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domingo, 8 de agosto de 2010

P'rushins - os Fariseus e a condenação romana de Jesus

A mente dos judeus entre os séculos I a.C. e I d.C. estava impregnada com a rememorização de opressões históricas e do sentimento do exílio, pois com as expectativas históricas com o retorno do exílio babilônico e medo-persa, houveram as conquistas e posteriores tiranias helenistas, a revolta e “libertação” macabéia, e novas conquistas e jugos romanos. Houveram diversas formas de reações, não só em atos e levantes, não só em traições, mas em manifestações e forma de viver. Esses fatores foram muito marcantes para a definição de ambientes de vida – definido inteligentemente por Howard Clark Kee: “compreende-se não apenas a sociedade, onde o indivíduo encontra sentido e identidade, nem apenas a cultura, que a sociedade transmite e em cujos termos ela define os seus próprios objetivos, mas também as dimensões cósmicas da existência – aquilo que chamaríamos de mundo natural, sua origem e o poder que o sustenta" [1] – dentre grupos e subgrupos do povo judeu.

Apesar das nuances algumas vezes sutis, e no panorama geral complexas, dentre os grupos sociais, podemos ver dois contrastes nítidos entre dois, os saduceus e os fariseus. Com os primeiros engendrou-se uma postura de convivência cooptada com o império romano, mantendo mais da identidade e apego à tradição do que os herodianos, sem uma colaboração tão acentuada, mas buscando manter o status quo. Com os fariseus engendrou-se uma identidade de resistência, buscando manter também e identidade judaica somada às aspirações redentoras alicerçadas nos vaticínios proféticos, no contraste com o modo de ser greco-romano via o apego à rituais cotidianos, zelo pela Torah, e atendo-se à ideia da ressurreição e vindicação escatológica dos justos por parte de Deus, com o subsequente destrono e subversão da ordem dos dominadores, e uma nova ordem com o Israel purificado e restaurado sendo a luz do mundo [2]. Uma passagem clássica que apresenta tal expressão está no livro de “Sabedoria de Salomão” :
No momento, porém, em que Deus intervir, eles resplandecerão e correrão como centelhas na palha. Julgarão as nações e dominarão os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre. (3:7-8)
Diante deste quadro, há uma passagem reveladora no evangelho de João, abordando o seu julgamento diante Pilatos (João 18.13-16):

Se o soltares, não estarás agindo como amigo de César! Pois todo aquele que se faz rei declara-se contra César”.

Mal ouviu essas palavras, Pilatos fez conduzir Jesus para fora e o instalou em uma tribuna, no lugar chamado Lithóstroton – em hebraico Gábata [ que quer dizer 'pavimento de pedra', nota nossa]. Era o dia da preparação da páscoa, por volta da sexta hora [ou meio-dia]. Pilatos disse aos Judeus: “eis o vosso rei!” Mas eles se puseram a gritar: “À morte! Crucifica-o!” Pilatos replicou: “Devo eu crucificar o vosso rei?”; os sumo-sacerdotes responderam: “nós não temos outro rei, senão César”. Foi então que Pilatos lhes entregou Jesus para ser crucificado.

Tal declaração de lealdade – diante de um prefeito romano em um assento de julgamento [3], que culmina uma progressão ao longo do período maior de audiência de Jesus ante Pilatos em que este se reúne com os líderes religiosos, tendo antes um ponto de pico também em “Pois todo aquele que se faz rei se declara amigo de César”, que então chega ao ponto mais alto do vs. 15., está sob um pano de fundo de um vasto constrangimento religioso. Pode-se retratá-lo com essas passagens, marcantes para aquele contexto, na Bíblia Hebraica:

“Não serei eu vosso soberano, nem meu filho. IWHW seja seu soberano!” -Gideão em Jz:8.3
IWHW disse a Samuel: Escuta a voz do povo em tudo aquilo que te pedem. Não é a ti que rejeitam, mas a mim. Não querem mais que eu reine sobre eles”. I Sm:8.7
“Dai a Deus a força. Sua majestade está sobre Israel, sua força está nas nuvens”. Sl:68.35
“Senhor, nosso Deus, outros senhores além de Ti dominaram sobre nós, mas é unicamente o Teu nome que repetimos”. Is: 26.13
“A oração foi a seguinte: 'Senhor, Senhor Deus, Criador de todas as coisas, terrível e forte, justo e misericordioso, o único Rei, o único bom,' (...)” II Mb:1.24

Essa concessão então ante a Roma dificultaria ao máximo conceber que os fariseus participaram-na, ou mesmo aprovaram-na. Sim, pessoas são complexas, e no dia a dia aparecem situações com reações inesperadas ao máximo; ainda mais em momentos igualmente complexos. Por isso em tal campo de estudo é comum encontrarmos, nos acadêmicos mais ponderados e prudentes, expressões como “sugere”, “provavelmente”, “possivelmente”, retratando o respeito com o que em estatística é chamado “margem de erro”. Mas se falando de um grupo identitário, temos base o suficiente para concluir, com bom grau de proximidade, que muito dificilmente os fariseus tomaram parte no apelo para a morte de Jesus na audiência com Roma. O evangelista coloca “os Sumo-sacerdotes” ao se referir àqueles que pediam a morte argumentando pela probidade para com César; isso incluiria o Sumo-sacerdote, o círculo mais íntimo, seguidores próximos, membros do Sinédrio, e aqueles que acompanhavam seu coro. Não incluiria então os fariseus, ainda que muitos deles pudessem estar presentes ou assistindo. Não engrossaram o coro, ou não respaldaram, e justamente neste momento alguns poderia até em seu íntimo estarem se opondo; na segunda mais importante oração nacional, após o Shemah, a Shemoneh Esreh, a benção 11 aclama a Deus “que sejas o nosso Rei, somente Tu”. Ao consentirem, estariam capitulando ante o partido de seus maiores confrontadores, publicamente, ante a judeus residentes em Jerusalém, ante judeus e prosélitos imigrantes da diáspora, ante autoridades e militares romanos.

Somando ao já abordado brilhantemente pelo companheiro Nehemias quanto à relação fariseus/cristãos, estereotipada de maneira tão errônea, além de corrigir erros vulgares, teria profusas implicações sobre a compreensão das origens e emergência do cristianismo, da dinâmica sociocultural dos primeiros cristãos, e para a composição e caráter dos evangelhos.



[1] As origens cristãs em perspectiva sociologica, p. 21
[2] N. T. Wright, Christian Origins and the Question of God, vol. 2: The New Testament and the People of God.  p.189-99.
[3] D.A.Carson, The Gospel According of John, p. 607-608

sábado, 31 de julho de 2010

A prisão de Jesus em João 18:1-14;19-24.

Busquemos uma breve aproximação sobre o relato joanino da prisão de Jesus. Devido ao espaço não pretendemos de forma alguma dar uma resposta cabal a controvérsias nem chegar perto de esgotar o tema, mas apenas traçar um panorama.

Primeiramente, como se deu a prisão? Quem prendeu Jesus, segundo o testemunho joanino?

Nessa noite especial, nos tempos das celebrações pascais, Jesus e seus discípulos permaneceram em imediações hierosolimitas, conforme Deuteronômio 16.4-5. Assim, havia um foco de lugar em que os que conspiravam para prendê-lo teriam em mente. Estavam sendo escoltados por Judas. Poderia ser uma cilada? Bem provável...

Passaram pelo Vale do Cedrom, cujo termo literal significa “Cedrom em cheia pelo inverno”[1]; no período que se presume ter acontecido o episódio, março-abril, estaria então raso e fácil de atravessar. Lucas 22.9 sugere que não seria a primeira vez que Jesus e seus discípulos se reuniam lá.

E a tropa destacada?

Há uma grande dificuldade com esta passagem. O Termo que João emprega para “destacamento”, peira, era um termo que comumente se referiria a décima parte de uma legião romana, assim, 600 homens!! Em demais passagens no Novo Testamento, reporta-se a coortes sob o comando de um tribuno – chiliarchos. Ainda que na província romana da Judéia houvessem cinco coortes romanas, como a da famosa fortaleza Antonia, seria plausível o cenário de uma tropa romana deste contingente em uma operação de prisão de um sujeito que até então era desconhecido de Pilatos, e ainda por cima terem levado à casa de Anás – que não era o sumo-sacerdote daquele período, tendo sido deposto por Roma em 15 a.C.???

E como é uma hipótese muito provável que João conheça, de forma independente, tradições antigas relacionadas nos Sinópticos [2], como somente ele destacaria a coorte romana, e nas outras tradições não?

Provavelmente, ele não empregara o termo num sentido “tecnicamente” preciso e unívoco. Poderia de forma mais presumível se remeter a uma guarnição dentre a coorte - que não iria sair totalmente ali para prender um indivíduo num período tão conspícuo e perigoso como aquele da Páscoa – em que advinham tropas de Cesaréia. Seria um "manípulo" – 200 pessoas ou menos. Tanto que os soldados não foram liderados por um Centurião, mas por um funcionário de menor escalão, que pode ser entendido como chefe de um subgrupo da coorte – confira também Jo18.12. Ainda um contingente impressionante.

Marcos comenta que fora uma grande multidão armadas de espadas e varas, enviadas pelos chefes dos sacerdotes e demais lideranças religiosas. Lucas fala somente de chefes dos sacerdotes e da guarda do Templo. Craig Keener apresenta uma discussão aprofundada sobre o termo mostrando que a linguagem geral também fora usada igualmente para unidades judaicas [3].

Realmente teria havido uma queda dos soldados simplesmente ao ouvir Jesus pronunciar uma associação com a auto-revelação divina a Moisés na Sarça Ardente: “Eu Sou” – Êxodo 3.14? Craig Keener também aponta que nessa época, acreditava-se que os feiticeiros usavam a pronúncia do nome divino para disparar conjuras [4]. Dada a busca de imputar ao ministério de milagres de Jesus o agir dos demônios através dele ou sendo mesmo um feiticeiro, um mágico, é altamente sugestivo.

Mas também há outro cenário. O que se apresenta é que Jesus esperava ser entregue, e estava de prontidão. Os soldados ao se depararem com esse inesperado - ele assim, de peito aberto [no relato eles respondem “a Jesus, o Nazoreu” de uma forma que ressalta que eles nunca esperariam uma situação como aquela, mas um ataque de surpresa], então poderiam ter imaginado uma emboscada e uma luta violenta naquele lugar inóspito, por parte de guerrilheiros escondidos, ferozes e armados. O escritor destaca “e Judas estava com eles” não teria sido à toa. Dessa forma, se visualiza melhor a impressão neles de ter sido uma cilada. “Fomos pegos”. De fato, já era em um contexto em que finalizara a missão dos discípulos na qual estavam incubidos de não levar armas, e os relatos mostram que pelo menos um deles (Pedro?) reagira disposta a um combate armado. Possivelmente, o discípulo pode ter aproveitado para conferir uma associação de peso teológico.

A cena de um encontro irregular informal dos líderes religiosos, numa tonalidade de intriga destacada em João, ante a audiência formal que é a que mais parece nos Sinóticos antes do Conselho Judaico, possui uma plausibilidade maior [5]. Não seria uma audição central tal qual diante do conselho presidido pelo verdadeiro sumo-sacerdote daquele ano, Caifás, mais à frente mencionado em João. O termo “primeiramente”, no versículo 13, dá a entender que o escritor trata de um quadro maior em que mais audiências viriam. Se encaixa com o pano de fundo mais ampliado, com a trama política envolvendo o poder no Templo. Cinco dos filhos de Anás foram sumo sacerdotes, a despeito da deposição, e Caifás, seu genro, o fora nomeado por peso de seu poder e influência, sob seu auspício[6]. E muitas vezes Anás exercia o poder de fato. Nada excepcional ser referido e tratado ainda então como sumo-sacerdote, havendo precedente no judaísmo: se podendo ver no “Guerras Judaicas”, de Josefo, 2.12.#243, e no material Horayot 3.1,2,4, um tratado presente no Talmud que fala sobre precedentes antigos assim [7].

Assim, podemos ver Anás jogando com o fato de que o cargo era vitalício e, apelando para o nacionalismo e o rancor pela dominação romana, invalidar sua deposição para legitimar seu poder de fato. Que ele exercia seu poder, também através de sua riqueza [Josefo, Antiguidades 18.2.2#34; 20.9.1#243] [8], é atestado pela literatura judaica em que seus sucessores o desancam. A imagem que eles passam dele referenda o abuso de se sobrepor ao costume de submeter processos que remetia a penas capitais a uma coorte de juízes – acima de 23 – [9] e atuar como juiz, ainda mais que o costume remetia à tradição farisaica, e assim submeter Jesus a um interrogatório, procedimentos e uma condução de julgamento arbitrários. Os fios da trama começam a se entrelaçar em uma rede, levando a, ou montando o quadro coerente para a crucificação.

Referências/Indicações:
[1]  Joel B. Green – Gethsemane. Em : Joel B. Green, Scot McKnight, Howard I. Marshall – orgs. “Dictionary of Jesus and the Gospels”.
[2]  Raymond Brown, John XIII-XXI  p.787-791 
[3]  Craig Keener - The Gospel of John: A Commentary  p.1078;
[4]  Keener, op.cit., p. 1081
[5]  Ed Parish Sanders, Historical Figure of Jesus, p. 72
[6]  Bruce M. Metzger e Michael David Coogan (Editores) The Oxford Companion to the Bible p. 97
[7]  Raymond E. Brown, The Death of the Messiah p. 398-428
[8]  Donald P. Senior, “The Passion of Jesus in the Gospel of John”. p. 46-64
[9]  Keener, op. cit., p. 1089                 

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Jesus e os Fariseus. Inimigos Mortais?! Você precisa rever os seus conceitos (Atualizado)

Em uma série de posts anteriores, sobre a visão de fontes não cristãs sobre Jesus como Mestre e Sábio, eu utilizei o chamado "Testemunho Flaviano", do escritor judeu do século I, Flávio Josefo, seguindo a posição dominante entre os historiadores e estudiosos bíblicos de que parte do relato é autêntica, particlarmente a referência a crucificação, e seu retrato de Jesus como "homem sábio" e "realizador de feitos extraordinários".

No entanto, toda a vez que eu exponho esse ponto de vista, a réplica é imediata: "Josefo não era fariseu? Então, como ele poderia escrever algo bom sobre Jesus?". A questão da afiliação sectária de Josefo é complexa. Mas, por hora, acho mais interessante analisar o relacionamento entre os fariseus e Jesus de Nazaré.

A opinião popular, largamente difundida, é de que os fariseus eram um bando de hipócritas e falsos que perseguiam Jesus, e eventualmente conseguiram mata-lo.

Mas isso é verdade?

1) Jesus, os cristãos e os fariseus no Novo Testamento

A principal fonte antiga para a controvérsia de Jesus e seus discípulos com os fariseus é o Novo Testamento. Contudo, uma leitura atenta ao texto bíblico junto com a evidência de outras fontes mostra também muitas concordâncias. Os fariseus e os primeiros cristãos protagonizaram uma relação complexa.

É certo que os evangelhos retratam Jesus criticando repetidamente os fariseus; que Saulo (um fariseu) perseguiu os cristãos. Contudo, Nicodemos e Jose de Arimáteia são apresentados como fariseus. As crenças dos cristãos, em anjos, ressureição, vida após a morte os aproximavam muito mais desse partido, do que de qualquer outro grupo judaico de então.

Alguns fariseus avisaram Jesus que Herodes Antipas queria mata-lo (Lucas 13:31-35). Lucas também recorda pelo menos três ocasiões em que Jesus foi convidado a almoçar em casas de fariseus (Lucas 7:36; 11:37 e 14:1) . Na Igreja de Jerusalém existiam alguns fariseus "que haviam crido" (Atos15:5) e estavam, provavelmente, associados ao partido judaizante, ou os da circunsição (Atos 15:1; Galatás 2) que eram numerosos o suficiente para se fazer ouvir. Pedem explicações de Pedro por ele ter batizado o gentio Cornélio (Atos 9), e protagonizam a controvérsia com Paulo que parece ter sido a maior do período (Atos 15), visto que entendiam que os díscipulos gentios deveriam se circuncidar (Galatas 5:2-3), sendo necessário a intervenção de Pedro, Tiago e os demais apostolos para resolve-la. A decisão tomada (Galatas 2:1-9; Atos 15:22-31), enquanto recomendava, para os cristãos gentios, abstenção das "coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da prostituição" (Atos 15:29) e o "cuidado constante dos pobres" (Gl 2:10), não isentou os crentes judeus de continuar observando a lei e os costumes ancestrais.

Mesmo depois do Concílio, pelos menos alguns crentes judeus continuaram insistindo na necessidade da circunsição e obediência a lei mosaica por parte dos gentios, o que levou Paulo a escrever Galatás. E certo também que o fiador do acordo firmado no Concílio - Tiago, irmão de Jesus -, reconhecendo o status diferenciado da missão gentia, continuou conduzindo a Igreja de Jerusalém de forma alinhada com os costumes e leis judaicas (Atos 23:18-25).

Mesmo assim, Atos nos diz que, quando ouvido pelo Sinédrio em Jerusalém, Paulo não se sentiu inibido em dizer "Sou fariseu, filho de fariseus, e por causa da ressureição dos mortos estou sendo julgado". A simples menção de "ressurreição dos mortos", um ponto de profunda controvérsia entre fariseus e saduceus, levou o Sinédrio a se dividir. Se mesmo Paulo, pivô da controvérsia sobre a lei e os gentios, pode ser "adotado" pelos líderes fariseus, os seus oponentes judaizantes dentro do movimento de Jesus deveriam se sentir "em casa".

Prof. David Flusser(1917-2000), da Universidade Hebraica, aprofunda essa constatação:
"Não seria incorreto descrever Jesus como um fariseu, num sentido mais amplo. Todavia, ainda que sua crítica deles não fosse tão hostil quanto a dos essênios (...) Jesus os considerava forâneos e não se identificava com eles.(...). Temos ainda que analisar a tensão inevitável entre o Jesus carismático e o judaismo institucional. Tampouco ousemos nos esqueçer que o elemento revolucionário em sua pregação aumentou a tensão. Não obstante devemos ter em mente que esta tensão nunca implicou em negação, e as concepções de Jesus e dos fariseus não eram opostas, nem tampouco se degeneraram em inimizade (...) é obvio que havia entre os fariseus algumas pessoas de mente tacanha (...) que suspeitavam desse fazedor de milagres. Com satisfação, teriam-no flagado numa ação proibida para que pudessem arrasta-lo para uma corte rabínica (...). [1].

Professor Flusser em seguida relaciona situações em que membros do partido fariseu agiram em benefícios dos cristãos.
"Se lembrarmos o papel que os fariseus desempenharam nas primeiras décadas da Igreja Cristã, fica mais claro o motivo pelo qual não só os relatos originais como também os três primeiros evangelhos, evitam mencionar os fariseus na história do julgamento de Jesus. Quando os apóstolos foram perseguidos pelo sumo-sacerdote saduceu, Rabban Gamaliel tomou o seu partido e os salvou (Atos 5:17-42). Quando Paulo foi levado a comparecer perante o Sinédrio em Jerusalém, encontrou solidariedade entre seus ouvintes ao apelar para os fariseus (Atos 22:30 e 23:10). Quando Tiago, o irmão do Senhor, e aparentemente outros cristãos, foram condenados ilegalmente a morte em 62 DC, pelo sumo-sacerdote saduceu, os fariseus apelaram ao rei e o sumo-sacerdote foi destituído" [1]

Bem como o Professor Geza Vermes, de Oxford
"Nos Atos dos Apóstolos, os líderes judeus de Jerusalém não são descritos como cegamente hostis aos seguidores de Jesus. Pedro atribuiu a ignorância ou falta de compreensão em vez de má-fé aos chefes dos sacerdotes (Atos 3:17). O celebre fariseu rabi Gamaliel invocou a imparcialidade para com os apóstolos diante da alta corte (Atos 5:34-39) e mesmo durante o conturbado encontro no Sinédrio a propósito de Paulo, acusado de pregar contra a lei, os membros fariseus do conselho o apoiam abertamente: "Nenhum mal encontramos nesse homem. E se lhe tivesse falado um espírito ou anjo (Atos 23:9) [2]

2) Os fariseus provocaram a morte de Jesus?

Possivelmente, alguns leitores tenham ficado "chocados" com o que foi dito acima.
"Como?! Isso é absurdo, os fariseus não eram inimigos mortais de Jesus e seus seguidores?!!!"

Um ponto primordial a ser enfatizado é que Jesus de Nazaré foi crucificado (uma punição romana), sob ordem de Pôncio Pilatos (que representava o poder de Roma), acusado de (pretender) ser "O Rei dos Judeus"(um crime contra Roma). Todos os evangelhos dizem isso claramente, sendo certo que isso jamais poderia ter sido inventado [3]. O papel das autoridades judaicas, sejam fariseus, saduceus, herodianas... foi de apresentar a denúncia, ou formular a acusação.

Utilizaremos aqui um esquema adaptado de Dr. Paul Winter [4], de seu clássico livro "Sobre o Processo de Jesus" ("On The Trial of Jesus"), sobre os interlocutores, adversários e oponentes de Jesus por passagem do evangelhos.

Por questão de espaço, vamos analisar detalhadamente apenas o Evangelho de Marcos, situando também dois evento marcantes do Ministério de Jesus, a purificação do Templo em Jerusalém e a Crucificação. As ocasiões em que os fariseus aparecem serão realçadas em vermelho

Jesus e seus oponentes
Mc 2:6: alguns dos escribas;
Mc 2.16: escribas dos fariseus
Mc 2:18: discípulos de João e os fariseus;
Mc 2:23-24: fariseus;
Mc 3:6: fariseus;
Mc 3:22: escribas de Jerusalém
Mc 7:1: Os fariseus e alguns escribas de Jerusalém
Mc 8:11: Os fariseus
Mc: 8:15: fariseus e Herodes
Mc 8:31: Os anciãos, os Chefes dos Sacerdotes, e os escribas
Mc 9:14: Escribas
Mc 10:2: fariseus
Mc 10:33: Os chefes dos sacerdotes e os escribas
Mc 11:15: Jesus expulsa os cambistas do Templo
Mc 11:18: Chefes dos Sacerdotes e escribas
Mc 11:27: Chefes dos Sacerdotes, escribas e anciãos
Mc 12:13: alguns dos fariseus e os herodianos
Mc 12:18: Saduceus
Mc 12:38: um dos escribas
Mc 14: Inicio da Narrativa da Paixão
Mc 14:1: Chefes dos Sacerdotes, escribas e anciãos;
Mc 14:10: Chefes dos Sacerdotes
Mc 14:43: Uma multidão da parte do Chefes dos Sacerdotes, escribas e anciãos
Mc 14:53: Chefes dos Sacerdotes, escribas e anciãos
Mc 14:55: Chefes dos Sacerdotes
Mc 15:1: Chefes dos Sacerdotes, escribas e anciãos e todo o Conselho
Mc 15:3: Chefes dos Sacerdotes
Mc 15:20-24: Jesus é crucificado
Mc 15:31: Chefes dos Sacerdotes

Winter então observa:
"Duas questões saltam os olhos numa análise dessa Tabela. A primeira refere-se a diferença entre as designações dos inimigos de Jesus adotadas por Marcos nos capítulos 2 a 12, de um lado, e 14 e 15, de outro. Outra é a diferença entre as designações marquense e ao adotados nas passagens paralelas de evangelhos mais recentes. Relativamente a primeira questão, exceto por referências isoladas em Mc 11 (e é claro pela predição da paixão em Mc 8:31 e Mc 10:33) os chefes dos sacerdotes e os anciãos não são apontados como adversários de Jesus nos primeiros capítulos de Marcos, enquanto que em Marcos 14 e 15 somente eles e os escribas aparecem em tal posição" [4]

Considerando os pontos levantados por Winter, podemos observar que antes do episódio da purificação do Templo, os principais oponentes de Jesus são os fariseus. Contudo, se formos aos textos veremos que em grande parte são polêmicas a respeito de regras de pureza, como comer com publicanos e pecadores (Mc 2:16), jejum (2:18), lavar as mãos (Mc 7:1) e o divórcio (Mc 10:2). Questões essas que também eram motivo de polêmica entre os fariseus.

Por exemplo, a possibilidade de divórcio dividia as duas grandes escolas farisáicas a de Hillel (a favor), e a de Shammai (contra). Embora alguns desses debates tenham sido ríspidos e acalorados, provavelmente não foram causadores da morte de Jesus.

Como observam o Professor Gerd Thiessen, Universidade de Heildelberg e Annete Merz, Universidade Utrecht
"a maior proximidade existe, sem dúvida, entre Jesus e os fariseus. Sua crítica de Jesus mostram que eles o avaliam com critérios especiais - como se ele fosse um mestre próximo a eles. K. Berger (Jesus*) resume a oposição e a proximidade da seguinte forma: os fariseus representam uma noção defensiva de pureza. Desse modo, eles estão empenhados em evitar contaminação pela impureza. Jesus, ao contrário, defende uma noção ofensiva de pureza: não é a impureza, mas a pureza que contamina. Mas o motivo fundamental é o mesmo: ambos querem santificar o cotidiano a luz de Deus."
"A relação de Jesus com os fariseus é ambivalente: ao lado de uma grande afinidade nas convicções, encontramos um conflito básico; sinais de relações positivas estão ao lado de indícios de inimizade."[5]

Mas quando Jesus prevê sua morte, ele diz: "Eis que subimos a Jerusalém, e o Filho do homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas; e eles o condenarão à morte, e o entregarão aos gentios (Marcos 10:33 e também Marcos 8:31). São as únicas menções aos principais sacerdotes antes do episódio da purificação do Templo (Mc 11:15). E, interessante, em nenhum dos dois versículos, os fariseus são citados. E após a expulsão dos vendilhões do Templo, os fariseus praticamente desaparecem da história (surgem apenas na questão do "dar a César o que é de César"), e partir do capítulo 14 eles somem de vez.

O impacto é ainda maior, se analisarmos as narrativas da paixão em Mateus e Lucas. Utilizando ainda o esquema elaborado por Paul Winter [6]

Narrativas da Paixão
Mateus : Chefes dos Sacerdotes e Anciãos (26:3); Chefes dos Sacerdotes (26:14) multidão da parte dos Chefes dos Sacerdotes (26:47), escribas e anciãos (26:57), Chefes dos Sacerdotes e todo o Conselho (26:59) Chefes dos Sacerdotes e anciãos (27:1, 27:12, 27:20), Chefes dos Sacerdotes, escribas e anciãos (27:41), Chefes dos Sacerdotes e fariseus (27:62)

Lucas: Chefes dos Sacerdotes e escribas (22:1), Chefes dos Sacerdotes e Capitães (22:4), Multidão dirigida pelos Chefes dos Sacerdotes, capitães da guarda do templo e anciãos (22:47-52), Chefes dos Sacerdotes e escribas (22:66), Chefes dos Sacerdotes e multidão (23:4), Chefes dos Sacerdotes, dirigentes e o povo (23:13), dirigentes (23:35).

Também em Lucas e Mateus, até no episódio do Templo, e da chegada de Jesus a Jerusalém, ou seja, na fase galiléia do ministério de Jesus, os fariseus são rotineiramente mencionados como seus oponentes.Mas tanto em Lucas como em Mateus, após a expulsão dos vendedores do Templo, as menções aos fariseus se tornam rarefeitas. E quando atingimos as narrativas da prisão, interrogatório, julgamento, prisão e crucificação, os fariseus desaparecem. É o mesmo padrão observado em Marcos.

Nos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) [6], embora as narrativas da paixão mencionem os oponentes de Jesus 28 vezes, os fariseus são citados uma única vez. Enquanto isso, antes da expulsão dos cambistas do Templo, Mateus, Marcos e Lucas referem-se a 37 disputas de Jesus com vários grupos do judaismo, das quais 24 mencionam os fariseus. Dessas 13 vezes em que os fariseus não são citados, 5 se referem a passagem paralela em que Jesus diz aos seus discípulos que, em Jerusalém, os principais sacerdotes matariam o Filho do Homem.

Assim, a expulsão dos cambistas e vendilhões do Templo, representam um ponto de inflexão das narrativas evangélicas. Como observam Theissen & Merz [7], esse fato é revelador, pois os fariseus são os oponentes típicos de Jesus em toda a tradição sinótica, mas estão ausentes nas narrativas da paixão - não só em Marcos, mas em Mateus e Lucas -mesmo estando representados na elite judaica e no Sinédrio. Pelo contrário, os sinóticos chegar "a dar testemunho de uma simpatia de certos fariseus para com Jesus". Esse fato pode ser explicado, ainda segundo Theissen & Merz, se os verdadeiros inimigos mortais de Jesus fossem os saduceus, que devem ter se sentido atingidos pelo ataque de Jesus ao Templo, a qual seus interesses estavam extremamente associados.

Depois do episódio do Templo, os inimigos passa a ser o grupo ligado aos Principais Sacerdotes, associados ao Templo de Jerusalém, a qual, provavelmente, eram Saduceus. São os principais sacerdotes que buscam um modo de mata-lo, prendendo-o a traição (Mc 11:18; Mc 14:1), dão dinheiro a Judas (Mc 14:10), ajuntam uma multidão com espadas e varapaus para prender Jesus (Mc. 14:43), levando-o ao Sumo Sacerdote (Mc. 14:53) e a Pilatos (Mc. 15:1). Ao atacar os vendilhões do Templo, Jesus desencadeou uma série de eventos que levariam a sua crucificação.

É verdade que no Evangelho de João, que é menos simpático aos fariseus que seus antecessores sinóticos, menciona o envolvimento dos fariseus, que junto com os Chefes dos Sacerdotes, convocam o Sinédrio e deliberam sobre Jesus (11:47 e 57), e o prendem (18:2 e35). No entanto, ao relatar o interrogatório, julgamento, condenação e crucificação (19:6, 19:15, 19:21), João menciona apenas os Chefes dos Sacerdotes, juntando-se a companhia dos evangelhos sinóticos. Mais ainda, em João 9:15-16 os fariseus discutem entre si sobre Jesus, "e havia dissensão no meio deles" . Ou seja, também em João, a iniciativa do processo que leva a execução de Jesus é do grupo dos "Chefes dos Sacerdotes", ainda que o durante seu ministério seus oponentes mais recorrentes tivessem sido os fariseus.

Professor David Flusser observa:
"As palavras e as ações de Jesus em Jerusalém, precipitaram a catastrofe. O sacerdócio saduceu, desprezado por todos, encontrou seu único apoio no Templo. Este profeta da Galiléia, diante da multidão reunida para a festa, havia não só previsto a destruição do Santuário, como o término da casta sacerdotal. Ademais explorando os sentimentos amargos sobre o comércio que ali tinha lugar, desferiu um golpe doloroso contra as autoridades. As mesmas, trinta anos mais tarde, entregarão aos romanos Josué, filho de Ananias, por também profetizar a ruína do Templo. Os romanos protegiam com diligência todos os santuários religiosos do Império. Assumiam igualmente a tarefa de proteger os sumos sacerdotes de agotadores oportunos."[8]

As principais figuras envolvidas na crucificação de Jesus, Anás e Caifas, eram, provavelmente, membros do partido saduceu. Os saduceus controlavam não só o sumo-sacerdócio e o templo, mas também o Sinédrio. Em Atos 4, os sacerdotes e os capitães do templo prendem Pedro e João, "doendo-se muito que eles ensinassem o povo e anunciassem em Jesus a ressureição dentre os mortos" (verso 2), sob ordem dos saduceus (que não criam em ressureição). Em Atos 5:17, lemos que "Levantando-se o sumo sacerdote e todos os que estavam com ele (isto é, a seita dos saduceus), encheram-se de inveja, deitaram mão nos apóstolos, e os puseram na prisão pública."

Analisando os Evangelhos e Atos dos Apóstolos junto com as evidências de outras fontes, a exclusão dos fariseus não é mera coincidência. Se estes chegaram a sua redação final entre 70 e 110 DC, quando a Igreja já era majoritariamente gentia, o Templo e sua elite dirigente já não mais existiam, e o cristianismo já estava se transformando em uma religião distinta, não haveria motivo para os evangelistas pouparem os fariseus. Seria muito fácil para Marcos, Lucas, Mateus e João descreverem os fariseus como buscando a execução de Jesus, enfatizando sua participação, afinal, como eles mesmos nos dizem, os fariseus são os oponentes e adversários recorrentes de Cristo em seu ministério na Galiléia. A explicação mais provavel, portanto, é que as fontes e relatos mais antigos, a qual estes evangelhos foram baseados, descreviam os Chefes dos Sacerdotes, ligados ao Templo e aos Saduceus, como os responsáveis pela denúncia e entrega de Jesus a Pôncio Pilatos. Isto faz sentido, porque cabia aos Chefes dos Sacerdotes, como a elite dominante dos países ocupados por Roma, colaborar com seus oficiais, identificando possíveis ameaças a ordem estabelecida e a pax romana".

CONTINUA

Bibliografia e Referências:

[1] David Flusser (1998), Jesus, fls. 48-49.

[2] Geza Vermes (2003), Geza Vermes, A Paixão, fl.114.
[3] Os evangelhos foram escritos, provavelmente, entre a 1ª Guerra Judaica (66-73 DC) e 2ª Guerra Judaica (132-135 DC). No primeiro século DC e início do secundo, houveram inúmeras revoltas, provocadas por auto-proclamados "Reis dos Judeus" e "Messias", que causaram a morte de (dezenas de) milhares de pessoas, dentre os quais milhares de bons soldados e cidadãos de Roma. No mesmo período, a igreja era perseguida e o cristianismo era uma seita ilegal, sendo que alguns oficiais e magistrados suspeitavam que o grupo era formado por agitadores, desleias a Cesar e a Roma. De fato, Aristides, Quadrato, Justino Martir, Melito, Apolinario, e outros, escreveram ao Imperador da época buscando incessantemente provar que os cristãos eram leais, pacíficos e produtivos e perfeitos súditos do Império. Porque, nessas circunstâncias, os cristãos inventariam que seu líder tinha sido um Messias Crucificado, executado como um criminoso político, por magistrados romanos, sob a acusação de Alta Traição? Certamente porque Jesus foi realmente crucificado, por ter sido acusado (justa ou injusta) de se auto-proclamar "Rei dos Judeus, e essas coisas eram fatos bem conhecidos (e problemáticos) que os cristãos tinham que explicar.
[4] Paul Winter, Sobre o Processo de Jesus, fl. 236-240
[5] Gerd Thiessen e Annete Merz (1996), O Jesus Histórico; Um Manual, fl. 162 e 252
[6] Paul Winter (1961), Sobre o Processo de Jesus, fl. 122
[7] Gerd Thiessen e Annete Merz(1996), O Jesus Histórico; Um Manual, fl. 254
[8] David Flusser (1998), Jesus, fl. 113

Links úteis:

Livius (por Jona Van der Lendering) http://www.livius.org/ e Early Christians Writings (por Peter Kirby) http://www.earlychristianwritings.com/index.html

Atualizado em 14.07.2009 (links adicionados, e algumas pequenas alterações no texto)

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