrário de seus predecessores (...)" [12], ou, nas palavras de Anise Strong "(...) Há uma notável falta de relatos de mártires cristãos durante o Reinado de Comodo (...)" [13].
Um autor cristão, também contemporâneo, chamado Hipólito de Roma, em sua Refutação de Todas as Heresias, do início do século III, nos apresenta uma situação específica em que Márcia favoreceu os cristãos, e que teria consequências tão profundas, quanto inesperadas, para o futuro da Igreja.
Pães e Peixes, afresco nas Catacumbas de São Calisto, via wikicommons |
Eusébio de Cesareia (263-339 DC) afirma que, sob Cômodo, os cristão viveram em tempos relativamente tranquilos [11]. Como observou o Professor Thomas Oden (1931-2016), da Drew University, "(...)aparentemente, através dos esforços de sua companheira (concubina ou amante) Márcia, Comodo foi conduzido a uma visão mais conciliatória em relação ao cristianismo, ao contrário de seus predecessores (...)" [12], ou, nas palavras de Anise Strong "(...) Há uma notável falta de relatos de mártires cristãos durante o Reinado de Comodo (...)" [13].
Um autor cristão, também contemporâneo, chamado Hipólito de Roma, em sua Refutação de Todas as Heresias, do início do século III, nos apresenta uma situação específica em que Márcia favoreceu os cristãos, e que teria consequências tão profundas, quanto inesperadas, para o futuro da Igreja.
Márcia, uma concubina de Cômodo, que era uma mulher que amava a Deus, e desejosa de realizar alguma boa obra, convidou em sua presença o bendito Victor, que naquela época era bispo da Igreja, e perguntou-lhe quais eram os mártires que estavam na Sardenha. E ele entregou-lhe os nomes de todos, mas não deu o nome de Calisto, sabendo os atos vilanescos que ele tinha arriscado. Márcia, obtendo seu pedido de Cômodo, entregou uma carta de emancipação a um certo eunuco chamado Hiacinto (Jacinto), já avançado em dias. E ele, ao recebê-la, navegou para a Sardenha, e tendo entregue a carta aquele que na época era governador do território, conseguiu que os mártires fossem libertados, com exceção de Calisto. O próprio Calisto, caindo de joelhos e chorando, suplicou que ele também pudesse ser libertado. Hiacinto, portanto, constrangido pela importunação do cativo, solicitou ao governador que concedesse a sua libertação, alegando que Márcia também lhe dera permissão para liberar Calisto e que faria arranjos para que não houvesse quaisquer riscos. Desta forma, o governador foi persuadido e libertou Calisto também. [14]
Jacinto, que havia criado Márcia, é a provável ligação entre ela e o Bispo Victor, para obter a libertação de vários cristãos que estavam condenados a sofrer nas minas. Jacinto, na condição de "pai de criação" de Márcia, e presbítero do Bispo Vitor, tinha as conexões necessárias tanto na corte como na liderança cristã. O fato de Jacinto, Marcia, e vários escravos e libertos imperais, como Carpóforo (que apresentaremos abaixo) e outros que serão mencionados nos posts futuros, indicam que o cristianismo conseguiu avançar significativamente na própria casa imperial.
Mas quem era Calisto?
Involuntariamente, Marcia seria decisiva em um conflito no seio da Igreja de Roma e, em última análise, para toda a cristandade. Calisto, a qual Hipólito menciona, era um jovem escravo de um liberto imperial chamado Carpóforo, que era cristão e muito rico. Carpóforo encarregou, (ou apenas permitiu) Calisto de captar depósitos do público, no bairro Aventino, em Roma. Muitos judeus e cristãos (e dentre estes, muitas víuvas) faziam parte de sua clientela. A atuação de Calisto como banqueiro, nos é apresentada por Hipolito como uma mistura de gestão temerária com gestão fraudulenta, ou seja, escolhas ruins em termos de empréstimos, combinadas com uso dos recursos em seu próprio proveito. O Professor de Economia da Universidade Rei Juan Carlos de Madri, Jesus Huerta de Soto acrescenta que o ambiente economico não era favorável "(...) depois de um período de forte expansão inflacionária seguido de uma grave crise de confiança, perda do poder de compra do dinheiro e falência de várias empresas comerciais e financeiras, que teve lugar sob a governação do Imperador Cômodo de 185 a 190 de nossa era (...)" [15].
Túmulo de Santa Cecília (sec III DC). Escultura de Stefano Moderno, 1599. Inicialmente na Catacumba de São Calisto depois transferido para Igreja de Santa Cecília de Trastevere, via wikicommons |
O Banco faliu, e Calisto tentou fugir de Roma, indo para Porto, na margens do Tibre com a intenção de entrar no primeiro navio disponivel. Carpóforo foi atrás de Calisto e o interceptou na saída do porto. Calisto se jogou na água para tentar escapar, mas mesmo assim foi capturado. Carpóforo rebaixou Calisto a serviços braçais e penosos, tendo que mover uma pesada pedra de moinho, dia após dia, continuamente. Os depositantes do Banco, contudo, foram até Carpóforo e pediram que libertasse Calisto, na esperança que ele pudesse, de alguma forma, recuperar parte dos recursos. Carpóforo atendeu o pedido deles. Calisto, em sua nova missão de recuperação de créditos, buscou alguns de seus clientes judeus, de uma forma inusitada. Causou tumultos, no sabádo, em sinagogas, tentando constranger os devedores. Novo fracasso. A comunidade judaica, enfurecida com tal sacrilégio, levou o caso ao Prefeito Fusciano, que acoitou Calisto e o enviou as minas da Sardenha [14], praticamente uma sentença de morte. Como observa Thomas Craugwell, mesmo o homem mais forte não sobreviveria mais que um ano aos duros trabalhos, ar sufocante e pouco comida [17].
Ao conseguir comover Jacinto, Calisto escapou da morte certa. O Bispo Vitor, temendo as consequências da volta de Calisto a Roma, o manteve distante da cidade. Muitos anos depois, Calisto voltaria a Roma como assistente de um certo Zeferino. Vitor morreu em 199 DC, e a Igreja de Roma elegeu Zeferino como seu Bispo. Zeferino nomeou Calisto diácono e o encarregou de organizar um Cemitério, o que ele fez bem, pois as Catacumbas de São Calisto existem até hoje. Zeferino morreu no ano de 217 DC e o impensável aconteceu, Calisto, o escravo desonesto, banqueiro falido, e prisioneiro medroso, foi eleito Papa [14]. Papa Calisto. Para muitos membros da Igreja de Roma e de outras partes do Império, a eleição de Calisto deve ter sido como a vitória de Donald Trump, muitos séculos depois.
Um dos abismados foi Hipólito de Roma. O governo do Bispo Vitor já havia sido um tempo de controvérsias, em que a Igreja de Roma entrou em conflito com as Igrejas da Asia Menor, como já falamos aqui no Adcummulus, em um post sobre o Apóstolo Filipe, por conta da data da Pascoa. O mandato de Zeferino também foi tumultuado, com o reinicio da perseguição, e movimentos como o Montanismo e Sabelianismo, inicialmente bem recebidos em Roma e posteriormente considerados heréticos, ganhando terreno.
Os temores de Hipolito se tornaram em rebelião aberta quando Calisto elaborou um Édito permitindo que cristãos batizados que haviam cometido pecados considerados graves, como adultério ou mesmo assassinato, pudessem ser readmitidos a comunhão se demonstrassem arrependimento e confessassem seus pecados. Bispos, presbiteros e diaconos em segundo ou terceiro casamento, poderiam manter seu ministério. Mulheres, principalmente de posição social mais elevada, que não conseguiam um casamento com homens cristãos do mesmo nível social, poderiam se unir a seus servos e escravos. Tertuliano, em Cartago, também não gostou da proposta, que também foi seguida pelo Bispo local, e escreveu um tratado "De Pudicitia" em que crítica o referido Édito. Hipolito entende tais concessões uma ameaça ao caráter santo da Igreja. Repreende Calisto por seu ensino de que a Igreja era como uma Arca de Noé, "(...) que foi feita como um símbolo da Igreja, em que os cães, lobos, corvos, e todos os seres limpos e imundos, e assim ele alega que seja o caso de ocorrer que a Igreja seja assim (...)" .[14]
A história, nesse caso, foi escrita pelos inimigos do Bispo Calisto. Nós temos praticamente uma fonte histórica, e a fonte é enviesada (como a grande maioria das fontes históricas), então devemos reconhecer os limites do conhecimento históricos. Os leitores do adcummulus são deixados entre duas opções: entender que Calisto foi um homem impio que conseguiu enganar a todos, e ser reconhecido como Bispo e depois Santo, e que sua trajetória foi uma afronta a natureza da verdadeira Igreja, que deve ser pura; ou, como este blogueiro, podemos também chegar a conclusão, tentativamente, que Calisto, por suas muitas falhas, seus sofrimentos, e sua vida pecaminosa, tenha realmente mudado e concluído que a natureza humana é decaida, dependente da misericordia de Deus, e portanto, antes de tudo, a Igreja deve acolher. Seja como for, as visões de Hipolito e Calisto, sempre conviveram na Igreja, e não só se antagonizaram, mas se complementaram muitas vezes. O cristianismo sempre enfatizou o recomeço, a renovação. Assim, Pedro que negou a Jesus, pode virar "pescador de homens", e os discipulos que fugiram na crucificação, puderam virar apóstolos da ressureição. para trazer os Zaqueus e as Madalenas do mundo. No entanto, o evangelho também prega o tomar a cruz e se afastar de tudo que há no "mundo" - "a cobiça da carne,, a cobiça dos olhos, e a ostentação de bens". A tensão entre exigir um padrão ético elevado e acolher os que caem, foi um elemento fundamental na vitalidade do cristianismo, e na sua capacidade de renovação, sendo parte original do evangelho. "O Espírito, na verdade, esta pronto, mas a carne é fraca", foi uma limitação presente para Igreja em toda sua história.
Referências Bibliográficas
[1] Cassio Dio, História Romana, Livro 73:4), acessado em 02.03.2017, disponível em
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Cassius_Dio/73*.html,
[2] Eric H Cline e Mark W Graham (2011), Impérios Antigos, da Mesopotâmia a Origem do Islã, Editora Madras, fl. 329
[3] Anise K Strong (2014) A Christian Concubine in Commodus Court? EuGesta (Journal of Gender Studies), n° 4 2014, 238-259, fls. 242-243, acessado em 25.02.2017.
[4] Laura Van Abenna (2008), The Autonomy and Influence of Roman Women in the Late First/early Second, fl. 50. Universidade de Wisconsin-Madison, tese de doutorado. Inscrição catalogada no Corpus Inscriptum Latinarum (CIL) 10.5918.
[5] Herodiano, Historia Romana, 1;16.4, http://www.livius.org/sources/content/herodian-s-roman-history/herodian-1.16/, acessado em 02.03.2017
[6] Anise K Strong (2014) A Christian Concubine in Commodus Court? EuGesta (Journal of Gender Studies), n° 4 2014, 238-259, fls. 242-243, acessado em 25.02.2017
[7] Cassio Dio, História Romana, Livro 73:13, acessado em 02.03.2017, disponível em
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Cassius_Dio/73*.html
[8] Herodiano, Historia Romana, 1:16-17, http://www.livius.org/sources/content/herodian-s-roman-history/herodian-1.16/, acessado em 02.03.2017
[9] Cassio Dio, História Romana 73:22.4, acessado em 01.03.2017, disponível em
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Cassius_Dio/73*.html
[10] cf Cassio Dio, História Romana 74, acessado em 01.03.2017, disponível em http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Cassius_Dio/74*.html e Herodiano, Historia Romana 2:1-8, http://www.livius.org/sources/content/herodian-s-roman-history/herodian-2.1/
[11] Eusébio de Cesaréia, História Eclesiastica 5.21.1, acessado em 27.02.2017, disponível em http://www.newadvent.org/fathers/250105.htm
[12] Thomas C Oden (2011), Early Libian Christianity, fl. 113
[13] Anise K Strong (2016), Prostitutes and Matrons in the Roman world, fl, 90
[14] Hipólito de Roma, Refutação de todas as Heresias Livro 9, capitulo 7, http://www.newadvent.org/fathers/050109.htm, o relato que se segue a respeito de Calisto segue, em linhas gerais, a descrição de Hipolito.
[15] Jesus Huerta de Soto (2012), Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Economicos, fls. 78-79
[16] Thomas Craugwell (2006), Saints Behaving Badly, fl. 13