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quarta-feira, 2 de março de 2022

Anotações Adcummulus 012 -"Os da Casa de César te Saudam - Como o cristianismo chegou na High Society - Parte 6 - A inscrição do bispo Abércio e uma das primeiras igrejas do mundo

Inscrição de Akeptous, Megido, Israel, "Aketpous 
 que ama a Deus, oferece esse mosaíco ao Deus Jesus 
Cristo, como memorial", foto de Vesafis Tzferris,
 Ao longo de nossa série sobre a ascensão do cristianismo na sociedade romana, abordamos casos de conversão de membros da elite romana, e escravos libertos da família imperial, que ganharam influência e confiança do Imperador. Fora da cidade de Roma, os cristãos também foram se tornando mais visíveis, seja porque confrontaram a ordem vigente, e foram martirizados por isso, seja ao conseguiram influenciar governantes provinciais e de reinos clientes, antecipando a conversão de Constantino em 100 anos. Paralelamente, a expansão do cristianismo entre a população, foram sendo construídas estruturas e deixadas evidencias materiais.


A inscrição de Abércio.

Abércio (ou Avércio) Marcelino foi Bispo da cidade de Hierópolis (Turquia), na segunda metade do século II DC, que comissionou um epitáfio, para ser colocado como inscrição funerária. 

Preliminarmente, como observa o Professor William Tabernee, Abercio era de Hierópolis, atual Koçhisar - não Hierapolis, atual Pamukalle (também na Turquia), onde o apóstolo Filipe foi provavelmente enterrado [1], e discorremos aqui e aqui.  

Por volta do século IV, talvez V, foi composta uma biografia do Bispo Abércio, Vida de Santo Abércio (Vita), que de forma semelhante a textos como os Atos de Filipe (que também já tratamos aqui no adcumullus), é basicamente uma novela hagiográfica, elaborada para endereçar questões dos cristãos locais no tempo que foi escrita, ou seja, considerando o sitz im leben em que foi composta. No entanto, como já argumentamos no post sobre Atos de Filipe, tais textos podem conter memórias históricas (como a associação de Filipe Apóstolo com a cidade de Hierápolis, e de que foi enterrado lá). No caso de Abércio, a situação é parecida.

Em 1881, Sir William Ramsay descobriu em Kilandiraz, 12 km a noroeste de Koçhisar, um epitáfio dedicado a um certo Alexandre, datado de 216 DC. Algumas frases da inscrição funerária eram idênticas, "copia e cola", da inscrição funerária do Bispo Abércio, transcrita em sua Vita. Ramsay propôs então que a semelhança entre o epitáfio de Abércio em sua vita e o de Alexandre eram resultado de ambas terem sido baseadas na inscrição funerária do próprio Abércio [1]. Ramsay foi premiado, em 1883, com a descoberta de dois grandes fragmentos da sepultura do Bispo Abércio, reutilizados em uma casa de banhos construída numa fonte termal em Koçhisar,  confirmando sua hipótese. Em 1893, os fragmentos foram doados pelo Sultão Abdul Hamid ao Papa Leão XIII, estando hoje expostos no Museu Vaticano [1][2]. Uma vez que o epitáfio de Alexandre é de 216 DC,  o de Abércio deve forçosamente ser anterior, sendo geralmente datado no final do século II.

Inscrição de Abércio, Museu Vaticano, foto
de Giovanni Dall'Orto, via wikipedia commons.
Cidadãos da eminente cidade, construi esta sepultura  em vida, para que meu corpo possa aqui repousar;
Me chamo Abércio, e sou discípulo do Santo Pastor
Que apascenta suas ovelhas em montanhas e planícies
E cujos olhos as acompanham em toda parte
Pois me instruiu fielmente em seus escritos;
Ele me enviou a Roma, para contemplar um Reino
E ver uma rainha de manto e sandálias douradas 
Lá eu vi um povo que tinha um selo radiante;
Contemplei as planícies da Síria e muitas cidades, incluindo Nisíbis, para depois cruzar o Eufrates. Encontrei irmãos em todos os lugares, e levei Paulo comigo; A fé me levou em todos os lugares, e me alimentou com os peixes de uma fonte pura e poderosa, que um santa virgem pescou, e serviu à mesa dos amigos, sempre tendo um doce vinho e servindo o cálice com pão;
Estas palavras eu, Abercio, estando presente, as mandei escrever, quando tinha setenta e dois anos;
Aqueles que entendem e acreditam nessas coisas, orem por Abercio;
Mas que ninguém construa outra sepultura sobre a minha, pois, se o fizer, pagará duas mil moedas de ouro para o tesouro romano e mil moedas de ouro para minha amada cidade natal, Hierápolis;

 A inscrição de Abércio diz muita coisa, mas talvez seja melhor começar com as coisas que ela não diz. Geralmente, o Abércio da inscrição é associado ao Bispo Abércio Marcelino, mencionado por Eusébio de Cesáreia em sua História Eclesiástica. No entanto, no passado, chegou-se a questionar até mesmo o caráter cristão da inscrição, ou se afirmou que o autor fosse sincrético. Tais hipóteses foram praticamente postas de lado, pelo fato de que não há elemento na inscrição claramente pagão (como invocação aos deuses gregos, ou divindades locais), ao passo que há menções ao Santo Pastor, Apóstolo Paulo, virgem, escritura, vinho, cálice e partir o pão entre os irmãos, elementos doutrinários e litúrgicos que apontam fortemente para o cristianismo "(...) trabalhos mais recentes tem concluído que a densidade de símbolos e alusões. em conjunto com a identificação deste Abércio com a figura anti-montanista  mencionada por Eusébio  como Abércio Marcelino (HE 5.16.2) tornam muito mais provável de que se trata de um cristão (...)" [3] e "(...) quase todas as frases do epitáfio parecem ter sido escolhidas de forma a carregar sentido simbólico para leitores cristãos: "Santo Pastor", o "povo com o selo brilhante", "peixe da fonte (...)""[4].

A menção de Abércio (ou Avércio) Marcelino (ou Marcelo) na História Eclesiástica de Eusébio é transcrita abaixo:

Tendo por um tempo muito longo e suficiente, ó amado Avércio Marcelo,  foi instado por
escrever um tratado contra a heresia daqueles que são chamados depois de Milcíades,  hesitei até o presente, não por falta de capacidade para refutar a falsidade ou dar testemunho da verdade, mas por medo e apreensão de que eu possa parecer para alguns estar fazendo acréscimos ao doutrinas ou preceitos do Evangelho do Novo Testamento, o que é impossível para quem tem escolhidos para viver segundo o Evangelho, seja para aumentar ou diminuir.[5]

O epitáfio afirma que o "Santo Pastor" levou Abércio em suas viagens, indicando um propósito de natureza eclesiástica, consistente com a atividade de um Bispo, como observa Tabernee [6]. Abércio foi também fielmente instruído nos ensinos do Santo Pastor, o que reforça sua identidade como lider eclesiastico. Abércio Marcelino atuava na Frígia, onde não só ficava Hierópolis, bem como o berço do Montanismo, no mesmo período histórico (segunda metade do século II DC), e que tinham seu centro na cidade de Pepuza, também na Frígia.

Abércio afirma ter cruzado as planícies da Síria, e chegado a Nísibis (atual Turquia), uma principais praças defensivas do Império, em sua fronteira com os partos. Lá chegando, ele cruza o Eufrates, chegando ao limite máximo do Império Romano. Desta forma, esteve muito próximo da Edessa de Julio Africano e do Rei Abgar VII.  Abércio descreve aqui os confins orientais do Império. E lá havia cristãos. Embora as cartas paulinas e Atos dos Apóstolos atestem congregações importantes em Damasco e Antioquia, não há menção ao extremo leste da Síria e a Mesopotâmia, indicando que neste interim, outra fronteira missionária cristã foi aberta. Tertuliano, alguns anos depois, ressalta a profunda capilaridade do cristianismo, afirmando que "(...) o Nome de Cristo se estende a todos os lugares, crido em todos os lugares, adorado por todas as nações acima enumeradas, reinando em todos os lugares, adorado em todos os lugares, conferido igualmente em todos os lugares a todos. Nenhum rei, com Ele, encontra maior favor, nenhum bárbaro menor alegria; nenhuma dignidade ou linhagem goza de distinções de mérito; a todos Ele é igual, a todo Rei, a todo Juiz, a todo Deus e Senhor (...)"[7]

No entanto, é sua descrição de Roma que mais chama a atenção. Afirma que contemplou uma Rainha (grego: Basilissa) com manto e sandálias douradas. Professor Peter Thonemann, de Oxford, observa que embora o sentido na inscrição seja claramente metafórico, o autor da vita de Abércio descreve como uma visita do Bispo Abércio a imperatriz Faustina, que culminou com Abércio exorcizando a princesa Lucilla. Conforme o relato, o Imperador Marco Aurélio não estaria presente. A narrativa é muito tardia, e não conta com elementos de corroboração anteriores, como a inscrição, para ser considerada, de alguma forma, factual. De qualquer forma, a inscrição indica a grande importância da igreja de Roma ao final do século II [8]. No mesmo período, há uma intensa disputa entre os bispos Victor de Roma e Policrates de Éfeso (a frente de vários outros bispos da Asia Menor), referente a data de celebração da páscoa, com Victor determinando a excomunhão do bispos de Éfeso e toda a Ásia Menor. O movimento do Bispo Vitor foi amplamente condenado pela demais lideranças da Igreja, tendo Irineu de Lyon um papel decisivo na reversão da excomunhão e reconciliação entre as igrejas.  Ao mesmo tempo que indica que a igreja de Roma exercia enorme influência, o episódio demonstra que havia uma resistência muito grande de importantes congregações a tais movimentos de imposição. A posição romana acaba sendo vitoriosa e acatada no concílio de Nicéia, mais de 100 anos depois, mas foi muito mais uma vitória da persuasão do que da imposição.  A maior parte das outras grandes e tradicionais congregações, que também exerciam liderança regional, como Corinto, Ponto, Jerusalém e Cesáreia acabaram por concordar com Roma, isolando Éfeso. Havia assim um enorme "soft power" da rainha de manto e sandálias douradas. Igualmente, a localização no centro do poder do Império é algo a ser considerado. Como já vimos aqui no adcummulus, por volta de 190 DC, a Igreja de Roma tinha entre seus membros e simpatizantes um círculo influente de escravos libertos da casa Imperial como Márcia, concubina do Imperador Comodo, Carpóforo, e Marco Aurélio Prosenes, futuro mordomo do Imperador Caracala (211 a 217 DC). Mesma antes, no início do século II, Inácio de Antioquia estava convicto de que tinha que enfrentar o martírio, e pede que a Igreja de Roma não interferisse em sua condenação a morte, no intuito de salva-lo (Carta aos Romanos, capitulo 2), indicando que pelo menos existia a possibilidade de que cristãos que conheciam pessoas influentes pudessem evitar a execução. Professora Margareth Mitchell, da Universidade de Chicago, pondera o itinerário de Abércio e suas repercussões em termos da Igreja no sec. II DC.

In what may be the earliest extant Christian inscription (sometimes before 216 CE), the famous epitaph of Abercius, Bishop of Hieropolis in Phrygia Salutaris, recounts his own journey at the end of second century, self consciously aligning himself with the earlier Pauline itinerary and experience - "everywhere" - he says We had Paul as our companion. In his wide travels a century and a half after Paul among Christian communities from his home in Asia to Rome, to Syria, Nisibis and Mesopotamia,   (tradução) No que pode ser a mais antiga inscrição cristã existente (algum momento ante de 216 dC), o famoso epitáfio de Abercius, bispo de Hierópolis na Frígia Salutaris, relata sua própria jornada no final do século II, alinhando-se conscientemente com o itinerário paulino anterior e experiência - "em todos os lugares" - ele diz que tinha Paulo como companheiro em suas amplas viagens um século e meio depois de Paulo entre as comunidades cristãs de sua casa na Ásia a Roma, à Síria, Nísibis e Mesopotâmia, [9]

O epitáfio enfatiza tanto a diversidade geográfica dos primeiros cristãos, como sua unidade enquanto Igreja. É um caminho longo de Hieropolis até Roma, passando por milhares de quilômetros, mas, diz Abércio, "A fé me levou em todos os lugares", sendo sempre recebido por seus irmãos "tendo um doce vinho e servindo o cálice com pão'. A enorme diversidade geográfica contrasta com a uniformidade na fé e prática. Ainda que deva ser ressaltado que o cristianismo primitivo estava ainda construindo uma identidade ortodoxo (portanto, proto-ortodoxo) e abrigava várias vertentes com maior ou menor (gnósticos de várias linhas, ebionitas, marcionitas e montanistas), Abércio destaca numerosos elementos comuns, compartilhados por um grupo bem significativo  e geograficamente diversificado. A inscrição evoca explicitamente a memórias das viagens missionárias de Paulo, que ocorreram entre 125 a 150 anos antes, e que também percorreram uma parte significativa do Império, encontrando cristãos em (quase) toda parte. 

Abercius says he encountered everywhere some constants of the christian movement: instruction in the Lord's trustworthy text (grammata pista), a eucharistic celebration of common food eaten in company of 'friends' (phíloi), and a common faith (pistis) leading the way (lines 12-16). He declares himself 'a disciple of a holy shepherd' (mathetes poimenus hagnou) who feeds flocks of sheep on mountains and plains. (...) both the cryptic words earlier and ths concluding knowing adress presume a community of like-minded people who, if not known to wider world, are recognisable to one another. Their uniting bonds are a holu sheperd and holy virgin, common texts and tablem bread, wine and fish  (tradução) Abercius diz ter encontrado por toda parte algumas constantes do movimento cristão: a instrução no texto confiável do Senhor (grammata pista ), uma celebração eucarística de comida comum consumida na companhia de 'amigos' (phíloi), e uma fé comum (pistis) abrindo o caminho (linhas 12-16). Ele se declara 'um discípulo de um santo pastor' (mathetes poimenus hagnou) que alimenta rebanhos de ovelhas nas montanhas e planícies (...) Tanto as palavras enigmáticas anteriores quanto estas palavras finais pressupõem uma comunidade de pessoas de mentalidade semelhante que, se não forem conhecidas pelo mundo mais amplo, são reconhecíveis umas pelas outras. Seus laços de união são um santo pastor  e uma virgem sagrada, textos comuns e mesa de pão, vinho e peixe.[9]

 Dentre os símbolos que a inscrição de Abércio evoca, temos "(...) peixes de uma fonte pura e poderosa (...)". A associação do peixe ao cristianismo é atestada já nos evangelhos, sendo continuada em  correspondentes literários e arqueológicos muito antigos, vários deles contemporâneos a inscrição de Abércio. Assim, Tertuliano, escrevendo de Cartago (atual Tunísia) na virada do segundo para o terceiro século, nos diz

 Mas nós, peixinhos, seguindo o exemplo do "peixe" [grego: Ichtys] Jesus Cristo, nascemos na água, e não estamos seguros de nenhuma outra forma senão habitando na água.[10]

  

Estela de Licínia Amias, início do III século DC,
proveniente da necrópolis do Vaticano. via wikicommons
Ichtys é um acrônimo em grego, Iēsous Christos Theou Yios Sōtēr (Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador).Em Roma, também no início do III século, uma cristã chamada Licinia Amias foi homenageada por seus familiares, com uma inscrição funerária, ao lado, que evoca o peixe (assim como o epitáfio de Abércio faz menção ao peixe trazido pela virgem). "Peixe dos viventes, para Licinia Amias, que merecidamente, viveu". É um dos mais antigos artefatos associados ao cristianismo primitivo, mas ainda evidencia uma identidade em construção e conexões dos adeptos da nova fé com sua antiga vida. A inscrição   possui as letras DM (Di Manes, ou "as almas dos mortos", em latim). Algumas sepulturas cristãs primitivas ainda mantinham  elementos de continuidade com o passado.

Ainda no final do século III, Clemente de Alexandria, também lista o peixe entre os símbolos cristãos 

"(...) E que nossos selos sejam uma pomba, ou um peixe, ou um navio velejando ao vento, ou uma lira musical, que Polícrates usou, ou uma âncora de navio, que Seleuco gravou como um instrumento; e se houver alguém pescando, ele se lembrará do apóstolo e das crianças tiradas da água. Pois não devemos delinear os rostos dos ídolos, nós que estamos proibidos de nos apegar a eles; nem espada, nem arco, seguindo como nós, a paz; nem copos, sendo temperados (...)" [11].

"Peixe e Cesta de Pães", afresco na Catacumba de 
São Calisto, Roma, seculo III DC, via wikicommons
 Retornando a Roma, agora na Catacumba de São Calisto, na cripta de Lucina, que chegou a ser identificada, no início do século XX pelo arqueólogo Battista de Rossi, como Pompônia Graecina, cristã do primeiro século que mencionamos aqui no primeiro post da série. A hipótese de De Rossi é bastante polêmica, mas é importante destacar que o afresco ao lado, também do início do século III, localizada naquela cripta, é testemunho adicional da relevância do simbolismo da cesta de pães e peixes na arte e imaginário cristão primitivo. Ou seja, Abércio atesta não só uma fé comum e disseminada, com relativa unidade em termos comunitários e doutrinários, mas também uma simbologia   comum, utilizada por seus irmãos na fé, de forma generalizada, seja na  Frígia, Norte da África, Egito ou Roma.   

 A Igreja de Megido

Sala de orações cristã na prisão de Megido. Fonte: Imagem em 
Yotam Tepper, Legio, Kefar ‘Otnay, in Hadashot Arkheologiyot:
Excavations and Surveys in Israel, vol. 118, 2006

 Em 2005, numa escavação de resgate, a equipe do arqueólogo Yotam Tepper, localizou na cidade de Megido, no norte Israel, o que foi identificado como um local dedicado a oração e adoração de cristãos primitivos, ou seja, uma espécie de Capela. A estrutura foi datada do início do século III DC, mais antiga estrutura dedicada então mais antiga conhecida e com datação confirmada, em Dura Europos, de 241 DC. (aqui no adcummulus, porém, já havíamos defendido a "Casa de Pedro" em Cafarnaum como a mais antiga igreja do mundo).

A escavação de resgate ou comercial, é um ramo da arqueologia que atua sobre sítios em processo de destruição. Com a expansão urbana, por exemplo, por vezes são localizados artefatos e contextos arqueológicos, em áreas sujeitas a empreendimentos ou reformas. Em muitos países, há leis que determinam que as obras devem ser interrompidas para que possam ser conduzidas escavações no local, para retirada dos artefatos e avaliação dos contextos em que foram encontrados, em curtíssimo espaço de tempo. Embora haja a pressão do tempo (a escavação normal de um sítio pode se prolongar por anos, até décadas), é uma forma de conciliar a expansão urbana em sítios densamente povoados (como Jerusalém) com a conservação do conhecimento científico. Entre exemplos desse tipo de escavação na arqueologia bíblica, estão a Tumba de Talpiot, boa parte das escavações arqueológicas em Nazaré, ou essa escavação em Bete Semes.

No caso da capela/igreja de Megido, a descoberta se deu numa instalação prisional integrante de uma unidade policial. Conforme o relatório da escavação:

During October–December 2005 a salvage excavation was conducted in the prison compound on the hill of the Megiddo police (Permit No. A-4411; map ref. NIG 21795–801/71965–95; OIG 16795–801/21965–95). The excavation, on behalf of the Antiquities Authority, was financed by the Israel Prison Service, with the support of the officers and jailors of the Megiddo prison and the participation of inmates from Megiddo and Zalmon prisons. The excavation was directed by Y. Tepper, (tradução) Entre outubro de dezembro de 2005, uma escavação de resgate foi realizada no complexo prisional na colina da polícia de Megido (Alvará nº A-4411; mapa ref. NIG 21795–801/71965–95; OIG 16795–801/21965–95) . A escavação, em nome da Autoridade de Antiguidades, foi financiada pelo Serviço Prisional de Israel, com o apoio dos oficiais e carcereiros da prisão de Megiddo e a participação de detentos das prisões de Megiddo e Zalmon. A escavação foi dirigida por Y. Tepper [12]

 A datação e motivos para caracterização do sítio como cristão, são apresentados abaixo, pela Professora Joan E Taylor, do King's College:

In 2005 a room was found in a salvage excavation in the precints of a military compound of a Roman Legio (Maximianopolis) and identified as Christian on the basis of  54-square meter mosaic with one dedicated to "God Jesus Christ". The Megiddo Church, as the room become known, was dated to about 230 on the basis of pottery, coins and inscription style (Adams 2008, 62-69; 2013, 96-99; Tepper e Di Segni 2006). However, Tzaferis (2007) prefers a date in the latter part of the third century. The site's abandonment in about 305, evident in the purposeful covering of the mosaic, relates well with the crisis of 303, when the christians communities of Palestine experienced persecution instituted by the emperor Diocletian.(tradução) Em 2005 uma sala foi encontrada em uma escavação de salvamento nos arredores de um complexo militar de uma Legião Romana (Maximianópolis) e identificada como cristã com base em um mosaico de 54 metros quadrados com um dedicado a "Deus Jesus Cristo". A Igreja de Megido, como a sala ficou conhecida, foi datada de cerca de 230 com base em cerâmica, moedas e estilo de inscrição (Adams 2008, 62-69; 2013, 96-99; Tepper e Di Segni 2006). No entanto, Tzaferis (2007) prefere uma data na segunda parte do século III. O abandono do local por volta de 305, evidente na proposital cobertura do mosaico, relaciona-se bem com a crise de 303, quando as comunidades cristãs da Palestina sofreram perseguições instituídas pelo imperador Diocleciano. [13]

Assim, é significativo que uma capela cristã foi encontrada no quartel de uma legião romana (a VI Ferrata Legio, primeiramente atestada nas campanhas de Júlio Cesar, e que tinha base principal na Judeia/Síria desde a revolta de Bar Kochba, entre 132-135 DC). Tudo indica que funcionou durante 75 anos, se aceita a proposta de Tepper e Di Segni, ou cerca de 30 anos, se for seguido Tzaferis, até seu abandono, na grande perseguição de Diocleciano (303-305 DC). Ou seja, embora o cristianismo fosse considerada uma superstitio, ilegal aos olhos de Roma, e perseguições esporádicas ocorressem porque os cristãos, supostamente não cumpriam seus deveres cívicos, ao mesmo tempo, um número significativo de cristãos ocupavam lugares no governo romano e entre as elites (e essa tensão é o escopo de nossa série). Ou seja, sucessivos comandantes devem ter, pelo menos, feito "vista grossa" à fé proibida entre seus soldados. O mesmo Império Romano que condenou Blandina a uma execução brutal, e condenou Perpétua e Felicidade a serem lançadas as feras, permitia a Márcia influenciar algumas políticas do Imperador Cômodo em benefício dos cristãos, a Marco Aurélio Prosenes e a Marcos Demetrianos progredir de escravo a mordomo imperial e sequer disfarçar sua identidade cristã, apesar de ser um magistrado provincial da Bitínia, respectivamente, sem falar em Júlio Africano, com sua proximidade ao Imperador Alexandre Severo. Ou seja, apesar de uma existência precária em termos legais, o cristianismo prosperou em vários segmentos da sociedade, e se tornava cada vez mais visível. Mesmo preso por propagar o cristianismo, o apóstolo Paulo diz que a sua prisão contribui para o progresso do evangelho e para que o nome de Cristo fosse manifesto a toda guarda do Palácio (fl.1:22), alguns dos quais compartilhavam suas saudações aos demais cristão (fl. 4:22). 

Outro ponto a ressaltar é o fato de que relativamente poucas estruturas dedicadas ao cristianismo foram descobertas, e as que foram parecem evidenciar residências que foram gradualmente transformadas em igrejas. Para isso, é importante utilizar um conceito muito relevante de como a missão cristão cresceu e se estruturou, apresentado pela Professora Marie-Françoise Baslez (1946-2022), da Universidade de Paris XII:

"A missão paulina, a única que podemos realmente estudar, foi organizada como uma penetração por capilaridade, que utiliza todas as redes da cidade antiga, funcionando esta última como uma imbricação de comunidades, da menor - que é a família - à maior - que é a cidade. A célula-tronco da missão é a "casa", a oîkos, ao mesmo tempo comunidade familiar e comunidade de atividade, exploração agrícola, fábrica ou loja. Ao contrário da família nuclear moderna, a oîkos antiga reúne pessoas de estatuto diferente, incluindo mulheres e crianças, escravos e libertos em grande número nas famílias de elite, sua composição transcende as divisões da cidade antiga entre gregos e bárbaros, homens e mulheres, livres e não-livres. Os cristãos de uma cidade se reúnem seja por oîkos, seja na residência de um homem ilustre, que convida seus vizinhos e amigos. Essa prática continuou durante dois séculos. Em Roma como em Dura Europos, na Síria, os primeiros edifícios cristãos identificáveis no tecido urbano, em meados do século III, resultam de reforma de grandes residências urbanas: são casas-igrejas. [14]

Baslez cita o caso do casal Priscila e Aquila. Aquila e sua esposa, assim como Paulo, eram judeus e fabricantes de tendas. Assim, ao se conhecerem em Corinto, se associaram tanto profissionalmente, quanto na propagação do evangelho (Atos 18:1). Anos depois, Paulo retorna a Antioquia, e Aquila e Priscila o acompanham por parte do caminho, se estabelecendo em Éfeso, onde encontram Apolo, e "(...) convidaram-no para ir à sua casa e lhe explicaram com mais exatidão o caminho de Deus (...)" (Atos 18:26). Mais adiante, Paulo escrevendo aos Romanos, saúda Aquila e Priscila, bem como "(...)  a igreja que se reúne na casa deles (...)" (Rom 16:5). Assim, complementa Baslez, "(...)a fábrica de Áquila proporcionou o exemplo de uma igreja itinerante, que se deslocou de Corinto a Efeso e a Roma (...)".[14] 

Assim, as congregações se reuniam em casas de seus membros, passando, gradualmente, a dedicar residências a função de igreja. A Igreja de Megido apresenta algumas diferenças em relação a esse processo, uma vez que envolvia uma guarnição militar e suas famílias.

A descrição da sala de oração/capela, tem como principal elemento escavado, um piso com um mosaico e varias inscrições:

The room served as a ritual and prayer hall and one of the inscriptions was dedicated to God Jesus Christ. An ancient Greek inscription and an octagon with fish in its center, enclosed with geometric designs, were incorporated in the northern panel. The inscription mentions an officer in the Roman army who donated his own money for the construction of the floor; the name of the artist who built the floor is also noted. Two Greek inscriptions were integrated in the southern panel; one faced west and the other––east. The names of four women are mentioned in the eastern inscription and the name of another woman who donated the table as a memorial to God Jesus Christ appears in the western inscription. The direction and contents of the three inscriptions accentuated the interior circular layout of the hall, with the stone table base built in its center (below), around which the local Christian community apparently worshipped and prayed.(TraduçãoA sala servia como sala de rituais e orações e uma das inscrições era dedicada a Deus Jesus Cristo. Uma inscrição grega antiga e um octógono com peixes no centro, cercados por desenhos geométricos, foram incorporados ao painel norte. A inscrição menciona um oficial do exército romano que doou seu próprio dinheiro para a construção do piso; o nome do artista que construiu o piso também é anotado. Duas inscrições gregas foram integradas no painel sul; um voltado para o oeste e o outro – leste. Os nomes de quatro mulheres são mencionados na inscrição oriental e o nome de outra mulher que doou a mesa como um memorial a Deus Jesus Cristo aparece na inscrição ocidental. A direção e o conteúdo das três inscrições acentuavam o traçado circular interno do salão, com a base da mesa de pedra construída no centro (abaixo), em torno da qual a comunidade cristã local aparentemente cultuava e rezava. [15]

A sala possuía cerca de 54 metros quadrados, e seu piso tinha um mosaico formado pelo octógono com dois peixes no centro e uma inscrição, de um lado, sendo provavelmente utilizado para a celebração da eucaristia/ceia do Senhor e oração, e algumas inscrições no outro lado. A inscrição localizada no lado nordeste do mosaico, ao lado dos dois peixes, indica o patrono daquela congregação:

Gaiano, também chamado Porfírio, centurião, nosso irmão, mandou construir esse pavimento as suas expensas em um ato de liberalidade. Bruto levou a cabo esse trabalho.

O centurião, era um oficial romano de comandava uma tropa de 80 a 100 soldados. Cinco ou seis centurias formavam uma coorte, e 10 coortes formavam uma legião. Uma centuria, assim, fazendo uma analogia com exércitos modernos, seria pouco maior que um pelotão e menor que uma companhia, ambas unidades hoje comandadas por oficiais (tenentes, no caso dos pelotões, e capitães ou majores, para companhias). O fato de uma figura importante da legião ter patrocinado o mosaico indica que possivelmente era a pessoa que garantia a atuação daquela congregação junto aos comandantes da legião. Apesar de alguns pais da igreja, como Tertuliano, terem demonstrado reserva a possibilidade de cristãos servirem ao exército, pela possibilidade de serem forçados a oferecer sacrifícios ao imperador e aos deuses pagãos, e menciona o caso de um soldado que foi forçado a ter que escolher entre o senhor terreno e o celestial  (Sobre a Idolatria XIX, De Corona Militis I, respectivamente), fato é que uma parte significativa das inscrições cristãs pré constantinianas, se referem a militares que serviram em legiões romanas. Essa database de inscrições do exército romano, mantida pela equipe do Professor Christopher Zeichmann, (Universidade de Toronto), indica pelo menos 21 ocorrências. Há casos, como o do soldado Aurélio Gaio, que descreve uma vida inteira servindo ao exército romano, estacionado em várias partes do Império.

No lado sudeste, há uma outra inscrição, agora comissionada por uma mulher, que é a mais declaradamente cristã de todas: 

Aketpous que ama a Deus, oferece esse mosaíco ao Deus Jesus Cristo, como memorial

Há uma terceira inscrição, na qual são mencionadas quatro mulheres integrantes da congregação:

 Lembre-se de Primilla e Cyriaca e Dorothea, e além disso também Chreste

Joan Taylor comenta a relevância dessas inscrições, indicando também o papel relevante dessas mulheres, que possuem suficientes recursos para comissionar uma inscrição e devem ter exercido papeis relevantes na comunidade, por exemplo, como diaconisas, ou, no caso de Primilla e outras mulheres mencionadas na terceira inscrição, como víuvas, algumas das quais serviam como oficiais nas igrejas (ex. I Tim 5, que lista requisitos semelhantes aos necessários a presbíteros e diáconos):

These named women would be appropriately understood as widows who had made donations independently. The order of windows remained important throughout the early centuries of the church (Eisen 2000, 142-57, Thurston 1989). The presence of women need not be surprising in a military camp since the after 197, military men under the rank of centurion were permitted to marry (Phang 2001, 226; and see 107-9). The mosaic suggest a gendered division of space between the southwest (inscription mentioning women) and the northeast (inscription mentioning men). (tradução) As mulheres mencionadas seriam apropriadamente entendidas como viúvas que fizeram doações de forma independente. A ordem das viuvas permaneceu importante ao longo dos primeiros séculos da igreja (Eisen 2000, 142-57, Thurston 1989). A presença de mulheres não precisa ser surpreendente em um acampamento militar, uma vez que, depois de 197, os militares sob a patente de centurião foram autorizados a se casar (Phang 2001, 226; e ver 107-9). O mosaico sugere uma divisão generificada do espaço entre o sudoeste (inscrição que menciona as mulheres) e o nordeste (inscrição que menciona os homens).[16]

Tanto a inscrição de Abércio como o mosaico da capela/igreja de Megido são, provavelmente, quase contemporâneos. As inscrições indicam pessoas com padrão bem além da subsistência, com um bispo que pode empreender viagens por boa parte do Império (mesmo que conciliando sua vocação religiosa com outra ocupação) e um oficial do exército romano. Há semelhanças na simbologia (como o peixe), e indicam um cristianismo que se espalhara geograficamente por todo o império, e ia mostrando gradual capilaridade, se manifestando cada vez mais abertamente, mesmo em segmentos em tese encarregados de sua repressão (como o exército romano).

Referências Bibliograficas

[1]  William Tabernee, 2007 Fake Prophecy and Polluted Sacraments: Ecclesiastical and Imperial Reactions to Montanism,  fls 10/11

[2]  Peter Thonemamm (2012) Abercius of Hierapolis: Christianization and Social Memory in Late Antique Asia Minor In Beate Dignas & RRR Smith, Historical and Religious Memory in the Ancient World, fl. 258

[3] Margareth Mitchell (2008) From Jerusalem to the Ends of Earth in Margareth Mitchell, Frances M Young e  K. Scott Bowie (2014)  Cambridge History of Christianity: Volume 1, Origins to Constantine, fl. 296, nota de rodapé 3

[4] Peter Thonemamm (2012) Abercius of Hierapolis: Christianization and Social Memory in Late Antique Asia Minor In Beate Dignas & RRR Smith, Historical and Religious Memory in the Ancient World, fl. 260

[5]  Eusébio de Cesaréia, História Eclesiastica, Livro 5.16.2

[6] William Tabernee, 2007 Fake Prophecy and Polluted Sacraments: Ecclesiastical and Imperial Reactions to Montanism,  fls 11

[7] Tertuliano de Cartago, Resposta aos Judeus, capítulo 7

[8] Peter Thonemamm (2012) Abercius of Hierapolis: Christianization and Social Memory in Late Antique Asia Minor In Beate Dignas & RRR Smith, Historical and Religious Memory in the Ancient World, fl. 260

[9] Margareth Mitchell (2008) From Jerusalem to the Ends of Earth in Margareth Mitchell, Frances M Young e  K. Scott Bowie (2014)  Cambridge History of Christianity: Volume 1, Origins to Constantine, fl. 295-296

[10] Tertuliano de Cartago, Do Batismo, capítulo 1.

[11] Clemente de Alexandria, Pedagogo, Livro III, capítulo IX

[12]  Yotam Tepper (2006), Legio, Kefar ‘Otnay, in Hadashot Arkheologiyot:Excavations and Surveys in Israel, vol. 118.

[13] Joan E Taylor (2018) Christian Archeology in Palestine: The Roman and Byzantine Periods In David K. Pettegrew, Thomas W. Davis, William R. Caraher, The Oxford Handbook of Early Christian Archaeology, fls 371-372

[14] Marie Françoise-Baslez (2007) "No princípio. Os primórdios da história do cristianismo" in Alain Corbin, Historia do Cristianismo, fls. 29-30

[15]  Yotam Tepper (2006), Legio, Kefar ‘Otnay, in Hadashot Arkheologiyot:Excavations and Surveys in Israel, vol. 118

[16]  Joan E Taylor (2018) Christian Archeology in Palestine: The Roman and Byzantine Periods In David K. Pettegrew, Thomas W. Davis, William R. Caraher, The Oxford Handbook of Early Christian Archaeology, fls 371-372



sábado, 12 de setembro de 2015

A Morte do Menino Aylan Kurdi e o Problema do Mal no Cristianismo (Primitivo)


Massacre dos Inocentes, Nicolas Poussin (1626),  Wikipedia Commons
Causou extrema comoção, no mundo inteiro, o caso do menino Aylan Kurdi, de 3 anos de idade, que junto com seu irmão Galip (5 anos), e sua mãe Rehan morreram em um naufrágio de uma barca de 16 refugiados sírios, que, da Turquia, tentavam chegar a Ilha de Kos, na Grécia. O corpo de Aylan foi encontrado pela polícia turca, nas praias do Mar Egeu. Sua foto foi veiculada em todo mundo (e que não ousamos reproduzir aqui), comovendo e chamando a atenção para a profunda crise de refugiados na Europa, onde 2500 pessoas morreram, a maioria afogada no Mediterrâneo.

Aylan vivia na cidade de Kobani, perto da fronteira da Síria e Turquia, e sua família fugia dos confrontos entre as milícias curdas e o Estado Islâmico. A tia de Aylan, Teema Kurdi, vive em Vancouver (Canadá) e a família buscava chegar a União Européia para tentar asilo junto as autoridades canadenses, uma vez que solicitação anterior feita na Turquia havia sido indefirida.

Aylan é simbolo também de outra tragédia. Quando ele nasceu, a Siria era governada pelo regime ditatorial de Bashar El Assad, quando foi sacudida pela primavera árabe. O movimento, inicialmente pacífico, foi reprimido durante pelo ditador, e se transformou em guerra civil aberta. As potências ocidentais, assim como a Turquia e a Arábia Saudita interferiram no conflito com o objetivo de fortalecer rebeldes sunitas "moderados", enquanto o Irã, a mílicia Hezbollah do Libano, bem como a Rússia apoiaram a manutenção do atual governo Sirio. O resultado, além de 220 mil mortos, a quase destruição da infraestrutura do país, milhões de refugiados pelos países vizinhos, e a ruína de vidas como a do menino Aylan, privado da possibilidade de crescer. Entre os vários grupos rebeldes, se sobressaem a Frente Al Nusra, "franquia" local do Al Quaeda, e o mais radical e o tristemente célebre Estado Islâmico. O conflito é visto como de difícil resolução, houve todos os tipos de propostas, desde uma cooperação com jihadistas mais moderados para derrubada de Assad, até, na prática, os que propõem se aliar a eleEm suma, os interesses e jogos de poder de ditadores e potências internacionais arruinaram os sonhos e a vidas de milhões de pessoas. A morte de Aylan Kurdi é a face visível de mais um "massacre dos inocentes", agora em pleno século XXI.

Além das considerações geopolíticas, há o lado humano. O sofrimento do pai de Aylan, Abdullah Kurdi, ao não poder evitar a ruína de seu mundo e a morte de sua família. E faz questionar o sofrimento. E o mal no mundo. Como na recente capa da revista Veja, citando Santo Agostinho "Sendo Deus bom, fez todas as coisas boas, de onde então vem o mal?"  (Confissões Livro 7.5.7) .

Uma resposta, bastante sucinta, para o problema tem sido "Não há Deus", pois se existisse, não haveria o mal. Não entraremos nesse debate. No entanto, vamos utilizar o trabalho de um estudioso que não acredita em Deus, para  trazer luz a como os crentes lutaram para responder essas questões, e que moldaram de forma fundamental o cristianismo.

Bart Erhman, o estudioso de quem falamos, Professor da Universidade da Carolina do Norte em Chappel Hill.

Em seu livro, Evangelhos Perdidos, Erhman analisa a explicação do sofrimento na teologia bíblica tradicional do Velho Testamento, que ele chama de Profética [1]:

"O que deveriam pensar os teólogos e outros, então, quando em tempos posteriores o povo de Israel sofreu, sem a interferência de Deus? Muito da Bíblia Hebraica  tem haver com essa questão. A resposta padrão vem nos escritos dos profetas hebreus, como Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias e Amós. Para esses escritores, Israel sofre reveses militares, políticos, econômicos e sociais porque o povo pecou contra Deus e esta sendo punido por isso. Quando porém eles retornarem aos caminhos de Deus, seguindo as orientações para a vida comunal e a adoração que lhes haviam sido dadas por Moisés na Lei, Deus condescenderia e faria com que voltasse a ter uma vida próspera e feliz"[1]
No entanto, a história bíblica traz momentos onde os justos sofreram justamente por serem justos. O profeta Elias se questiona "porque os filhos de Israel deixaram a tua aliança, derrubaram os teus altares e mataram seus profetas a espada, e só eu fiquei, e buscam minha vida para me tirarem" (I Reis 19:10). Da mesma forma, o justo Jó, perde seus bens, sua família e sua saúde, e seus amigos o questionam, achando que havia algum pecado oculto que causava o seu sofrimento, mas a retidão de Jó é reconhecida pelo próprio Senhor. 

Erhman desenvolve em seguida o locus histórico de uma outra Teologia do Sofrimento, a Apocaliptica:

O sentido apocaliptico judaico surgiu em um contexto de extremo sofrimento, cerca de duzentos anos antes de Jesus, quando o governante sírio que tinha o controle da Palestina, a patria judaica, perseguiu os judeus extamente por serem judeus. Por exemplo, a circunsição - o sinal central da união pactual com Deus - foi proibida sob pena de morte. Claramente , para muitos pensadores judeus, esse tipo de sofrimento, contrário a clássica visão dos profetas, não poderia vir de Deus, uma vez que era o resultado direto de tentar segui-lo. Deveria haver alguma outra razão para o sofrimento, e assim algum outro agente responsável por ele (...) Além disso, havia forças cosmicas no mundo, forças malignas com o Diabo à frente, que estavam afligindo o povo de Deus. De acordo com essa perspectiva, ainda era o criador deste mundo e seria seu redentor final. Mas, no momento, as forças do mal haviam sido libertadas e estavam lançando devastação sobre o povo de Deus. Os apocalipticos judaícos, porém, sustentavam que Deus logo interviria e destruiria essas forças do mal em uma demonstração cataclísmica de poder, destruindo todos que se lhe opussessem, incluindo os reinos que estavam causando sofrimento a seu povo. Ele traria então um novo reino, no qual não haveria mais pecado, sofrimento, mal ou morte.[1]


Estudiosos como o Professor John J. Collins, de Yalle, citando o trabalho de Paul D Hanson,  (Harvard Divinity School), observam que a profecia pós-exílica, no final do século VI AC (cerca de 500 BC), encontrada em autores como Ageu e Zacarias já trazia as sementes do apocaliptismo. Collins avalia também a possível contribuição de precedentes babilônicos e do zoroatrismo persa, no entanto, o genêro se desenvolve plenamente e encontra seu apogeu no período helenístico e romano[2].


No Novo Testamento, o anseio pela intervenção direta do Senhor na história é amplamente atestado, o Apóstolo Paulo, no documento cristão mais antigo, sua carta aos Tessalonisseences (50 DC), escreve "Pois, dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá do céu, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois disso, os que estivermos vivos seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre.(I Tessalonissences, 4:16-17). Paulo deixa claro que os cristãos não deveriam ser ignorantes nesses ensinos "para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança"(v.13).


No entanto, a primeira e segunda geração de cristãos repousou, e o Senhor não voltou, e uma série de eventos perturbadores atingiram as comunidades de judeus e gentios cristãos, tais como a Perseguição de Nero (64 DC), e a destruição de Jerusalém e do Templo (70 DC), a Revolta de Bar Kochkba (132-135 DC), colocando novos desafios a sua fé. Neste contexto, surge uma nova interpretação, radical, da origem e aparente prevalência do mal no mundo. Continua o Professor Bart Erhman:

Entretanto, se essas visões [profética e apocaliptica] são qeustionadas pelas realidades presentes do sofrimento no mundo, o que acontece? Talvez, na verdade, a suposição toda esteja errada. Talvez esse mundo não seja a criação de um Deus único e verdadeiro. Talvez o sofrimento não esteja acontecendo como punição desse Deus ou apesar de sua bondade. Talvez o Deus deste mundo não seja bom. Talvez ele esteja causando sofrimento não porque seja bom e queira que as pessoas compartilhem sua bondade, mas porque seja maligno, ignorante ou inferior, querendo que as pessoas sofram ou não se importando se sofrem, ou talvez ele não possa fazer nada quanto a isso. Mas, se isso é verdade, então o Deus deste mundo não é o Deus único e verdadeiro. Deve haver um Deus maioracima disso tudo, que não criou este mundo. Nesse entendimento, o mundo material em si - a existência material em todas as suas formas - é inferior ou maligno na melhor das hipóteses e assim também é o Deus que o criou. Deve haver um Deus não material, não conectado com este mundo, acima do Deus criador do Velho Testamento, um Deus que nem criou este mundonem lhe trouxe sofrimento, que quer aliviar seu povo do sofrimento - não redimindo este mundo, mas libertando dele as pessoas, livrando-as do enclausuramento na existência material.[3]

"Jesus Chorou", James Tissot, 1886, Brooklin Museum, via Wikipedia Commons

Essa é que o Professor Erhman chama de visão "gnostica", compartilhada por vários grupos que foram associados a figuras como Simão o Mago, CerintoBasilides, o influente Valentino, e seus seguidores Marcus, Ptolomeu, Heracleon e Bardaisan. Posteriormente, encontraria sua expressão mais duradoura com Mani. Sua visão geral influenciou ainda outros pensadores,  como Marcião de Sinope


O que esses teologos e pensadores primitivos propunham é quase a expansão da "Hipótese" de Carlos Drummond de Andrade:

E se Deus é canhoto e criou com a mão esquerda?Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.
O correspondente ao "deus canhoto" de Drummond era o demiurgo,  a figura postulada por Platão ( 428-348 AC) como o "artesão" que criou o mundo. Como explica o Professor Donald Zeyl (Universidade de Rhode Island), na Enciclopédia Stanford de Filosofia, Em seu dialogo Timeu, Platão propõe:

The universe, he proposes, is the product of rational, purposive, and beneficent agency. It is the handwork of a divine Craftsman (“Demiurge,”dêmiourgos, 28a6), who, imitating an unchanging and eternal model, imposes mathematical order on a preexistent chaos to generate the ordered universe (kosmos). (Tradução) O universo, ele propõe, é o produto de um agente racional, com propósitos, e benigno. É moldado´pelo trabalho de um divino artesão (Demiurgo, "demiourgos", 28a6), que, pela imitação de um modelo imutável e eterno, impõe ordem matemático ao caos preexistente, gerando o universo ordenado (Kosmos).[4]
Assim, o Demiurgo não era, a princípio, mau. O Gnosticismo porém o reinterpreta, como explica o Professor Edward Moore, o Demiurgo, para os gnósticos:

According to Gnostic mythology (in general) We, humanity, are existing in this realm because a member of the transcendent godhead, Sophia (Wisdom), desired to actualize her innate potential for creativity without the approval of her partner or divine consort. Her hubris, in this regard, stood forth as raw materiality, and her desire, which was for the mysterious ineffable Father, manifested itself as Ialdabaoth, the Demiurge, that renegade principle of generation and corruption which, by its unalterable necessity, brings all beings to life, for a brief moment, and then to death for eternity. However, since even the Pleroma itself is not, according to the Gnostics, exempt from desire or passion, there must come into play a salvific event or savior—that is, Christ, the Logos, the "messenger," etc.—who descends to the material realm for the purpose of negating all passion, and raising the innocent human "sparks" (which fell from Sophia) back up to the Pleroma (Tradução) De acordo com a mitologia gnostica (genericamente) Nós, a humanidade, existimos no reino material, porque um membro do conselho divino, Sofia (Sabedoria), desejou concretizar seu potencial criativo inato, sem aprovação do seu consorte ou parceiro divino. Sua hubris (presunção), neste particular, resultou em materialidade bruta, e seu desejo, que era para o misterioso Pai Inefável, se manifestou como Ialdabaoth, o Demiurgo, o principio generativo, renegado e corrupto, que tem a constante necessidade de trazer todas as coisas a vida, por um breve momento, para que depois morram eternamente. Entretanto, como até mesmo o Pleroma não é, de acordo com os Gnósticos, isenta de desejo e paixão, há de existir um evento salvífico ou Salvador - que é, Cristo, o Logos, o mensageiro, etc - que desce ao mundo material com o propósito de anular todas as paixões, e manifestando as centelhas divinas na humanidade inocente (provenientes da queda de Sofia), de volta a Pleroma.[5]
Como já discutimos aqui no adcummulus anteriormente ensinavam os mestres gnósticos, O Logos, Cristo, desceu do seio divino e passando através dos vários níveis celestiais, chegou a terra e tomou forma humana, aparecndo nos tempos de Pôncio Pilatos como Jesus Cristo. Para alguns gnósticos Jesus apenas parecia ter um corpo humano, tal como os anjos que apareceram a Abraão. A maioria porém acreditava que o Espirito Divino Cristo se apossou de um homem chamado Jesus, e por meio dele realizou feitos maravilhosos e extraordinários. Assim, Simão, o Mago, segundo Irineu  de Lyon ensinava que apareceu como Filho aos Judeus e como Pai aos Samaritanos, tendo resolvido vir ao mundo - porque os anjos estavam governando-o mal, servindo a suas próprias paixões - para acertar as coisas, e alterou sua forma em sua descida, assemelhando-se aos principados e potestades por onde passou, e aos homens apareceu em forma humana, embora não fosse humano, que acreditaram que ele sofreu na Judeia, embora não tenha sofrido (Irineu, Contra Todas as Heresias Livro I: Capitulo 23).   Cerinto, segundo Hipolito de Roma, " afirma que Jesus não nasceu de uma virgem, mas da união natural de José e Maria, como o resto da humanidade; mas que ele excedia em justiça, prudência e compreensão todos os outros homens. E Cerinto afirma também que após o batismo de Jesus, Cristo veio a terra em forma de pomba e desceu sobre ele, vindo da parte da Soberania que habita acima do circulo da existência, e depois disso ele passou a pregar o Pai, que não era conhecido, e realizar milagres. E ele declara que no fim de sua paixão, Cristo o deixou, uma vez que era incapaz de sofrer, sendo um Espírito da parte do Senhor" (Hipolito, Refutação de todas as Heresias, Livro X, Capítulo 17). Também Basilides pregava que "o Pai não nascido e sem nome, (...) enviou seu próprio primogênito Nous (aquele que é chamado Cristo) para libertar, aqueles que acreditam nele, do Demiurgo criador do mundo. Ele apareceu então, na Terra em forma humana, para nações representadas por aquelas potestades, e realizou milagres. No entanto ele mesmo não sofreu a morte, mas Simão, um home de Cirene, sendo chamado, levou a cruz em seu lugar; e foi transfigurado para parecer com ele, para que acreditassem que ele era Jesus, e o crucificassem, por ignorância e erro, enquanto Jesus recebeu a forma de Simão, e estando de longe, ria deles" (Irineu , I:24, seção 4). Por fm, Marcion rejeitava as especulações e emanações divinas postuladas pelos gnósticos, e afirmava simplesmente que existia um Deus mau e vingativo, retratado nas escrituras judaicas, e criou o mundo material, e um Deus amoroso e compassivo, totalmente outro e desconhecido, que enviou Jesus Cristo, um ser celestial que vem ao mundo em semelhança de carne, em forma humana. A julgar pela quantidade de tinta que os pais da igreja utilizaram para refuta-lo, Marcião foi o mais temível adversário da proto-ortodoxia. [6] 

O gnosticismo porém não conseguiu ser predominante na Igreja primitiva. A visão gnóstica tinha vulnerabilidades, e elas foram rapidamente exploradas, sem pena, pelos Pais da Igreja. Pois se Cristo era de outra natureza, e só parecia ser humano, ou se sua união com elemento humano era apenas transitória, como poderia ter realmente experimentado o sofrimento, dor e morte, e se não sofreu dor e morreu, como poderia entender a condição humana? Pois se a condição humana é indigna, desonrosa, e sofredora não deveria o Salvador participar desta realidade para nos redimir? "Portanto, visto que os filhos compartilham de carne e sangue, Ele também participou dessa mesma condição humana, para que pela morte destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o Diabo" (Hebreus 2:14). Tertuliano, usando todo os recursos da retórica, faz uma poderosa crítica a Marcião, em particular, e aos gnósticos doceticos e separacionistas em geral.
Uma vez que, portanto, você não rejeitam a hipótese de um corpo como impossível ou como perigosa para o caráter de Deus, repudiam e censuram-no como indigno dele. Vejamos agora, começando a partir do próprio nascimento,  contra a imundície dos elementos geradores dentro do útero, a sujeira dos fluídos e do sangue, do crescimento desta carne que durante nove meses deve tirar seu alimento daquele lodo . Descreve-nos este ventre, que cresce dia a dia, pesado,atormentado, mesmo durante o sono inquieto, inconstante em seus sentimentos de desagrado e desejo. E agora igualmente contra a própria vergonha de uma mulher em trabalho de parto, que, no entanto, deve sim ser homenageado em relação aos perigos que enfrenta, e considerado sagrado em relação a (o mistério da) natureza. Claro que você também estão horrorizados com a criança, que é derramada na vida com os embaraços que o acompanham desde o ventre; Da mesma forma que você, é claro, a detesta mesmo depois de ser lavado, quando é vestida nas suas roupinhas, agraciado com a unção repetida, sorrindo para os que cuidam dela. Este curso reverendo da natureza, você, ó Marcião, (com prazer ) despreza; e ainda, de que maneira você nasceu? Se você detesta o ser humano com o seu nascimento; como pode então amar alguém? (...)Cristo, pelo menos, amou esse homem, esse coagulo formado no ùtero entre as imúndices, esse homem vindo ao mundo pelos orgãos vergonhosos, esse homem alimentado com carícias irrisórias. Foi para ele que ele desceu, foi para ele que pregou, por ele que, com todoa a humildade se rebaixou até a morte, e morte de cruz. Foi em aparência que ele amou aqueles que resgatou por tão alto preço? [7] 
Por fim, o último (?) capítulo de nossa história passa por Santo Agostinho. cuja história de vida segue a trajetória  desse post, e por sua inquietude com o problema do mal lhe ter levado a desenvolver a sua própria (e extremamente influente) teoria. Agostinho foi educado por sua mãe cristã, tendo contato com as explicações ortodoxas e tradicionais para o mal e sofrimento. Na juventude, se tornou maniqueu, movimento profundamente influenciado pelo gnosticismo, mas também se decepcionou, e depois de um breve período influênciado pelo ceticismo da Nova Acadêmia, voltou ao cristianismo.  Como Bispo de Hipona, Agostinho se tornou um profundo pensador e teólogo, e se debruçou com afinco numa explicação para o mal.
E ai voltamos a resposta a Agostinho, da pergunta que ele mesmo se fez:
(...)E no universo, até o que é chamado de mal, quando é controlado e colocado em seu lugar, só aumenta nossa admiração do bem; pois apreciamos e valorizamos o bem mais quando a comparamos com o mal. Pois o Deus Todo-Poderoso que, como até mesmo os pagãos reconhecem, tem o poder supremo sobre todas as coisas, sendo ele mesmo o bem supremo, nunca iria permitir a existência de qualquer coisa má no meio de suas obras, pois não seria tão onipotente e bom se não pudesse trazer coisas boas mesmo a partir do mal. Pois o que é aquilo a que chamamos  mal, senão a ausência do bem? Nos corpos de animais, doenças e feridas nada são senão a ausência de saúde;  para quando a cura é efetuada, isso não significa que os males que estavam presentes, ou seja, as doenças e feridas, saitam do corpo e foram para outro lugar: eles deixam de existir por completo; para o ferimento ou doença não é uma substância, mas um defeito na substância carnal, -a própria carne sendo uma substância, e, portanto, algo de bom, de que esses males - isto é, privações da dadíva que chamamos de saúde - são acidentes . Assim, da mesma forma, o que são chamados de vícios na alma são nada além de privações de bem natural. E quando eles são curados, eles não são transferidos para outro lugar: quando eles deixam de existir na alma saudável, eles não podem existir em qualquer outro lugar (...). [8].


"Ouve-se um pranto em Ramá, Raquel chora por seus filhos",
Selo das Ilhas Faroe,2001, via wikicommons
 Desta forma, na concepção de Agostinho, o que existe, o que foi criado por Deus é bom. O mal decorre do afastamento e corrupção das coisas criadas por Deus. Sendo o ser humano livre, fica implícita a possibilidade de se afstar de Deus e de se corromper.
É dificil superestimar a contribuição deste (e outros) trabalhos de Agostinho para teologia e filosofia ocidentais. Sua resposta passou a ser padrão no que se refere ao problema do mal desde então, seja por discordância ou concordância. É claro que questão continuou e continuará sendo discutida, mas em Agostinho o cristianismo tradicional encontrou sua linha mestra de argumentação racional, combinada com o profundo apelo a psichê humana de que Jesus Cristo, encarnação do logos divino havia sofrido dores, padecimentos, frustrações, tristezas e morte, como os seres humanos sofrem, e havia sido vitorioso sobre todas essas coisas.

Na verdade, quando dizemos que a concepção de Agostinho se tornou prevalente, não queremos dizer que ela refutou de forma incontestável os gnósticos, e eles nunca mais brandiram seus argumentos. Assim, como os gnósticos não eliminaram os apocalipticos e os adeptos da "visão profética" (como definida por Bart Erhman, acima). A questão é que esses movimentos foram racionalizações para entender a realidade e suas constantes mudanças. E a medida que o contexto mais amplo muda, a percepção da concretude do poder do mal também, sendo maximizada ou minimizada. Assim, ao longo da sua história, em momentos de intenso sofrimento e/ou de insegurança causada por transformações sociais intensas, movimentos apocalipticos tendem a florescer, ou ainda há um movimento de afastamento do mundo e do tudo que é material, que passa a ser visto como funcionalmente corrupta, racionalizada no discurso, até mesmo de grupos fundamentalmente ortodoxos, não pelo propósito de um Demiurgo, mas pelos efeitos da queda do homem, implicando que o fiel deve se abster do mundo e de tudo que ele representa, até mesmo de atividades comezinhas ( como os asceticos do sec. IV, que não casavam, e alguns grupos pentecostais do sec. XX, que não assistem televisão). No entanto, quando a fé cristã se expandiu, e havia a percepção de vitórias e conquistas religiosas, bem como avanços sociais, elementos da "teologia profética" se tornavam visíveis em um discurso triunfalista de que a devoção do povo de Deus a sua Palavra eliminaria os males desse mundo (tais como a escravidão, a exploração do trabalhador, o alcoolismo), como visto no protestantismo do séculos XIX e início do século XX, em movimentos liberais como o Evangelho Social,  e conservadores como a Teologia do Domínio. E mesmo em uma versão leiga, influenciou nos EUA o desenvolvimento da Doutrina do Destino Manifesto (a crença de que o povo dos Estados Unidos tem a missão de transformar o mundo, sendo o expansionismo geopolítico norte-americano apenas uma expressão dessa vocação).

Referencias Bibliográficas:

[1] Bart Erhman (2005), Os Evangelhos Perdidos, fl.177
[2] John J Collins (1998), A Imaginação Apocaliptica, fls. 48-65
[3] Bart Erhman (2005), Os Evangelhos Perdidos, fl.178-179
[4] Zeyl, Donald (2005 e 2014), "Plato's Timaeus", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2014 Edition), Edward N. Zalta (ed.), http://plato.stanford.edu/archives/spr2014/entries/plato-timaeus/. visualizado em 05.09.2015
[5] Edward Moore (2005), "Gnosticism",  The Internet Encyclopedia of Philosophy http://www.iep.utm.edu/gnostic/, visualizado em em 05.09.2015
[6] Tim Henderson, Marcion: A Beginer Guide, https://earliestchristianity.wordpress.com/2010/08/02/marcion-a-beginners-guide/, 02.08.2010.
[7] Tertuliano, Da Carne de Cristo, capítulo IV  http://www.earlychristianwritings.com/text/tertullian15.html
[8] Santo Agostinho, Enchiridion (Handbook) de Fé, Esperança e Amor, capitulo 11 http://www.ccel.org/ccel/schaff/npnf103.iv.ii.xiii.html


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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Observando Jesus Pelas Lentes De Seus Adversários - Parte I: A Polêmica Judaica no sec II e a Imagem Popular de Jesus entre seus conterrâneos



Este post, ou melhor, esta série de posts, tem como objetivo desenvolver uma questão que sempre me intrigou. Gerd Thiessen e Annete Merz, em seu monumental "O Jesus Histórico, Um Manual", fazem a seguinte observação:

"Segundo G. Vermes, a descrição de Jesus como "homem sábio" e "realizador de feitos maravilhosos (milagrosos) (...) espelha a imagem de Jesus que circulava na Palestina como uma tradição popular.O fariseu Josefo recebeu-a sem uma apreciação, enquanto os rabinos interpretam a mesma tradição como testemunho sobre um mago e enaganador" [1].

Thiessen se refere aqui, em especial, ao importante trabalho do Prof. Geza Vermes, de Oxford, em em seu artigo "The Jesus Notice of Josephus Re-Examined" (1987).

Fatos e Versões: A proposta do Prof. Vermes abre uma "avenida", uma verdadeira auto-pista para os estudos do cristianismo primitivo.

Teriamos alguns fatos: O povo comum, contemporâneo de Jesus, tinha dele uma memória e lembrança como alguém capaz de realizar sinais e prodígios, feitos tidos como milagrosos e espetaculares. Um mestre cujos ensinos atrairam multidões. Sua atuação, porém, gerava controvérsia, que logo se transformou em conflito com as autoridades judaicas e romanas, levando a crucificação.

Para estes fatos teríamos uma interpretação dada por aqueles que, dentre o povo, seguiam a Jesus de Nazaré (os cristãos). O sinais e prodígios realizados por Jesus e seus ensinos provam que ele é "profeta poderoso em Palavras e Atos, diante de Deus e de todo o povo" (Lc. 24:24; Atos 2:22), que estas e outras coisas, bem como sua morte, aparentemente desonrosa, aconteceram para que se cumprisse a escritura (At. 2:23). "Ele nos apareceu vivo, pois Deus o ressuscitou dos mortos, em cumprimento da Escritura" (At. 2:24-32), testemunhavam os apóstolos. Tais fatos, interpretados a luz da escritura comprovariam uma reinvidicação ambiciosa: Jesus é o Cristo, em cumprimento das escrituras.

Outros, porém davam aos referidos fatos, interpretação diversa. Jesus foi preso e crucificado pelos próprios opressores do povo de Deus, a qual, supostamente, o Cristo deveria derrotar. Portanto, seu fracasso em impor seu reino e sua morte desonrosa, reservada a salteadores e agitafores, provariam que ele não podia ser quem dizia ser. Era então um falso profeta, magico e charlatão, e maldito, pois foi pendurado no madeiro. A medida que o cristianismo como movimento se tornou uma religião em separada, predominantemente gentia, essa visão se torna mais comum. Embora, possivelmente, alguns contemporâneos de Jesus pensassem assim, a predominância de tal visão seria resultado de uma reinterpretação tardia e deturpada da memória popular, que se intensifica com o passar do tempo, a medida que cristãos e judeus se distanciam.

No entanto, na visão de Geza Vermes, muitos dos contemporâneos de Jesus, provavelmente a maioria, interpretavam os fatos de uma maneira menos categórica. Acreditavam que Jesus tinha sido um homem santo, um hasside galileu, assim como Onias e Hanina Ben Dosa. Um sábio, realizador de feitos extraordinários, com muitos seguidores (como, parece, escreveu Josefo). Contudo, não o tinham como Messias. Outros ainda tinham dificuldade de distinguir Jesus de outros líderes carismáticos como Teudas ou Judas Galileu e pensavam que, se fosse de Deus, o legado de Jesus perduraria, ao contrário do que acontecera com Teudas ou Judas. O parecer atribuido a Gamaliel (Atos 5:33-42) pode ter sido uma opinião bem comum.

A hipótese é atrente, mas deve ser testada com as fontes disponíveis. Nossa análise será das fontes do II século e o Talmude.

Polêmica do II Século: O Professor Maurice Goguel (1880-1955), da Sorbonne (Universidade de Paris) observou certa vez que desde seus primórdios o cristianismo foi objeto de oposição tanto gentia quanto judaica, em Jerusalém, Judéia e todo o mundo romano. Por meio de Luciano, Celso, das várias apologias do século II (Justino, Taciano, Aristides) e pelo Dialogo entre Justino e o judeu Trifo, diz Goguel, podemos ter uma visão bem detalhada dos críticos do cristianismo no Segundo Século. Da mesma forma que há uma tradição apologética existe um outra polêmica, a qual a primeira tentava refutar [2]

Os mais importantes exemplos entre a polêmica a respeito de Jesus de Nazaré, no século II, são encontrados na obra do autor pagão Celso, e nos escritos dos apologistas Justino Martir e Tertuliano.

Sobre Celso, John Dominic Crossan escreve:

Em algum momento entre 177 e 180 E.C, com o Imperador Marco Aurélio já perseguindo os cristãos, o filósofo pagão Celso escreveu sua doutrina verdadeira, um ataque intelectual a religião dos cristãos [3]

A obra de Celso não sobreviveu. Mas várias partes de a Doutrina Verdadeira são conservadas na resposta de Origenes, "Contra Celso", escrita por volta de 230 a 240 DC. O mais interessante é que Celso afirma que sua fonte de detalhes supostamente biograficos de Jesus seriam relatos que circulavam entre os judeus. O que é relevante pois suas afirmações podem ser comparado com as apologias de São Justino Martir (140-160 DC), notadamente seu livro "Dialogo com Trifo" (150 DC), e com os escritos de Tertuliano de Cartago, por volta do ano 200, que também buscaram responder acusações feitas a Jesus por seus conterrâneos.

Entre as informações que Celso, Justino e Tertuliano apresentam estão:

1) Jesus é acusado de ter nascido de uma união ilegítima, da noiva de um carpinteiro e um soldado romano (Celso).

2) Os feitos extraordinários atribuidos a Jesus seriam resultado de seu conhecimento de magia (Celso, Justino e Tertuliano).

3) Os cristãos seguiam a Jesus, auto-proclamado Filho de Deus, por conta de seus feitos incríveis (Justino, Tertuliano e especificamente em Celso, resultado de seu aprendizado de magia no Egito), mas ele seria na verdade um aliciador e mago.

4) Se Jesus era o Messias e o Filho de Deus, não poderia ter sido crucificado, morte vergonhosa reservada aos mais baixos criminosos (Justino e Celso).

I) Origens e Acusação de Ilegitimidade:

"[Jesus] nasceu em uma certa vila judia, filho de uma pobre mulher do campo, que ganhava sua subsistência como fiandeira, e que foi expulsa de casa por seu marido, que exercia o ofício de carpinteiro, porque foi acusada de adultério; após ter sido abandonada por seu marido, e vagando por algum tempo, ela desgraçadamente deu a luz a Jesus, seu filho ilegitimo. Porque [Jesus] era pobre, empregou-se como operário no Egito e lá testou habilidades em certos poderes mágicos dos quais os egípcios se vangloriam, ele voltou cheio de presunção por causa desses poderes e por conta deles, deu a si mesmo o título de Filho de Deus."
Durante a sua gravidez foi expulsa de casa de casa pelo carpinteiro a qual estava prometida, como sendo culpada de adultério, e deu a luz a uma filho de um soldado chamado Pantera
[4]

No que se refere a questão de Ben Pandera e a suposta ilegitimidade de Jesus, Geza Vermes observa:

"Curiosamente, o nome Pantera/Pandera encontra confirmação no período, como nome de soldados romanos, e provas epígraficas, datando do ano 9, falam de um certo Tiberius Julius Abdes Pantera, um arqueiro sidoniano de uma legião estacionada na distante Germânia (...) A possibilidade de Pantera ser o Pai de Jesus foi retomada por James Tabor, em The Jesus Dynasty" [5]

Vermes acredita que a associação a Pandera surgiu de uma corruptela do grego "partenos" ou virgem, seria uma reação portanto as narrativas do evangelho de Mateus. J.P Meier, Notre Dame University, concorda, e aponta as dificuldades com essa tese:

"Como Celso relata o que um judeu lhe havia contado um pouco antes de 178, é de presumir que essa história já vinha circulando entre alguns judeus helenistas na Diaspora, em meados do século II. Com muita probabilidade, ela não data de época anterior, pois Justino, o Martir, trava um debate bastante detalhado co m Trifo, o judeu, sobre a concepção virginal, sem que este último seja apresentado como tendo respondido a acusação de ilegitimidade. Contudo, o fato da história ser primeiro atestada entre os judeus da diaspora, e não na Palestina, e só em meados do século II, evoca a apossibilidade de ela ser uma polêmica parodia judaica do relato cristão de concepção virginal, especialmente como apresentada no Evangelho de Mateus. (...) A origem da paródia na Diaspora e não na Palestina , torna improvável que tenhamos nessa passagem um fragmento de informação histórica preservado intacto "secretamente" pelos judeus ao longo de um século e meio [6].

O Novo Testamento registra pelo menos uma insinuaçãodos adversários de Jesus, de que ele teria sido concebido em uma relação ilícita, em João 8:40-41. Então a acusação aberta de ilegitimidade pode remontar aos contemporâneos de Jesus, o mesmo, no entanto, é duvidoso em relação a Pantera. Professor André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro , apresenta outra motivos para uma dependência entre a tradição de Pantera relatada pela fonte de Celso e o evangelho de Mateus [7], além das trazidas por Vermes e Meier:

i) uma ênfase na concepção virginal;
ii) uma possivel insinuação à consternação de José, quando ele descobre que Maria está gravida, e seu plano para divorciar-se dela (Mateus 1:18-20),
iii) a fuga para o Egito (Mateus 2:13-15)
iv) a referência a José como carpinteiro, que só ocorre no Novo Testamento em Mateus 13:55

b) Feitos milagrosos e magia:

A respeito do extenso debate entre Justino Martir e Trifo (140-150 DC), já referido por Meier, o Prof. Graham Stanton, de Cambridge [8], observa que o primeiro afirma que as curas milagrosas de Jesus foram o cumprimento das profecias messiânicas de Isaias 35:1-7. Os milagres de Jesus seriam então um reconhecimento de sua condição de Messias, entretanto, muitos que os viram chegaram a conclusão oposta:

"Eles atribuiram [os milagres] a utilização de poderes mágicos, porque eles se atreveram a dizer que Jesus era um mágico e enganador do povo" [9].

Ainda segundo Stanton, do contexto, não há dúvida que o termo "enganador" esta sendo usado em comparação com Deuterônomio 13:5, com enfase no falso profeta que leva o povo de Deus a pecar.

Acusação semelhante é registrada e respondida por volta de 200 DC - uma geração após Celso e duas de Justino e Trifo - por Tertuliano, em seu livro Apologeticum:

"Assim, então, sob a força de sua rejeição convenceram a si próprios desse seu baixo procedimento: que Cristo não foi mais do que um homem, seguindo-se, como conseqüência necessária, que tivessem Cristo na conta de mágico, devido aos poderes que demonstrou"[10].
A acusação de Celso de que os judeus diziam que Jesus era na verdade um mágico e enganador do povo, foi também registrada e respondida, 30 anos antes, por Justino, em Diálogo com Trifo, e cerca de 20 anos depois na apologia de Tertuliano. Da mesma forma, é encontrada em passagens do Talmude, que será discutida em seguida, de um certo Yeshu que foi pendurado no madeiro (crucificado) na vespera da Páscoa, por praticar mágica e desencaminhar Israel.

A respeito, Geza Vermes observa:

"A familiaridade de Jesus com as ciências da magia, a representação negativa de sua atividade como realizador de milagres são atribuidos a seu contato com feiticeiros egípcios. O Celso de Origenes faz essas acusações no fim do século II." [11]

Orígenes (...) cita Celso, o crítico pagão de Jesus no século II, dizendo que ele afirmou que Jesus fazia seus "paradoxa" por mágica (Contra Celsum 1:6.17-18). A mesma acusação é levantada contra ele por detratores judeus posteriores (BSahedrin 43b) [12]

Nessa linha, Stanton afirma [13] que a acusação encontrada em Trifo (Jesus era um mágico enganador do povo) é uma tradição com raízes profundas. Durante seu ministério, diz Stanton, foi acusado de ser um mágico possuido pelo demônio. É provavel, ainda que não totalmente certo, que tenha acusado também de ser um falso profeta possuído pelo demônio. As alegações dos oponentes contemporâneos de Jesus confirmam que ele foi visto pior muitos como uma ameaça a ordem social e religiosa. A afirmar que agia e falava com base de um relacionamento especial com Deus foram corretamente percebidas como radicais. Para alguns eram tão radicais que tiveram que ser atacadas com base de uma explicação alternativa de sua fonte: Jesus era um mágico possuido pelo demônio e falso profeta. Avaliação semelhante pode ser feita em relação aos ataques respondidos por Tertuliano.

Na mesma linha, Celso centra seu linha de ataque na comparação entre os feitos de Jesus com os "realizados pelos mágicos egípcios que no meio das praças e feiras, por alguns trocados, demonstram conhecimento nas mais venerandas artes, expulsam demônios, curam enfermidades, e invocam a almas de heróis", e pergunta, "Visto, então, que essas pessoas podem realizar tais feitos, teremos que concluir que são "filhos de Deus" ou que procedem de homens iníquos sob a influência de espiritos malignos?[14]".

Em outras palavras, Celso esta ridicularizando os cristãos, dizendo, em outras palavras, : "vcs falam que esses milagres cumprem as profecias e demostram que Jesus é o Messias; Mas no Egito, os mágicos fazem feitos semelhantes, sem que possam ser chamados Filhos de Deus; Então, Jesus também deve ter sido um mágico possuido pelo demônio" É inevitavel a lembrança das acusações dos escribas no evangelho,
"Ele está possesso de Belzebu; e: É pelo príncipe dos demônios que expulsa os demônios" (Mc 3:22).

Morte:

Celso também ridiculariza a crença dos cristãos em um homem que foi crucificado como criminoso:

"Se, após inventar defesas que são absurdas, e pelas quais vocês são ridiculamente enganados, ainda que imaginando que vocês realmente fizeram uma boa defesa, porque vocês não consideram aqueles outros individuos que também foram condenados, e sofreram uma morte miserável, como maiores e mais divinos mensageiros dos céus (que Jesus) ?"
"e da mesma forma outros de seus companheiros seria capaz de afirmar, até mesmo de um assaltante e assassino cujo o castigo tenha sido aplicado, que tal não era um bandido, mas um deus, porque previu para seus companheiros de roubo que ele seria punido, como realmente foi" [15] .

No Dialogo entre Justino e Trifo, também encontramos uma amostra de como a idéia de um Cristo Crucificado soava escandalosa para seus contêmporâneos. Justino alude as profecias de Daniel 7:9-27, e Trifo prontamente responde:

"Estas mesmas escrituras, meu caro, nos ordenam esperar aquele que, como Filho do Homem, receberá do Ancião de Dias o Reino Eterno. Mas este que vocês chamam de Cristo não teve honra ou glória, tanto assim que a maldição contida na Lei de Deus caiu sobre ele, porque foi crucificado " [16]

É um eco perfeito, ainda que mais polido, as críticas de Celso. Jesus não pode ser o Messias, pois Messias não são crucificados como bandidos e salteadores comuns.

Conclusão:

É interessante que Celso, ou as fontes judaicas utilizadas por ele, ao invés de negar os milagres de Jesus, opta, primeiro, por desacreditar a fonte de seus poderes, atribuindo a magia e o conluio com forças demoniacas, e em seguida, sua significância, ao dizer que qualquer mágico de esquina poderia realiza-los. É sugestivo também o fato de que as acusações levantadas pelo filósofo judeu anônimo citado por Celso, apresentarem certa similaridade com as encontradas em Dialogo com Trifo, das críticas registradas em Tertuliano, e o Talmude.

Da mesma forma, Josefo fala de Jesus como "realizador de feitos incríveis/controversos". Isso tudo indica que Jesus tinha fama de "milagreiro" (ou feiticeiro) em circulos judaicos. Essa crença é atestada também em circulos pagãos. Ao responder Celso, Orígenes cita Flegon de Trales, cujos escritos datam entre 120-150 DC "Flegon, no décimo terceiro ou décimo quarto livro, se não me engano, de suas cronicas, não apenas atribui a Cristo o conhecimento de eventos futuros, ainda que confundindo alguns coisas referentes a Pedro como se refererissem a Jesus, também afirma que o resultado correspondia as suas previsões [17]". Tudo isso atesta que em meados do século II, Jesus era conhecido como alguém com poderes premonitórios e miraculosos.

E como observa o [18] Professor Robert Van Voorst, Western Theological Seminary, além das acusações de nascimento ilegítimo e prática de feitiçaria, Celso lança um violento ataque sobre vários outros aspectos da vida terrena de Jesus - ancestralidade, concepção, nascimento, infância, ministério, morte, ressureição e influência posterior. Van Voorst escreve

"De acordo com Celso, os pais de Jesus eram de uma aldeia judia (Contra Celso 1.28), e sua mãe era uma pobre mulher que obtinha seu sustento como fiandeira (1.28). Ele realizou seus milagres através de feitiçaria (1.28; 2.32; 2.49; 8.41). Sua aparência física era de um homem feio e pequeno (6.75). Para seu descrédito, Jesus manteve todos os costumes judaicos, inclusive o sacrifício no Templo (2.6). Ele reuniu apenas dez seguidores e ensinou a eles seus piores hábitos, como mendigar e furtar (1.62; 2.44). Seus discipulos, que contavam só "dez marinheiros e coletores de impostos" foram os únicos a qual ele convenceu de sua divindade, mas agora seus seguidores convertem multidões (2.46). Os relatos de sua ressureição vieram de uma mulher histérica, e a crença na ressureição foi o resultado da mágica de Jesus, os desejos de seus seguidores, ou alucinação coletiva, tudo com o propósito de impressionar outros e aumentar as chances de outros tornaram-se mendigos (2.55).” [18]

A críticas acimas são tardias, escrita 100 a 150 anos depois da morte de Jesus. Contudo, Celso é a única fonte não-cristã até então que escreve especificamente sobre o movimento de Jesus. Josefo, Tácito, Plínio, Suetônio, Luciano, Mara, fazem menções incidentais em relação a Jesus. E Justino e Tertuliano se esforçam para defender o cristianismo de acusações semelhantes, que circulavam entre alguns círculos judaícos hostis ao cristianismo.

Tácito e Suetônio estavam interessados nos reinados de Claúdio e Nero; Josefo no governo de Pilatos e na destituição do Sumo-Sacerdote Ananias, nas duas menções que faz a Jesus; Luciano escrevia sobre o Filósofo Proteus, e Mara instruia seu filho nas virtudes da sabedoria apesar do ataque dos poderosos, citando Jesus como exemplo. Mas Celso critica sistemática e detalhadamente os cristãos. Apresenta argumentos filosóficos, aponta supostas inconsistências nas narrativas evangélicas, faz comparações com outros cultos e seitas existentes à época, apresenta alguma familiaridade com os vários grupos cristãos existentes. No que se refere a vida de Jesus, apresenta "fatos" não existentes em qualquer escrito cristão, e derivados de tradições que circulavam entre os judeus em meados, talvez no início do II século. Tais tradições são atestadas também, no mesmo período, pelas defesas de Justino e Tertuliano.

É razoavel inferir que critícos como Celso utilizaram o que havia de melhor à época para atacar o cristianismo. O mesmo pode ser dito dos oponentes de Tertuliano e Justino, que se esforçam por rebater críticas incisivas contra seu Mestre. O que indica fortemente mesmo os mais ferrenhos inimigos do cristianismo, não tinham motivo para questionar a historicidade de Jesus, seus ensinamentos como centrais no cristianismo, e que ele realizou pelos menos alguns feitos considerados milagrosos.

CONTINUA
Referências:
[1] Gerd Thiessen & Annete Merz (1996), "O Jesus Histórico, Um Manual, fl 94
[2] Maurice Goguel, Jesus the Nazarene, Myth or History? fls. 69-71
[3] John Dominic Crossan, Jesus, uma biografia revolucionária, fl. 43
[4] Origenes, Contra Celso Livro 1, Capítulos 28 e 32
[5] Geza Vermes, Natividade, fl. 178, nota 16
[6] John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I, fls. 223-224
[7] André Chevitarese, Menino Jesus e a Ilegitimidade Física do Fiho de Deus. O Uso do Modelo Iconográfico de Tipo Universal (Mãe/Filho) pelos cristãos, In Chevitarese, Corneli & Selvatici, Jesus de Nazaré, Uma Outra História, fl. 51
[8] Graham Stanton, Gospel Thuth?New Light on Jesus and the Gospels, fl. 156
[9] Justino, Dialogo com Trifo, Capítulo 69, verso 5
[10] Tertuliano, Apologetica 21:17
[11] Geza Vermes, Natividade, fl. 134
[12] Geza Vermes, As Varias Faces de Jesus, fl. 306, nota
[13] Graham Stanton, Gospel Thuth?New Light on Jesus and the Gospels, fl. 163
[14] Orígenes, Contra Celso, Livro 1, Capitulo 68
[15] Orígenes, Contra Celso, Livro 2, Capítulo 44
[16] Justino Martir, Dialogo com Trifo, Capítulo 32
[17] Orígenes, Contra Celso, Livro 2, Capítulo 14
[18] Robert Van Voorst, Jesus Outside of New Testament, fl. 66
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