Mostrando postagens com marcador Teologia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Teologia. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 18 de agosto de 2009

"Estudos Religiosos" e "Teologia"- considerações epistemológicas - Parte II

Retomemos nossa reflexão anterior, a respeito da relação epistemológica e metodológica entre 'estudos religiosos' e 'teologia', continuando com o gancho no fragmento do comentário de Max Weber.

Weber, advogando sua clássica posição da neutralidade axiológica e valorativa no fazer ciência social, nos deixa algo como uma confissão contrita: não há por onde escapar de se fazer escolhas... Uma adoção automática, nos remeteria próximo ao postulado de Douglas e Knoll’s. Os 'estudos religiosos' não seriam adequados à busca de uma posição teológica, cabendo às disciplinas teológicas, desvelarem a 'estrutura última' das avaliações, buscando seu significado no comprometimento religioso...

Agora, essa escolha, feita na hora de se tomar uma decisão na esfera de ação, não retroage e retro-alimenta, na prática, o próprio labor investigativo, mesmo o do acadêmico de 'estudos religiosos'? Essa postura em si, de advogar a neutralidade, não se imiscuiria numa visão filosófica particular do empreendimento societal? Aonde alguém, engajado no cotidiano de universidades e grupos de pesquisa sob orientadores, conseguiu ver tal neutralidade?

Em relação ao que falamos sobre o realismo crítico...os pesquisadores e estudiosos não assumem preferências por determinados modelos conceituais em detrimento de outros, não deixam sobressair determinadas ferramentas preterindo outras, e não interagem nisso com conhecimentos prévios selecionados, ou em escala diferente de pesos? Ao se depararem com anomalias, não existem aqueles que dão mais peso (quantitativo ou qualitativo) a determinadas anomalias para derrubarem uma teoria, outros a determinadas injunções ou descobertas para construírem uma teoria, entre si?

Em alguns, determinado paradigma é mais recalcitrante, em outros, menos? E o Zeitgest – ambiente cultural delimitado - não entra nisso? Ou existem aqueles desprovidos ou imunes a tal? Lembro de Albert Camus apontando no livro 'O Homem Revoltado' que mesmo uma fotografia não era algo neutro e objetivo, pois o fotógrafo decide enquadrar, delimitar espaço-temporalmente e focar algo da realidade – que é algo muito mais amplo e menos estático do que o mundo exterior onde está o fotografado - que não coincidem, evidentemente, com as molduras intrínsecas (quais seriam?) da própria.

Também, não necessariamente um artigo, texto ou trabalho, desprovido de tom militante, e mais circunspecto, implica que seja mais imparcial. Perfeitamente vemos nesse campo, ironias sutis, sarcasmos velados, 'tapas de luva', termos escolhidos meticulosamente para que, evitando perder o ar puramente acadêmico, sirvam para provocar um seguimento, ou entusiasmar adeptos de idéias.

Isso significa que o campo então deve ser aberto e entregue a manifestações panfletárias, ou que somente podemos ver guerras de trincheiras sem arbítrio entre si? Não. De forma alguma.

Na minha formação acadêmica em agronomia pude estudar estatística básica e estatística aplicada. Envolvem instrumentais de controle e rigor para as ciências. Confere a elas um caráter mais democrático. É claro que um pesquisador renomado, uma sociedade científica, possui um peso considerável num debate a respeito de um tema, e para fortalecer um paradigma ante anomalias. Contudo, o teste estatístico, que averigua a variância, margem de erro, amplitude, etc., é objetivo, e qualquer um pode desbancar uma tese se mostrar que há erro num cálculo simples no 'Teste de Tukey'. Nos campos de estudo compreendidos na presente temática, lidamos com variáveis, elementos e 'objetos' de estudo muito menos passivos de controle, sujeitos e mesmo requerentes de uma maior extrapolação. Com isso, o elemento de controle correspondente deve ser a lógica e análise retórica.

Eruditos elencam dados. Um leigo pode analisar seu escrito e dizer 'tal dado, com aquele outro, não levam necessariamente a tal conclusão', ou 'tal conclusão não corresponde a uma seqüência lógica a partir disso', ou 'aqui há mais retórica e menos concisão'; diversos escritos imensos, com um escopo de notas de rodapé maior do que o corpo de texto (algumas vezes nos deixando intrigados do por que elas não estão inseridas no corpo do texto, pois perfeitamente seguem sua seqüência), podem padecer de problemas como 'imagens semi-aderentes', 'médias unidimensionais', etc. Isso serve como um imperativo do qual os pesquisadores nesse campo não podem se escusar, o cuidado retórico, auto-crítica e o apreço pela boa disposição silogística dos argumentos.

Voltemos ao texto de Weber. Ele escrevera: As disciplinas filosóficas podem ir mais longe e revelar o ‘significado’ das avaliações, isto é, sua estrutura última e suas conseqüências significativas.

Poderíamos estabelecer, daí, com cuidado, uma relação então entre a 'teologia', ocupando o lugar aí das 'disciplinas filosóficas', e os 'estudos religiosos', ocupando o lugar das 'avaliações'? Seria enfim questão da separação entre 'ciências básicas' e 'ciências aplicadas', com a 'teologia' ocupando o lugar da segunda?
Eu sugiro que, em termos, e sem fronteiras rígidas, isso pode ser aproveitado na tarefa de se indicar um caminho menos míope.

Isso tem sim a ver, mas não pode ser delimitado assim com tal clivagem. Debrucemo-nos sobre a interface 'biblistas/teólogos'. Um biblista, por exemplo, fornece grandes materiais para um teólogo, sem precisar de ser um. Assim também um lingüista, etc. Mas, por outro lado, um conhecimento de trabalhos teológicos pode ser indispensável para análises lingüísticas de materiais religiosos.

Podemos dar um exemplo. Bart Ehrman, no meu ponto de vista, é primeiramente um grande biblista, que faz também teologia acadêmica. N.T.Wright, vejo-o primeiramente como um teólogo, que também é um grande acadêmico biblista. Ambos produzem pesquisas de qualidade, de alcance amplo e acessível para o ambiente dos pesquisadores. Mas podemos pegar a tônica geral dos seus trabalhos e ver que predomina um compromisso em ambos, em Bart, com o agnosticismo, em Tom, com o cristianismo.

E, afinal, 'quem decide' o que vai ser básico e o que vai ser aplicado? Frequentemente, aquele que propriamente produz o material é o que tem o menor poder de decisão. As pessoas podem pegar recortes de pesquisas dos biblistas dando-as orientações aplicadas, sem passar pelo trabalho de um 'teólogo', e podem encostar um trabalho teológico de lado sem aplicá-lo a nada, ou apenas decorando-o sem enxergar uma aplicação, ou podem mesmo usar um trabalho teológico para subsidiar ou suscitar uma investigação de cunho biblista.

Eu diria que, mais apropriadamente, mas com cuidado, podemos enxergar no papel dos 'estudos religiosos' uma tônica, preponderantemente (mas não exclusivamente) analítica, e no trabalho de 'teologia', uma tônica preponderantemente (mas não exclusivamente) sistematizadora. ‘Estudos religiosos’ primariam pela decomposição em partes para esmiúçá-las em cada elemento que se apresentar, ela parte do mais composto para o mais simples, investiga através de uma divisão em partes menores para que possam por seu instrumental, serem observadas e compreendidas, busca mais a ‘análise’. ‘Teologia’ teria como procedimento norteador a preocupação inversa, combinar os elementos num produto global de conhecimento, busca mais a ‘síntese’. A teologia tentaria elucidar também o sentido ou o significado que estas investigações, inclusive quanto às experiências das comunidades e tradições que vivenciam o fenômeno religioso, poderiam proporcionar. Isso, enfatizando o termo 'preponderantemente', para indicar que não implica que alguém de um campo ou outro se atenha somente à análise ou síntese.

sábado, 15 de agosto de 2009

"Teologia" e "Estudos Religiosos" - Parte I


Douglas Mangum, no seu formidável e agradável blog Bíblia Hebraica, veio desenvolvendo e fez um apanhado de algumas discussões a respeito das diferenças do trabalho de 'teologia' para com 'estudos religiosos'. Ele se diz contemplado com alguns apontamentos feitos pela crônica de K.L. Noll’s.

De fato, é um assunto que teve algum tempo me debrucei a respeito. Na verdade, eu nutro grande interesse a respeito de discussões de gnosiologia, epistemologia e metodologia em geral, e já desenvolvi trabalhos a respeito em minha área profissional como agroecólogo, intitulados Perspectivas epistemológicas para a agroecologia, promovendo um diálogo entre as ciências da agroecologia, as ciências da complexidade e as discussões da filosofia e história da ciência. Também já me debrucei sobre temas de epistemologia e direitos humanos, focando a ontologia de Paul Tillich e os Direitos Humanos à Alimentação Adequada (DHAA). Como alguém que investiga e xereta diversos assuntos nos escritos sobre religião, esse tema não ficaria de fora, e de fato já venho resolvendo empreender algo neste sentido, o que levaria alguns meses.

A provocação da discussão é deveras pertinente. Podemos observar um fenômeno crescente, e bivalente, onde os cursos e faculdades de teologia cada vez se vêem mais restritos a seminários e faculdades de direito privado ligadas a instituições de cunho religioso, enquanto, por outro lado, cresce nas instituições públicas cursos e faculdades de 'estudos religiosos', ou 'ciências da religião', multidisciplinares e com diversas interfaces com outras áreas.

Aqui, tentarei levantar algumas modestas reflexões a respeito dos pontos levantados por Douglas e por Noll’s. Uma advertência preliminar. Douglas nota bem a lamentável participação meio que sectária dos comentários a respeito do artigo de Noll’s. Contudo, versarei sobre alguns pontos que elas levantam. Pois o fato é que não é porque alguém levanta um assunto com uma postura e tônica sofrível que o conteúdo essencial do levantamento em si se invalida.

Os eixos-chave do raciocínio da crônica são o seguinte: a teologia está imbuída de um compromisso teleológico que lhe retira a objetividade, em relação ao maior distanciamento de alguém que se declara empreendedor de trabalhos em 'estudos religiosos'. E o teólogo está imerso e comprometido, necessariamente, com uma tradição religiosa, e faz seus trabalhos na ótica da sua comunidade de tradição, e em prol dela. Há um maior controle dos resultados de pesquisa em quem faz 'estudos religiosos' do que quem trabalha com 'teologia'.

Quero argumentar aqui que, na linguagem teen de hoje, isso tudo é 'muito relativo'.

Um teólogo se debruça sobre uma tradição religiosa, pois seu material de estudo está imerso nela. Não significa que ele está comprometido com essa tradição, necessariamente. Alguém pode estudar teologia de uma tradição sem pertencer a ela;pode estudar a teologia de uma tradição religiosa diferente da sua. Ou alguém que não se declara pertencente a nenhuma pode estudar várias ou uma. Ele estudaria as representações das divindades, como elas retroagem com os que crêem, o material primário da tradição, qual a natureza da linguagem que se fala dela, como se relaciona com outras tradições, com a cultura em geral. No caso, esses temas se sobressairiam ante o foco mais enfatizado na história em si, ou na sociologia, ou estética, embora ele possa usar tais como ferramentas. Mas pode perfeitamente não crer no conteúdo da alegação e reivindicação dessa tradição.

Por outro lado, alguém que foca no estudo antropológico das comunidades e/ou instituições de uma tradição religiosa, ou relações econômicas, no campo filológico ou idiográfico, sobressaindo o foco nas ciências sociais, p. ex., não seria um teólogo, mas trabalharia com “estudos religiosos”, e poderiam muito bem pertencer a tradição estudada ou a outra, e ser em dado grau, comprometido com ela no trabalho. E a teologia, propriamente dita, estará presente em um grau muito pequeno. O teólogo pode se valer de aportes destes estudos para empreender seu trabalho enquanto tal.

Todos eles estão inseridos numa comunidade, numa comunidade de pesquisadores, em sua comunidade acadêmica cotidiana, às quais submetem, reportam os trabalhos e levam em conta o consenso ou a posição majoritária, avançando dentre os paradigmas que os colegas da comunidade acadêmica perfilham e os problemas detectados; sobre todos poderíamos dizer que, no âmbito acadêmico, seriam os 'cientistas normais' dos postulados de Thomas Kuhn, partilhando dos seus jogos de linguagem. E com o tempo, no contexto social, historicamente se constituem corpos de tradições, ainda que não monolíticas.

Quanto à questão de objetividade do pesquisador, este é um assunto muito mais extenso e complexo do que muitos crêem, e daria para escrever vários artigos. No campo filosófico este debate é um balaio de gato. Sobre a natureza da relação entre o observador, o material estudado e a linguagem, representação e ontologia, mesmo no campo das ciências como física, química, astronomia, etc., temos ainda vivo um grande debate entre realistas, instrumentalistas, e mais recente algo que veio contribuir muito (uma perspectiva à qual me alinho), o realismo crítico.

Os realistas críticos atentam que um conhecimento da realidade é auferido pelas ferramentas, mas em aspectos limitados e parciais, em interação com quem conhece. Apregoam que as ferramentas científicas não podem mesmo expressar crua e perfeitamente a realidade tal como é em si, tampouco se restringem a construções intelectuais úteis e internamente consistentes. Dentro de limites, podem apresentar a realidade, mediada por atos de imaginação criativa, nos quais analogias e modelos conceituais têm frequentemente um papel. Os modelos conceituais nos ajudam a imaginar o que não é diretamente observável, especialmente no domínio do muito grande e do muito pequeno. - extraído de Quando a ciência encontra a religião, Pg. 41-42.

Vamos nos debruçar sob o prisma do que Max Weber escrevera aqui:

Pode-se afirmar que, quando se procura retirar orientações concretas de avaliações práticas políticas (particularmente econômicas e sóciopolíticas), 91) os meios indispensáveis, (2) as repercussões inevitáveis, (3) a competição condicionada das inúmeras avaliações possíveis nas suas conseqüências práticas são tudo o que uma disciplina empírica pode demonstrar com os meios ao seu dispor. As disciplinas filosóficas podem ir mais longe e revelar o ‘significado’ das avaliações, isto é, sua estrutura última e suas conseqüências significativas. (...) As ciências sociais, estritamente empíricas, são as menos adequadas para ter a presunção de nos poupar a dificuldade de fazer uma escolha, e não devem portanto difundir a impressão de que podem fazê-lo.
WEBER, Max. The Meaning of ‘Ethical Neutrality’ in Sociology and Economics. In:The Methodology of the Social Sciences (Nova York:Free Press,1949), p.18-19.

Este texto iluminará nossa reflexão, buscando somar e transpor o 'político', que é o que ele aborda, com o 'religioso', nossa preocupação maior aqui.


CONTINUA...


IMAGEM: Max Weber.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

A temática cristã do destino pessoal eterno e sua raiz no pensamento religioso judaico

O cristianismo se caracteriza por tecer de forma estreita uma relação com a obra de Jesus, a questão da morte do indivíduo e o destino pessoal eterno. Desenvolveu um pensamento que se manifesta por associar à crença cristã na ressurreição de Jesus com a purificação dos pecados e assim, a vida eterna, em oposição à condenação pós-morte sob o jugo do pecado.


Alguns estudiosos acusam neste fato uma clivagem com a provável mensagem e pregação histórica de Jesus e o senso de seu ministério. O apelo maior de temas-chave da religião judaica como a Aliança, a Promessa, a restauração social e espiritual da nação; e o quadro sócio-político de então, sob o domínio romano, a pesada carga suportada pela maioria da população, e as variadas expressões de insatisfação popular, os conflitos sociais entre grupos, como prismas para a leitura da memória histórica, são de um escopo tal que muitos não conseguem conceber que esse tema do destino individual ganharia espaço urgente nem poderia se relacionar com a questão messiânica.

Vêem então nisto uma 'espiritualização' crescente, mais grecisada do que judaica, alguns buscando apontar pontos específicos de bifurcação, geralmente no pensamento paulino. Um tempo atrás, mesmo pouco antes das publicações do gênero que se convencionou chamar 'Nova Perspectiva' nos estudos sobre Paulo, podíamos ouvir que Paulo teria 'criado o cristianismo'. É uma acusação presente em Ernest Renan e Nietzsche [os discursos sobre um suposto 'Paulo desjudaizado' só recentemente foram sepultados com os trabalhos de nomes como Ed Parish Sanders, Nichollas Thomas Wright, Heikki Raisanen, Francis B. Watson e Stephen Westerholm]. Algo que reforça isso é uma convenção vulgar de que o judaísmo antigo não se preocupava muito com esse destino individual, sobretudo em relação à condenação em contraste com a salvação. E também com uma impressão de que Paulo não lidou direito com o papel da Torá na Aliança e atribuíra aos seus contemporâneos um legalismo injusto.

Vamos expor aqui, em mais um texto da série sobre o contexto do neotestamentário e o discurso paulino, que esse dilema com a morte ocupa sim um espaço importante na cultura judaica deste período, e que no que o cristianismo se detém sobre o tema, está perfeitamente consoante com substratos religiosos judaicos.

A mais famosa imagem do destino pós-morte que encontramos no judaísmo é a do Sheol. Um lugar sombrio de semi-existência, desnorteada e errante. Mas parece que o termo era usado para abarcar uma complexidade de expressões dessemelhantes; dentre elas, também se inclui a de condenação.

Em Deuteronômio 32.21-23, tem-se o Sheol como lugar em que os que abandonaram Deus serão punidos por um fogo divino. Em Is.66.24, os revoltados contra Deus atingidos por um fogo que nunca se apaga, por vermes que nunca morrem (cujo eco sem encontra em Marcos 9.48). Na passagem do Salmo 9.17-18, tem-se apresentado o Sheol como lugar para os infiéis e os que esqueceram Deus.

Essas acepções soam estranhas quando encontramos vulgarmente falas categóricas que tomam por certo não existir essa concepção no judaísmo. É bom relembrar aqui a clássica passagem do livro de Daniel, 12.1-2, passagem esta proveniente da primeira metade do século II a.C., que evoca de forma bombástica a condenação eterna para os perdidos.

Mas vamos tomar um livro que trabalha sob categorias cristãs temas fortemente arraigados na apocalíptica judaica, o Apocalipse de João. Uma de suas figuras mais fortes evocadas sob esse tema é a do Livro da Vida. Não é algo novo em relação ao judaísmo. O tema do 'Livro vida'- ‘olam hazeh’, aparece por exemplo no Salmo 39.16, 69.27-29, no livro de Malaquias 3.16. Em muitos outros exemplos da literatura judaica encontramo-lo. Jubileu 30.22 menciona um livro de destruição dos nomes que foram arrancados do livro da vida. I Enoque 104.7; 108.3, 7; Baruc 24.1 também versam sobre o Livro da Vida; mesmo na Mishna, em Pirkey – Avot 2:1; 3.17.

Há também os âmbitos exotéricos. Dentre os manuscritos de Qumran, na 1QRegra da Comunidade (1Qs), Col. III: 9-13, fala-se sobre a ação de anjos da vingança, que destroem nações que prestam lealdade a Belial [em referência aos ‘Kittim’], exclamando que a chegada deles será para abundância de castigos por mãos de todos os anjos de destruição, para condenação eterna pela ira abrasadora do Deus da vingança, para erro perpétuo e vergonha sem fim com a ignomínia da destruição pelo fogo das regiões tenebrosas.

No Enoch Etíope [cerca de primeira metade do séc.I a.C.] tem-se [10.8]: Nesse dia, eles serão atirados ao abismo de fogo, na reclusão, no tormento, onde ficarão encerrados para todo o sempre. E todo aquele que for sentenciado à condenação eterna seja juntado a eles, e seja com eles mantido em correntes, até o fim de todas as gerações. Também: Esperai com paciente esperança; não renuncieis de vossa confiança; pois grande alegria será a vossa, como aquela dos anjos no céu. Conduze-vos como podeis, não estareis escondidos no dia do grande julgamento. Não sereis como os pecadores; e a eterna condenação estará longe de vós, enquanto o mundo existir.[104.3]

Também temos as imagens de visões beatíficas, das bem-aventuranças eternas. A expressão seio [que poderia ser tomada como 'círculo de', 'ambiente de', 'acolhimento junto a'] de Abraão apresentada na parábola em Lucas 16.22 ecoa 4 Macabeus: Após esse sofrimento, nosso Abraão, Isaque e Jacó nos receberão e todos nossos ancestrais nos celebrarão.

Mas no pensamento paulino, se destacam os temas da expiação dos pecados, prestação de contas no juízo, a segurança da vida eterna com Deus na Nova Criação, após o julgamento. De Tessalonicenses, dos primeiros escritos, destacando a carta aos Romanos. Seria esse então o ponto em que Paulo vai além de tudo antes, para tecer seu 'evangelho aos gentios'? De onde ele chegara a expressar o juízo divino que era tomado como 'Dia de YHWH' como 'Dia do Messias Jesus' (Filipenses 1.6; 1.10;2.16)?

Vejo que por detrás de tal julgamento, se esconde uma ingenuidade: a de que alguém, com posse de valiosos materiais que proporcionam hoje um fabuloso subsídio para o estudo do pensamento do judaísmo do segundo templo, e dos grupos religiosos, possa ainda assim estar mais a parte da mentalidade, sobretudo farisaica, e de círculos de pensamentos próximos (histórica, cultural e geograficamente), do que alguém que viveu diretamente imerso, não só tomando parte mas estudando e vivendo nas escolas importantes de então, existencialmente comprometido por inteiro, e que por assim dizer, perfeitamente traduz e expressa preocupações e temáticas de então que ninguém atualmente estaria tão habilitado em expressar.

Não se teria como apresentar de forma mais enfatizada como esses temas faziam sim parte das preocupações religiosas, mesmo em períodos de convulsões sociais como a das grandes agitações que culminaram com a revolta judaica seu desbaratamento e a assolação de Jerusalém, do que o lamento altissonante atribuído ao Rabbi Yochanan Bem-Zakkai, maior nome do Conselho de Jamnia, que estabeleceu o judaísmo oficial após a destruição do Templo pelas forças romanas, no topo das maiores autoridades do judaísmo de seu tempo e ligado à Gamaliel, eminente rabino educador de Paulo:
Agora eu estou sendo levado diante do supremo Rei dos reis, o Santo, bendito seja, que vive e permanece para todo o sempre. Se ele está zangado comigo, permanecerá zangado para sempre. Se me aprisionar, me aprisionará para sempre. Se me envia para a morte, permanecerei morto para sempre. Não posso persuadi-lo com palavras ou suborna-lo com dinheiro. Além disso, há dois caminhos à minha frente: um conduz ao Gan-Eden (paraíso) e o outro ao Gehena, e eu não sei a qual deles serei levado. O que mais posso fazer além de chorar?
(B’rahakhot 28b).

Importante observar que aí, além do tema do Gehena, relativo à condenação, temos o Gan-Éden, que é transliterado como Paraíso, apresentado em Lucas 23.43 no diálogo de Jesus com o criminoso na cruz.

De um povo devotado a um deus concebido como eminentemente moral e justo, com uma noção arraigada de pecado e deste como algo abominado por este deus, e que tinha convicção de esperar por um julgamento futuro, por mais que tivessem suas cerimônias de relembrar da aliança, confirmar sua participação na eleição selada pela Torá, e a cerimônia do Dia do Perdão, é natural ainda assim esperarmos essa preocupação, sobretudo nos mais conscienciosos quanto ao dever de ser fiel aos mandamentos. Em períodos em que se confrontavam com uma realidade que não parecia se retratar como recompensadora de tais esforços, isso poderia se acentuar.

Neste sentido, enfocando o auto-exame, o rabbi Yehoshua ben Levi declamara:
Qual é o sentido do versículo: É esta a torá que Moisés propôs aos filhos de Israel (Dt. 4:44)? Significa que se uma pessoa for merecedora, ela se torna para ela um remédio que dá vida; mas se não for, ele se torna um veneno mortal. Foi a isso que Raba se referiu quando disse: ‘Se a pessoa a usa da maneira correta, ela é um remédio de vida, mas para aquele que não usa da maneira correta, ela é um veneno mortal’. (Yoma 72b)
Tal declaração está consoante com o apresentado em obras da literatura judaica, como no Apocalipse de Baruc 17.72, 3,42; 23.4.

Ainda para frisar como esta temática é arraigada no pano de fundo da religião judaica, temos o comentário na Torá Oral do Rabbi Y’hudah Há Nasi:
(...) Dê atenção a três coisas, e não ficarás sob o poder da transgressão: saiba o que está acima de você – um olho que tudo vê, um ouvido que tudo ouve, e todas suas obras registradas em um livro.
(Avot 2:1).

É deveras difícil sobre-estimar o impacto que poderia sobrevir através do quadro retratado em 4 Esdras 7.32-37:
A terra restaurará os que repousam nela, e o pó restaurará os que repousam nele. O Altíssimo será revelado no trono do julgamento, e então vem o fim. A compaixão desaparecerá, a misericórdia estará distante, a longanimidade, abandonada; apenas o julgamento permanecerá, a verdade perseverará, a fidelidade prevalecerá. A isso seguirá a recompensa, ela se manifestará. Os atos de justiça despertarão, e os atos de iniqüidade não repousarão. Então surgirá o Abismo de Tormentas, e, em contraste com ele, um lugar de refrigério; a fornalha de Ge-Hinnom se manifestará, e em contraste com ela, um paraíso de delícias.
E também mais à frente em 7.46-48:
Quem dos que entraram no mundo não pecou? Ou quem dentre os nascentes na terra não transgrediu Tua aliança? Vejo, agora, que a era vindoura a poucos trará alegria, mas tormenta para muitos. Pois cresceu em nós o coração mau que nos afastou do Altíssimo, levou-nos à destruição, fez-nos conhecer os caminhos para longe da vida! E isso não se aplica somente a alguns, mas praticamente a todos os que foram criados!

Dessa forma, oferecemos subsídios para visualizarmos como esse tema, desenvolvido no cristianismo nascente sobretudo em Paulo mas não exclusivo dele (vide João 3.16, por exemplo) que vincula, juntamente com outras temáticas, as crenças quanto ao ministério de Jesus como decisivo para o destino pessoal após a morte. Não seriam algo dissimilar do substrato judaico, nem algo que necessariamente deveria ser desenvolvido de modo tardio, com um eclipsar judaico por temas indisiocráticos gregos. Está perfeitamente arraigado, dentro é claro de uma multiplicidade de expressões que é característica do contexto, no imaginário em que surgira. A um existencialista moderno que pudesse voltar ao tempo e perguntar aos cristãos 'o que tudo isso tem a ver com a morte', poderiam responder: 'tudo isso'.

sábado, 20 de junho de 2009

Novo Testamento, Linguagem, Teologia e Paradoxos


Paulo reserva um lugar acentuado em sua exposição teológica para a asseveração da universalidade da pecaminosidade humana. Especialmente na carta aos Romanos, destacando o capítulo 5. Diversos viezes e mesmo sistemas teológicos foram arquitetados ao longo da história, em graus variados de acentuação a respeito da ênfase quanto a condição humana e o pecado, e a liberdade moral humana. Decerto, é comum hoje dizer que por vezes a visão de Paulo é ambivalente. Por exemplo, em Rm. 9.19, o homem não é capaz de se opor à compulsão divina; em Rm. 9.22, ele é.

Vamos buscar algumas considerações a respeito deste tema, em algumas passagens importantes da literatura judaica do Segundo Templo.

Não digas: ‘Foi Deus que me fez cair’,pois não deves fazer o que ele detesta. Não digas: ‘Foi Ele que me fez desviar’, pois Ele não precisa do pecador. O Senhor odeia toda abominação, e os que o temem não devem amá-la também. No princípio Ele criou o ser humano e o entregou às mãos de seu arbítrio. Se quiseres, tu podes observar os mandamentos e agir com fidelidade é uma questão de intenção.
Diante de ti, Ele colocou o fogo e a água: estende a mão para o que quiseres. Diante do homem estão a vida e a morte, e ele receberá aquilo que preferir.

Sirácida 15.11-17.

Pois, embora Adão tenha pecado primeiro e trazido sobre todos a morte fora de tempo, contudo, daqueles que nasceram dele, cada um preparou para si mesmo o tormento futuro; também cada um deles escolheu para si mesmo glórias futuras... Adão não é, portanto, a causa, exceto para sua própria alma, mas cada um de nós foi o Adão de sua própria alma.
II Baruc 54.14-15,19.

Pois o primeiro Adão, vestindo-se de um coração mau, transgrediu e foi vencido; e igualmente também todos os que nasceram dele. Portanto, a enfermidade tornou-se crônica; a Torá, na verdade, estava no coração do povo, mas junto com a semente do mal; então, o que era bom se foi e o mal permaneceu
.
4 Esdras 3.19-22

E eu respondi: ‘Esta é minha primeira e última palavra: Teria sido melhor se a terra não tivesse produzido Adão, ou, por outro lado, antes o tivesse produzido para que tu o tivesses produzido para que tu o tivesses impedido de pecar.Pois que proveito há para qualquer um de nós no fato de que, na era presente, devemos viver em aflição e, após a morte, esperar o castigo? Adão, o que fizeste! Pois embora foste tu que pecaste, a queda não foi somente tua, mas também nossa, seus descendentes! Que proveito há em recebermos a promessa da era eterna, quando temos feito as obras que trazem a morte?
4 Esdras 7.116-119

O quadro que temos dessa passagem também nos proporciona uma imagem de ambigüidade.

Pode-se elencar bons exemplos de ambigüidades no pensamento teológico de Paulo. Na carta aos Colossenses 2:12, temos a seguinte passagem:

Fostes sepultados com ele no batismo, também com ele ressussitastes, pela fé no poder de Deus, que o ressussitou dos mortos.


Tudo bem que uma leitura permitiria aí enquadrar os termos no simbolismo do batismo.

Em II a Timóteo- temos um porém. Essa epístola poderia ser paulina a considerar uma possibilidade: a prisão em Roma descrita no final de Atos não fora a definitiva que culminara em sua morte. Independente disso, outro cenário é de que alguém muito próximo a Paulo ou que se julgasse familiarizado a teria escrito buscando estar sob seu prisma, expressamente para alguém muito próximo ao apóstolo:

2:16-18: Eles se desviaram da verdade, dizendo que a ressurreição já se realizou, estão pervertendo a fé de vários.

Em I Co. 15, o capítulo expressa que a ressurreição foi inaugurada por Jesus e todos a experimentarão no futuro escatológico.

Outras ambigüidades mais claras:

A 'Justificação' se dá no futuro ou passado? – cf. Rm. 2.13, 8.33. Gl. 5.4,5.
A 'Santificação' é um evento/fenômeno passado? ICo.6.11; futuro? ITs.5.23
A 'Salvação' já se efetuou? Rm.8.24; I Co.15.2 ; está se efetuando? I Co.1.18; ICo10.11; é algo para o futuro? Rm.5.9-10.

Essas ambigüidades ou mesmo paradoxos permeam diversos pontos importantes e cruciais do Novo Testamento. A grande questão do Reinado de Deus.
Ele estava próximo: Mc.1.15
Já chegara: Mt.12.28
Vem no futuro: Mt.6.10
No porvir? Mc.14.25.

Penso que um das grandes problemas em lidarmos com essas dificuldades é a falta de cuidado em buscar compreender a linha de pensamento daquele ambiente cultural; aplicamos anacronicamente categorias analíticas ocidentais abstratas e dedutivas a uma forma de pensar dotada de outras nuances. C.H. Dodd, no livro 'Segundo as Escrituras. Estrutura fundamental do Novo Testamento' [ 1979, Ed. Paulinas, 144p.], já advertia-nos para levarmos em conta a linguagem do povo daquele contexto. Afirma ele que não veriam nada demais em justapor duas frases que apresentam aparentes contradições diretas, pois as inseriam numa perspectiva de um plano maior. Sendo assim, não estavam ignorando 'o terceiro excluído'.

De fato,cada sistema de linguagem em seu contexto histórico-social oferece a estrutura lingüística necessária para descrições e expressões que não necessariamente se enquadram em outros esquemas de pensamento.

O psicólogo Erich Fromm, no livro 'Meu Encontro com Marx e Freud' coloca e ilustra isso de forma perfeita: Em hebraico o princípio básico da conjugação é determinar se uma atividade é completa (perfeita) ou incompleta (imperfeita), ao passo que o tempo em que ocorre - passado, presente, futuro – é expresso de forma secundária. Em latim, os dois princípios (tempo e dimensão-perfeição) são empregados simultaneamente, enquanto no inglês predomina o sentido do tempo. Quando o texto hebraico do Velho Testamento emprega o tempo perfeito para uma experiência emocional, como p.ex. amar, com o sentido 'eu amo plenamente', o tradutor se equivoca e diz 'eu amei'.

Assim, temos que considerar os diferentes sentidos dos termos no contexto maior que aquele que os emprega os situa, para podemos assim não eliminarmos as tensões inerentes apresentada no pensamento examinado, mesmo que no caso não fosse a nossa própria maneira de expor as idéias, se estivessem a nosso encargo.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Leituras Críticas Sobre Leonardo Boff

No próximo dia 9 de junho, terça-feira, às 19:30, será realizado o lançamento do livro "Leituras Críticas Sobre Leonardo Boff", coletânea de 6 ensaios sobre os 70 anos de vida do renomado teólogo. O trabalho foi organizado pelo professor de Ciência Política Juareza Guimarães e editado pela editora da UFMG. Dentre os ensaistas, encontramos nomes como os de João Batista Libânio, Patrus Ananias e Rudolf von Sinner.

O lançamento, que faz parte do projeto "Sempre um Papo" contará com a presença do próprio Leonardo Boff e será realizado no auditório do Colégio Santo Agostinho em Belo Horizonte.

Meu conhecimento sobre a obra do ex-frei franciscano não é dos melhores. De qualquer forma, devo aparecer por lá!

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Cito um absurdo


Trago um pequeno comentário para desfazer um grande mal-entendido a respeito de uma suposta citação de um importante sistematizador da fé cristã. Muitas vezes tal citação, distorcida, tem sido usada para postular comentários de teores diversos.

Atribui-se a Tertuliano de Cartago a frase “Creio porque é absurdo”. Às vezes, chegam a dizer que deriva do original “credum ad absurdum”. Delfim Neto, ex-ministro da economia, chegou a atribuir a frase a Santo Agostinho, numa de suas colunas na revista Carta Capital.

A citação original em Latim, encontrada no livro A Carne de Cristo, 5, é:

Crucifixus est dei filius; non pudet, quia pudendum est. Et mortuus est dei filius; credibile prorsus est, quia ineptum est. Et sepultus resurrexit; certum est, quia impossibile.


A tradução seria:

O Filho de Deus foi crucificado: não me envergonho, porque vergonhoso é. O Filho de Deus morreu; é absolutamente crível, porque é insensato. Ele foi sepultado, e se levantou novamente; é certo, porque impossível.



Quinto Sétimo Florêncio Tertuliano nasceu na atual Tunis, por volta de 160 d.C. Se convertera ao cristianismo por volta de do ano 197. Trabalhara como advogado em Roma. Escritor prolífico e dotado de uma retórica extremamente arguta, teria sido responsável pela criação de 509 novos substantivos, 284 novos adjetivos e 161 verbos na língua latina[1]. Foi o criador do termo “Trindade”, do latim, Trinitas; introduzira o termo latino Persona para traduzir o grego Hypostasis.

Ele se engajara num debate acirrado acerca do relacionamento das matizes de racionalidade das filosofias gregas com a fé cristã. Tertuliano era bem cético a respeito, temendo uma deturpação do cristianismo, e se posicionou de forma bem crítica, de forma diametralmente oposta a de Clemente de Alexandria.

Escreve em Prescrição de Hereges, 7:

Ele [Paulo] esteve em Atenas e teve em sua entrevista com os filósofos familiarizando-se com aquela sabedoria humana que pretende conhecer a verdade. De fato ela apenas corrompe e está ela mesma dividida em suas próprias heresias múltiplas pela variedade de suas seitas mutuamente hostis. O que de fato tem Atenas a ver com Jerusalém? Que harmonia há entre a Academia e a Igreja? Que tem os hereges a ver com os cristãos? Nossa instrução vem do pórtico de Salomão, o mesmo que ensinou que o Senhor deve ser buscado com simplicidade de coração. Fora com todas as tentativas de produzir um cristianismo estóico, platônico, e dialético. Nós não queremos nenhuma disputa curiosa senão possuir a Cristo Jesus, nenhuma especulação senão desfrutar o evangelho. Com nossa fé, nós não desejamos nenhuma crença incrementada. Porque esta é a nossa crença fundamental: não há nada mais que não deveríamos crer além desta.


Nessa passagem que abrange a distorcida e desgastada citação, ele polemiza especialmente com o sistema aristotélico. Tertuliano declarara: Infeliz Aristóteles! Que inventou para estes homens a dialética, a arte de edificar e de demolir; uma arte tão evasiva nas suas proposições, tão forçada nas suas conjeturas, tão áspera nos seus argumentos, tão produtora de contendas...retraindo tudo e realmente não tratando de nada!

E usa o texto supracitado em latim para ironizar, ao estilo da retórica indissiocrática de Tertuliano, um argumento de Retórica, de Aristóteles, que justamente apregoava que uma afirmação pode vir a ter um caráter tão extraordinário que precisamente por isso pode atingir a verdade.


[1] – McGRATH, Alister. TEOLOGIA: sistemática, histórica e filosófica – uma introdução à teologia cristã. Shedd Publicações, Santo Amaro. 2007. pg 375.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Como os cristãos arrecadavam recursos?


Uma das coisas mais terríveis que rondam o cristianismo da atualidade pode ser encontrada na chamada Teologia da Prosperidade. De acordo com essa corrente teológica, os fiéis cristãos tementes a Deus devem desfrutar (e muitas vezes requisitar) da riqueza material proveniente de Deus. É deste tipo de mentalidade, por exemplo, que encontramos a aberrante Bíblia de Estudo Batalha Espiritual e Vitória Financeira, elaborada pelo evangelista Morris Cerullo, na qual encontramos o texto bíblico transformado em uma espécie de livro de auto-ajuda financeira, destes que encontramos aos montes pelas livrarias afora.

O mecanismo que está por trás desta teologia é muito simples ---> "fiés mais ricos - dízimo mais elevado - pastores mais ricos". Percebam obviamente que eu não conclui essa rápida equação com o termo "Igreja mais Rica". E por que eu não fiz tal coisa? Porque na verdade a ECCLESIA fica cada vez mais pobre espiritualmente a cada dia em que aumentam essas práticas de extorsão e auto-engano em massa. Cristianismo e riqueza material tipicamente não combinam.

Em uma outra oportunidade, tratarei de mostrar nas escrituras como se dava a relação do protocristianismo com o dinheiro. Neste nosso caso específico, gostaria de postar sobre os registros mais antigos acerca das formas pelas quais os cristãos primitivos arrecadavam. Vou citar textos de dois teólogos cristãos do século II d.C.: Justino e Tertuliano.

Justino, I Apologia, 67

"Depois disso, renovamos sempre entre nós a memória destas coisas, e aqueles dentre nós que possuem bens ajudam a todos os necessitados, e ajudamos sempre uns aos outros. E por tudo o que oferecemos, bendizemos o criador do universo por meio de seu Filho, Jesus Cristo, e do Espírito Santo.

No dia dito do Sol todos se reúnem no mesmo lugar, quer habitem nas cidades, quer nos campos; são lidas as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas, segundo o tempo disponível. Quando o leitor termina, presidente da assembléia, com um discurso, nos convida e exorta à imitação daqueles belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos juntos e fazemos preces; e, como já dissemos, terminada a prece, são trazidos pão, vinho e água, e o presidente da assembléia eleva também ao céu preces e ações de graças com todas as suas forças, enquanto o povo responde dizendo amém; e se realiza a distribuição e repartição dos elementos sagrados, que por meio dos diáconos são enviaos também aos que não estão presentes.

As pessoas de posse e bem dispostas oferecem tudo o que desejam; o que foi recolhido é depositado junto ao presidente [da assembléia], que ajuda os órfãos, as viúvas, os doentes, os presos, os estrangeiros que estão de passagem; numa palavra, ele socorre todos os que precisam."



Tertuliano, Apologético, XXXIX, 5-6

“Presidem [nossas reuniões] anciãos de provada virtude, que alcançaram essa honra não por meio de pagamento, mas pelo comum testemunho de seus méritos: de fato, nenhuma coisa divina pode ser avaliada financeiramente. Embora entre nós exista um caixa comum, ele não é constituído por contribuições honorárias [de honoraria summa], como se fosse o preço de uma religião posta à venda. Cada um, segundo sua vontade e possibilidade, traz uma modesta contribuição mensal: e cada um oferece espontaneamente, ninguém é obrigado a contribuir. Esses são como que os depósitos da piedade comum. Daí não se tira dinheiro para banquetes, bebidas ou fúteis comilanças, mas para dar alimento e sepultura aos necessitados, para socorrer crianças sem meios de sustento e sem pais, e também servos anciãos e náufragos, bem como todos os que, em nome da religião professada e só porque pertencem à seita de Deus, são condenados às minas ou deportados para as ilhas ou abandonados nos cárceres.”


Pode-se ver nas passagens supracitadas o enorme abismo entre as práticas da Igreja Primitiva e os novos "vendilhões do Templo" que encontramos hoje em dia. Tertuliano em pleno século II d.C. já alertava seriamente para essa diferença:

"Embora entre nós exista um caixa comum, ele não é constituído por contribuições honorárias de honoraria summa], como se fosse o preço de uma religião posta à venda."


As contribuições eram, pois, voluntárias e nada havia de honorário[contribuição regular fixa tal como o dízimo]. Tertuliano tipicamente diferencia essas práticas, mostrando a liberdade da vida cristã, diferenciando-a de RELIGIÕES QUE ERAM POSTAS À VENDA.

Percebam que já no século II d.C. havia essa preocupação por parte dos cristãos - se diferenciar das "religiões postas à venda". Tanto Tertuliano como Justino são categóricos em dizer que o dinheiro era uzado para socorrer os mais necessitados: as viúvas, anciãos, crianças, encarcerados, etc.

Neste sentido, encontramos uma diferença brutal entre as práticas caridosas dos antigos cristãos para com a farsa herodiana e hipócrita da teologia da prosperidade hodierna. O que estas duas passagens citadas nos mostram se constitui na essência radical do cristianismo de raiz, calcado na sociabilidade do amor [ágape]. Já o que se vê hoje em muitas destas "igrejas" onde se cobra dízimo obrigatório se chama, em termos bem diretos, estelionato!

sábado, 18 de abril de 2009

O Julgamento de Deus

Tive a oportunidade de assistir hoje este pequeno video chamado The Trial of God.



Este video foi baseado em um livro chamado The Trial of God (O Julgamento de Deus), escrito por um Judeu chamado Elie Wiesel, sobrevivente de vários campos de concentração e ganhador do prêmio nobel em 1986. O livro é baseado em eventos testemunhados por Elie Wiesel quando esteve em Auschwitz.

Me interessei muito pela temática e resolvi encomendar o livro e conseguir a versão completa do video. Por enquanto, no meio tempo em que o todo não aparece, deixo pois a questão:

É possível julgar Deus?

terça-feira, 3 de março de 2009

Consilium quorundam episcoporum... A Fraude


Entrei sem o querer em uma controvérsia acerca do documento "Consilium quorundam episcoporum Bononiæ congregatorum quod de ratione stabiliendæ Romanæ ecclesiæ" elaborado no século XVI e supostamente atribuído a 3 bispos da Igreja Católica. Eu particularmente não sou católico, mas fico profundamente indignado quando determinadas coisas são manipuladas de forma desonesta e sem escrúpulos. Vários sites de apologética evangélica costumam divulgar este documento como uma prova histórica de que a igreja católica sugeria que seus fiéis não lessem o texto bíblico.

Aqui temos alguns exemplos desta utilização, dentre outros:

1 - Centro Apologético Cristão de Pesquisas CACP
2 - Jesus Site
3 - Sola Scriptura

Em seguida, o texto em tela:

5) O Papa Júlio III, preocupado com os rumos que sua Igreja estava tomando, ou seja, perdendo prestígio e poder diante do número cada vez maior de "irmãos separados" ou "'cristãos novos" ou "protestantes" (apesar dos massacres), convocou três bispos, dos mais sábios, e lhes confiou a missão de estudarem com cuidado o problema e apresentarem as sugestões cabíveis. Ao final dos estudos, aqueles bispos apresentaram ao papa um documento intitulado "DIREÇÕES CONCERNENTES AOS MÉTODOS ADEQUADOS A FORTIFICAR A IGREJA DE ROMA". Tal documento está arquivado na Biblioteca Imperial de Paris, fólio B, número 1088, vol. 2, págs 641 a 650. O trecho final desse ofício é o seguinte:

"Finalmente (de todos os conselhos que bem nos pareceu dar a Vossa Santidade, deixamos para o fim o mais necessário), nisto Vossa Santidade deve pôr toda a atenção e cuidado de permitir o menos que seja possível a leitura do Evangelho, especialmente na língua vulgar, em todos os países sob vossa jurisdição. O pouco dele que se costuma ler na Missa, deve ser o suficiente; mais do que isso não devia ser permitido a ninguém. Enquanto os homens estiverem satisfeitos com esse pouco, os interesses de Vossa Santidade prosperarão, mas quando eles desejarem mais, tais interesses declinarão. Em suma, aquele livro (a Bíblia) mais do que qualquer outro tem levantado contra nós esses torvelinhos e tempestades, dos quais meramente escapamos de ser totalmente destruídos. De fato, se alguém o examinar cuidadosamente, logo descobrirá o desacordo, e verá que a nossa doutrina é muitas vezes diferente da doutrina dele, e em outras até contrária a ele; o que se o povo souber, não deixará de clamar contra nós, e seremos objetos de escárnio e ódio geral. Portanto, é necessário tirar esse livro das vistas do povo, mas com grande cuidado, para não provocar tumultos" - Assinam Bolonie, 20 Octobis 1553 - Vicentius De Durtantibus, Egidus Falceta, Gerardus Busdragus."



Qualquer pessoa que tenha um mínimo de senso crítico, ao ler tais passagens, notará que há algo de errado. Imaginem 3 bispos católicos, dos mais sábios, em pleno século XVI sugerindo dessa forma ao Papa — permitir o mínimo a leitura do evangelho e dizendo que "aquele livro", mais do que qualquer outro, tem levantado contra a ICAR uma séria de tempestades!"? É o cúmulo do patético tal situação. Mas... não bastasse a óbvia sátira presente em tal texto, algumas pessoas conseguiram fazer a proeza de levar isso a sério.

Este meu post então é dedicado a elas. Em bom termo, para que fique claro - NUNCA HOUVE CONSELHO ALGUM DADO POR 3 BISPOS CATÓLICOS AO PAPA ESCRITO DESTA FORMA! Este texto em questão foi produzido por um ex-bispo católico e então pastor reformado Pietro Paolo Vergerio. O documento minuciosamente detalhado como estando na "Biblioteca Imperial de Paris, fólio B, número 1088, vol. 2, págs 641 a 650" pode ser encontrado na atual Biblioteca Nacional da França. Ele se encontra neste endereço aqui. É possível fazer o download do texto em francês. Ele pode ser baixado no seguinte ftp.

Ao final do texto principal, podemos encontrar o seguinte comentário em francês:


"Quoique n´étant que partiellement consacré à La lecture de la Bible, Le texte de Vergerio a été fréquemment utilisé dans lês polemiques entre protestants et catholiques sur CE sujet, même après que La critique avait été faite par de nombreux théologiens (Consulter La thèse de théologie protestante de A. Ch. Siegfried. – La Vie et lês travaux de P. P. Vergerio Strasbourg, 1857. In-8º, 39 p.).

Il ressort de ces études que P. P. Vergerio est véritablement l´autor Du “Consilium quorundam episcoporum” . dont Le texte figure dans sés ouvres completes publiées em 1563.

CE texte fait partie de sés nombreux opuscules publiés anonymement lors de as violence polemique avec La papauté. Il est donc impossible d´admettre que Le “Consilium quorundam episcoporum”... emane d´une quelconque autorité de l´Eglise catholique."



Eu o traduzi para o português da seguinte forma:

"Embora apenas parcialmente concernente à leitura da bíblia, o texto de Vergerio foi freqüentemente utilizado na polêmica entre protestantes e católicos sobre este assunto, mesmo após as críticas apresentadas por vários teólogos (Veja tese Teologia Protestante de A. Ch. Siegfried. - a vida e a obra do PP Vergerio Strasburgo, em 1857. In-8 º, p. 39).

Esses estudos revelaram que P. P. Vergerio é realmente o autor de "Consilium quorundam episcoporum.
O texto que aparece na sua obra completa publicada em 1563.

Este texto faz parte de suas numerosas brochuras publicadas anonimamente dada a violenta polêmica com o papado. É impossível admitir que o "Consilium quorundam episcoporum" ... emana de uma autoridade da Igreja Católica."


Como é possível perceber, a Biblioteca Nacional da França afirma que a verdadeira autoria do documento se refere ao protestante Pietro Paolo Vergerio, que o teria escrito em 1563. Para qualquer pessoa de bom senso, bastaria tal assertiva. Mas que tal checarmos mais? Será que este manuscrito, de fato, poderia ter sido atribuído aos supostos 3 bispos católicos em alguma outra biblioteca? Existiria somente este documento?

A resposta é não! O texto pode sim ser encontrado em outras bibliotecas ao longo do mundo (inclusive para download)! Vamos a elas:


1 - National Library of Australia - Austrália

2 - Cambridge University Library - Inglaterra.

3 - Newberry Library (Chicago) - EUA

4 - Biblioteca da Universidade Pablo d´Olavide (Sevilha) - Espanha

Nesta última biblioteca, podemos baixar o texto em Latim




Em suma, como pode ser devidamente averiguado - EM TODAS AS BIBLIOTECAS CONHECIDAS onde o texto "Consilium quorundam episcoporum Bononiæ congregatorum quod de ratione stabiliendæ Romanæ ecclesiæ" se encontra,

a autoria é atribuída ao ex-bispo e então reformador protestante:

PIETRO PAOLO VERGERIO,


o qual FORJOU E FRAUDOU um documento atribuindo-o a 3 bispos da Igreja Católica! É uma vergonha que tal fraude continue ainda hoje sendo utilizada para manipular a cabeça dos menos avisados.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Revertendo o Genesis - Parte I


Esta série (da qual sairão vários textos) tem como propósito um "repensar" sobre o Genesis a partir de pontos de vista diversos ("releituras"). Nesta "brincadeira" pretendo me utilizar de diversos recursos tais como análise literária, psicologia simbólica, lógica formal, sociologia das idéias, dentre outros instrumentos.

Neste primeiro texto, vamos brincar um pouco de psicologia.



De início, neste texto, não tomarei a narrativa na sua literalidade explícita, mas tentarei encontrar alguns sentidos não-vistos no texto e apresentar uma alternativa um tanto quanto herética à sua simbologia. Neste sentido, tomarei o texto a partir de seu caráter mitológico. A estória de Adão e Eva se refere a um mito de fundação. A idéia do pecado original faz parte deste mito no sentido de dar explicação ao problema do mal.

O "pecado original" é o nascimento e o nascimento da consciência do existir "no mundo". A busca pelo retorno ao Éden é a busca pelo retorno ao útero materno (ao calor, à proteção, à ausência da privação). A consciência da existência é também a consciência da solidão e da dor.

A busca por este retorno a algo que se perdeu é apenas a relutância em nos aceitarmos na nossa condição de adultez. O conhecimento da existência nos traz a responsabilidade pelos nossos atos e por aquilo que fazemos no mundo.

O retorno é impossível. O parto desta consciência já foi feito. O caminho rumo a Deus não é um retorno. É uma ida de busca ao Reino que está no meio de nós. É o abrir dos olhos para o sempre esteve e nunca foi perdido. A consciência do existir em solidão deve ser ultrapassada pela consciência do existir em Deus e no seu reino.

Ps - um insight a ser desenvolvido:


Adão e Eva tinham consciência do pecado?

Adão e Eva tinham consciência do pecado ANTES DE PROVAREM O FRUTO DA ÁRVORE DO CONHECIMENTO DO BEM E DO MAL?

 1 - Se não tinham consciência, então, de fato não pecaram pois não faziam real idéia do que estavam fazendo.

2 - Se tinham, então o conhecimento do bem e do mal já estava dentro deles e não foi adquirido após comerem o fruto.

sábado, 13 de dezembro de 2008

A descida de Jesus ao Inferno - Parte I


1Pedro 3:19-20 - "Morto na carne, foi vivificado no espírito, no qual foi também pregar aos espíritos em prisão, a saber, aos que foram incrédulos outrora, nos dias de Noé, quando Deus, em sua longanimidade, contemporizava com eles, enquanto Noé construía a arca, na qual poucas pessoas, isto é, oito, foram salvas por meio da água."

1Pedro 4:6 - "Eis por que o evangelho foi pregado também aos mortos, a fim de que sejam julgados como os homens na carne, mas vivam no espírito, segundo Deus."

2Pedro 2:4 - "Com efeito, se Deus não poupou os anjos que pecaram, mas lançou-os nos abismos tenebrosos do Tártaro, onde estão guardados à espera do Julgamento,[...]"

Judas 1:6 - "E, quanto aos anjos que não conservaram o seu principado, mas abandonaram a sua morada, guardou-os presos em cadeias eternas, sob as trevas, para o julgamento do grande Dia."



A temática da descida aos infernos é recorrente na literatura antiga. Encontramos passagens de conteúdo semelhante em diversas regiões e culturas religiosas. Desde a Grécia até o judaísmo, passando até pelo budismo, encontramos textos referentes à descida de um herói ou ser iluminado às profundezas no sentido de resgatar pessoas de lá.

No caso do cristianismo, pretendemos traçar um pouco das fontes que cercam a tradição da ida de Jesus ao inferno. A problemática nos mostra duas trilhas de abordagem. A primeira dela se encontra no Livro de Henoc. Neste texto, encontramos a detalhada estória de como os anjos foram trancafiados. É lá que encontraremos também a fonte que originou a concepção teológica mostrada em 2Pedro 2:4 e também em Judas 1:6.

Mateus 27:52-53 nos informa que no momento em que o véu do santuário se rasgou, abriram-se os túmulos e os corpos de alguns santos ressuscitaram. Mais à frente em 1Pedro 4,6 nos é dito que o evangelho foi pregado aos vivos e aos mortos, para que estes “condenados como homens a morrer corporalmente, vivessem espiritualmente como Deus”[Trad. Bíblia do Peregrino]. A profecia de Isaías 61:1 nos mostra o ungido anunciando a boa nova proclamando a liberdade aos cativos e à libertação aos que estão presos. Porém, tal passagem pode tão somente se referir aos presos em cadeias em vida. Por outro lado, tal passagem pode ser interpretada para as tais almas encarceradas mostradas em 1Pedro 3:19.

No imaginário medieval, temos que o chamado apócrifo Evangelho de Nicodemos foi de especial importância para o detalhamento da descida de Jesus aos infernos. No episódio narrado neste Evangelho, Jesus retira de lá os justos não-batizados, que antecederam a sua vinda à Terra, deixando por lá, no entanto, para até o final dos tempos os não-justos, tendo trancado o inferno com sete selos. Confiram comigo a passagem da libertação dos patriarcas no capítulo VIII:

"And the Lord stretching forth his hand, said: Come unto me, all ye my saints which bear mine image and my likeness. Ye that by the tree and the devil and death were condemned, behold now the devil and death condemned by the tree. And forthwith all the saints were gathered in one under the hand of the Lord."


O texto do apócrifo de Nicodemos contribui para o detalhamento e a vulgarização explicativa na Idade Média acerca da descida de Jesus aos infernos, fornecendo explicação suplementar ao que aconteceu ao futuro daqueles que ainda não tinham ainda escutado Jesus, mas que eram justos, como foi visto em 1Pedro, 4,6.

O importante é ressaltar que a passagem em Pedro nos mostra corretamente como se desenvolvia o imaginário judaico acerca do sheol. Neste lugar, subterrâneo, os seres apesar de mortos continuam tendo consciência, vagam por regiões lúgubres e são passíveis de pregação e entendimento. Neste sentido, uma passagem curiosa é a de Ezequiel 32, 31 que nos mostra o Faraó do Egito, tendo sido enviado ao sheol, vendo uma multidão de envergonhados trespassados pela espada, consolando-os.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Cosmos e o Pequeno Ponto Azul

Pode parecer estranho para aqueles que acompanham as batalhas entre evolucionistas e criacionistas (principalmente para estes últimos), mas eu realmente tive a minha fundante "compreensão" sobre Deus, assistindo a série COSMOS, conduzida por Carl Sagan em 1980. Eu me lembro de acordar aos domingos pela manhã e correr para a televisão - em Cosmos eu aprendi sobre filosofia, física, história, cosmologia e... Deus. Foi este meu contato com o infinito que me levou a sentir a enormidade da criação.

Não deixa de ser curioso este aprendizado teológico a partir da visão do ateu Sagan. Mas sinceramente posso dizer que devo muito à ele (inclusive meu plano adolescente de me tornar físico). Passados 28 anos, Cosmos continua ainda perfeitamente atual. Certamente, a astrofísica galgou alguns bons passos, bem como o conhecimento científico em geral. Mas a série é ainda muito válida. Me alegrei ao saber que a mesma está sendo repassada para os meninos através do canal governamental TV Escola. Isso me dá boas esperanças sobre os meus futuros alunos na universdade (muito boas, por sinal)!

Enfim... O video a seguir não faz parte de Cosmos. Mas é um dos projetos científicos empreendidos Sagan - como seria a Terra vista de longe? [de bem longe daqui] - A resposta é: The Pale Blue Dot (O pequeno ponto azul)

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A inscrição Samaliana e a separação da Alma

Não posso deixar de comentar a notícia publica pelo NY Times sobre a recente descoberta de uma Estela na região da Turquia onde fica a atual cidade de Zincirli (e onde ficava a antiga cidade de Sam´al), contendo uma inscrição mortuária semítica referente à separação da alma do corpo. Uma outra variante da notícia pode ser encontrado no PaleoJudaica. A notícia tem corrido o mundo dos biblioblogs (tais como o Balshanut e o NT Wrong, dentre outros), gerando variados comentários. Eu serei mais um destes.

Para aqueles que não sabem, a crença corrente entre os povos semíticos sobre o post-mortem era a de que a alma acompanhava o corpo em sua peregrinação para o mundo dos mortos (no caso dos israelitas e judaítas - o sheol)! A estela de Sam´al, no entanto, datada do século VIII a.C. nos fornece uma outra perspectiva e abre um novo campo de investigações sobre o assunto, fazendo com que tal tema seja melhor esquadrinhado. A estela encontrada é basicamente uma lápide mortuária, elaborada ainda no período em que o sepultado se encontrava ainda vivo.

O texto assim diz:

"Eu, Kuttamuwa, servo de [o rei] Panamuwa, sou o único que supervisionou a produção desta estela para mim mesmo enquanto ainda estava vivo. Eu a coloquei em uma eterna câmara [?] E criou um banquete, nesta câmara: um touro para [o deus] Hadad, um carneiro para [o deus] Shamash e um carneiro para a minha alma que se encontra neste estela ".


A tradução para o inglês foi feita pelo Dennis Pardee, um professor de Civilização e Linguagem do Oriente Próximo na Universidade de Chicago. De acordo com ele, a palavra usado por Kuttamuwa em sua estela para alma é a palavra aramaica nabsh. O alfabeto utilizado é o fenício, mas linguagem é aramaica. A representação pictórica da estela é também impressionante, dado que mostra um indivíduo barbado [Kuttamuwa, provavelmente] sentado em uma cadeira se alimentando de pão e tomando vinho. Tal representação nos dá indicações sobre a concepção post-mortem naquela região e contexto histórico. Mais impressionante ainda é o fato de que Kuttamawa afirmar que a sua alma se separou do corpo e agora reside ali mesmo na pedra da estela! O autor da estela faz referência a duas divindades: Hadad e Shamash. O primeiro é o conhecido deus da tempestade, Baal. Já o segundo é o deus semítico do sol.

Tal descoberta é realmente desconcertante para as até então concepções sobre o post-mortem entre os semíticos. A concepção judaica antiga, por exemplo, era a de que os indivíduos, após sua morte, desciam ao reino dos mortos e dos túmulos e ficavam por lá em um estado enfraquecido de existência (perambulando desnorteados ou semi-adormecidos). A idéia de uma vida boa no post-mortem entre os semitas, regada a boa comida e vinho, é realmente um achado inusitado. Mais além, nos dá informações sobre a separação entre corpo e a alma.

Muito do que se fala, por exemplo, sobre as concepções cristãs sobre o post-mortem se referem à hipótese de uma incorporação de conceitos platônicos, quer nas primeiras gerações de cristãos, através da junção entre a filosofia grega e as escrituras, notadamente nos tratados de apologética e posteriores tratados teológicos, quer no próprio repensar conceitual judaico no pós-exilio babilônico, desenvolvido notadamente a partir do século III a.C. sobre as idéias de imortalidade da alma e da ressurreição dos corpos. Supostamente, a helenização advinda do império alexandrino e seus sucessores selêucidas e ptolomeus teria atuado como um melting pot cultural, facilitando a incorporação dos conceitos platônicos sobre a alma.

A estela samaliana introduz todo um novo rumo na pesquisa sobre tais conceitos. Tudo terá que ser revisto, a partir de agora. Encontramos ali, três séculos antes de Platão, em uma cultura tipicamente semítica, a idéia desconcertante de que a alma de um morto se incorporou a uma tumba e lá vive em uma condição de abundância, separada de seu corpo original. É importante frisarmos que aparentemente há ali nesta cidade de Sam´al uma certa herança cananéia misturada com a cultura hitita, por fim sob domínio assírio.

Ps 1 - Uma imagem em alta resolução da estela pode ser encontrada aqui

Ps 2 - A apresentação oficial sobre os dados de Zincirli, feita por Dennis Pardee e David Schloen, acaba de ser comentada pelo blog Biblia Hebraica.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Jesus Cansado & Changing the Subject - 2

Depois da elaboração do post sobre o poema do Jarbas Medeiros (logo abaixo), chegou a hora de uma pequena reflexão analítica sobre o mesmo. O texto com um hoje muito trivial "encontrei Jesus". Tal expressão é para lá de corriqueira no universo gospel. O que de fato, não é tão corriqueiro hoje em dia, é uma maior reflexão sobre este "encontrar Jesus". O texto do poema, no entanto, nos choca inicialmente com a informação de que Jesus foi encontrado logo ali na esquina. Não foi em um Templo, não foi em uma Igreja, não foi e um culto pentecostal. Foi ali... em uma esquina... nas viradas [de rumo] nossas de cada dia.

Mais além e mais um choque - Jesus está velho e cansado! Mas ora, como assim... "velho e cansado? Por acaso Jesus ficou velho ou por acaso ele se cansa?" Então nisso aparece o estranhamento e a surpresa. Como poderia suceder tal coisa, questionamos nós? O texto, no entanto, prossegue ampliando o nosso estranhamento - o cansaço de Jesus chegou a um ponto no qual ele já não aguenta mais... Tantas coisas, tantos convites e afazeres... não há tempo... não há mais tempo.

Então - mais uma etapa no texto - e o sujeito agora muda - o personagem é Jesus Chaves Monteiro, velho amigo de infância do autor. "Aaaahhh... ufah! Agora sim! Tudo explicado! Este Jesus não é o JESUS! Aaahh bom!", esclamamos com um certo alívio, após a contatação.

Mas será mesmo? Será que de fato ocorreu a alteração do sujeito da estória?

O poema então reverte novamente - aquele Jesus velho e cansado - mudado pelo tempo - na verdade não mudou. Ele está ali junto do autor do poema. E mais - ele se tornou, de certa forma, um nosso companheiro: "subitamente reencontrado... fraterno, generoso, bom, solidário e incondicional Jesus."


A mudança do sujeito do texto não se fez apenas uma vez. Ele se fez por duas vezes. E mais... ele se fez em múltiplas vezes! Em cada leitura que cada um de nós realizou... Lá estava Jesus ao nosso lado! E nós estávamos com ele - conversando e perguntando - em um estranhamento fraterno e incondicional!

E na balada deste encontro, eu vou também de Christina Pluhar, une âme italienne.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O Jesus Cansado & Changing the Subject

Me surpreendi hoje ao encontrar essa fotografia do mexicano Manuel Avarez Bravo, a qual reeditei, mostrando um Jesus sentado, pensativo e cansado. Isso me lembrou um poema de um dos grandes mestres que tive, o professor Jarbas Medeiros. O poema se chama "Changing the Subject" e assim diz:

Fim de tarde
começo de noite
eu encontrei Jesus
na esquina, junto
à padaria
e à banca de jornal
"Como vai?", perguntei
"Cansado", respondeu
"Já não aguento mais!",
lamentou. Envelhecido,
cabelos brancos, rugas,
olhar distante, mãos trêmulas,
ele silenciou.
Despedi-me: "Apareça",
acrescentei. "— É, os amigos
me pedem sempre
mas não acho tempo
para nada" concluiu.
Era Jesus Chaves
Monteiro, velho conhecido
de infância
tantos rumos tomara
que dele já me
esquecera
Mas ali estava subitamente
reencontrado
fraterno, generoso, bom
solidário e
incondicional Jesus.


Agora, me diga, caro leitor - a que te remete esta foto e este texto? Há um Jesus cansado dentro de nós? Há também um Jesus cansado de nós? Um Jesus que se senta e ora por nós, meio desconsolado? O Jesus em nós também se senta e nos olhos com olhar cabisbaixo? Quais são as leituras possíveis deste texto e desta imagem? O que me diz?

sábado, 8 de novembro de 2008

Obama e a Tolerância Religiosa

Eu não pretendo entulhar este blog com referências à política do próximo governo dos EUA, dado que este não é o propósito do AD CUMMULUS. No entanto, a minha amiga Adriana Neumann do blog Adrialactaest fez com eu tivesse acesso a este discurso de Barack Obama postado no Youtube. Confesso que vi o discurso e não pude deixar de postar o video por aqui.

Mas por quê eu não poderia deixar de postar, perguntaria o leitor? Por que definitivamente eu concordo com tudo quanto foi dito neste discurso. Mais além — tal conteúdo ali mostrado tem sido a minha postura com relação à religião e à política desde que comecei a refletir sobre tais coisas na adolescência. Com isso, eu sinceramente tenho a esperança de que o discurso fundamentalista neo-con do christian belt norte-americano perca seu espaço. E que o respeito e a tolerância religiosa voltem a graçar como elementos fundantes de uma sociedade que se quer democrática e plural.

domingo, 2 de novembro de 2008

O Paulo de Lucas no Areópago


Uma passagem interessante do texto dos Atos dos Apóstolos é quando Paulo [de acordo com Lucas] pronuncia um discurso aos gregos no Areópago (Atos 17,22-34). A este respeito, devemos fazer algumas breves considerações. O discurso colocado na boca de Paulo por Lucas é muito mais um discurso lucano do que um real discurso paulino. A concepção da criatura humana vista nas cartas autênticas de Paulo é a condição do decaimento e da depravação humana. Poderíamos sintetizar tal teologia a partir da emblemática passagem em Romanos 3,23: "...sendo que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus." Por outro lado, a concepção da criatura humana em Paulo [segundo Lucas] é de um ser voltado para a busca da divindade. Além disso, o próprio ser humano, como um todo, partilha da essência divina. Obviamente, as duas concepções antropológicas são irreconciliáveis.

O material lucano deve ser encarado prioritariamente a partir de seu propósito apologético, qual seja – o de transmitir a um público gentio a trajetória de uma Igreja unificada, evitando-se e minimizando a idéia de conflitos de tal Igreja para com o Império Romano. É possível encontrar ecos de eventos e tradições antigas ligadas aos autores dos discursos encontrados em Lucas. Por outro lado, tais discursos só podem ser devidamente interpretados a partir da proposta apologética editorial do autor lucano. Como mencionam Cláudio Moreschini e Enrico Norelli em seu História da Literatura Cristã Antiga grega e Latina:

“Os discursos dos Atos são importantes para o estudo do pensamento do autor; [b]as convenções historiográficas antigas permitiam por na boca dos personagens históricos discursos que eles não tinha realmente pronunciado, mas que serviam para iluminar o significado da situação.”


[1995, p.98] Helmut Koester em seu Introdução ao Novo Testamento (vol. 2, 2005, p.340) concorda com Moreschini e Norelli quanto à inserção de discursos compostos pelo autor na boca de personagens históricos retratados como sendo uma técnica da historiografia antiga. No entanto, ressalta, que a mesma técnica era usada por autores de romances e epopéias, de tal forma a destacar o significado de eventos importantes.

De qualquer forma, o objetivo principal deste post é o de mostrar algumas fontes literárias utilizadas por Lucas para elaborar o discurso no Aerópago. Um item marcante é o versículo 28 que assim diz:

"Por que somos também da sua raça"


Tal passagem é tirada da obra Fenômenos de Arato.

From Zeus let us begin; him do we mortals never leave unnamed; full of Zeus are all the streets and all the market-places of men; full is the sea and the havens thereof; always we all have need of Zeus. For we are also his offspring; and he in his kindness unto men giveth favourable signs and wakeneth the people to work, reminding them of livelihood.



Uma passagem de conteúdo similar pode ser também encontrada n o textoHino a Zeus, escrito pelo estóico grego Cleanto.

Assim temos:

On earth's broad ways that wander to and fro,
Bearing your image wheresoever we go.


De fato, se observarmos estas duas obras, encontraremos os elementos principais que foram incorporados por Lucas para elaborar o discurso de Paulo aos gregos.

sábado, 1 de novembro de 2008

Pequenos Insights sobre o termo “Filho de Deus”


Coloquei aqui algumas passagens e citações ligadas aos procedimentos de coroação no antigo Israel e as suas ligações com o “Filho de Deus”. A partir destes indicadores iniciais, é possível suscitar uma melhor investigação sobre a atribuição desta expressão a Jesus por parte dos evangelistas sinóticos. A nosso ver, tal expressão possuía uma conotação basicamente ligada à realeza messiânica. Por outro lado, creio ser possível encontrar uma atribuição escatológica do termo utilizada como referência a seres angelicais a partir do século III a.C.


“Lang (2002) propõe que, no ritual de coroação judaica, considerava-se que o rei ascendia ritualmente ao céu, onde, depois do seu nascimento como filho de Deus, ele se reunia na companhia de outros “filhos de Deus”, colocados à direita de Deus, e recebia poder divino. Assim o rei é convidado pelo oráculo divino, cujo sacerdote talvez dissesse: “Senta-te à minha direita” (Salmos 110,1)”


SMITH, Mark. O memorial de Deus: história, memória e a experiência do divino no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 2006, p. 96. A referência é ao livro The Hebrew God: Portrait of an Ancient Deity de Bernhard Lang.

Salmo 110, 1:
“Oráculo de Iahweh ao meu senhor: ‘Senta-te à minha direita, até que eu ponha teus inimigos como escabelo de teus pés.’”



“Nas antigas cerimônias de coroação de Israel, o rei era ungido para mostrar o favor de Deus, enquanto um coral, entoando um dos salmos rituais, proclamava que, ao ser coroado, o rei se tornava representante de Deus, seu ‘filho’ humano. Portanto, ao iniciar seu evangelho dizendo que ‘este é o evangelho de Jesus, o messias, o filho de Deus, Marcos está anunciando que Deus escolheu Jesus para ser o futuro rei de Israel.”


PAGELS, Elaine. Além de toda crença: o evangelho desconhecido de Tomé. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 50-51.

Tal assertiva de Pagels é baseada no Salmo 2,7:
“Vou proclamar o decreto de Iahweh: Ele me disse: ‘Tu és meu filho, eu hoje te gerei.’”
e o livro de Raymond Brown – The Birth of Messiah.





Manuscrito Qumran 4Q246 [Apocalipse Aramaico]:

“[x]será grande sobre a terra. [Oh Rei, todos (povos) haverão de]fazer[paz], e todos haverão de servi-[lo. Ele será chamado o filho] do [G]rande [Deus], e por este nome será aclamado (como) o Filho de Deus, e o chamarão Filho do Altíssimo.”


Texto segundo SHANKS, Hershel. Um texto inédito dos manuscritos do Mar Morto paralelo à narrativa de infância, de Lucas. In: SHANKS, Hershel (org.) Para compreender os manuscritos do Mar Morto. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 213.

Lucas 1,32-35 [Bíblia de Jerusalém]:

Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim. [...] Por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus.”

A análise de 4q246 tem despertado várias controvérsias no sentido da identificação do protagonista do texto. Flusser e Milik propõe uma interpretação negativa do personagem associando-o a um governante iníquo. Já outros intérpretes associam tendem a associar tal figura a uma liderança messiânica, tecendo correlatos com o texto de Daniel. O artigo de Edward Cook introduz um terceiro texto na análise comparativa – “As profecias Acadianas”, um espécie de manifesto político zoroastrista.

De qualquer forma, o exemplo retirado do manuscrito 4Q246 nos fornece um novo elemento da associação entre o termo “Filho de Deus” com uma realeza de caráter humano. Garcia Martinez, no entanto, de acordo com Cook, postula que tal protagonista poderia ser o arcanjo Miguel.


Melquisedec na estória

Vamos observar agora o núcleo do texto de 11QMelquisedec (11Q13) também encontrado em Qumran:

(...) 6 (...)E isto suce[derá] 7 na semana primeira do jubileu que segue os no[ve] jubileus. E o dia [das expiaçõ]es é o final do jubileu décimo 8 no qual se expiará por todos os filhos de [Deus] e pelos homens do lote de Melquisedec. [E nas alturas] ele se pronun[ciará a seu] favor segundo os seus lotes; pois 9 é o tempo do “ano de graça” para Melquisedec, para exal[tar no pro]cesso os santos de Deus pelo domínio do juízo, como está escrito 10 sobre ele nos cânticos de Davi que diz: “Elohim se ergue na assem[bléia de Deus], em meio aos deuses julga”. E sobre ele diz: “Sobre ela 11 retorna às alturas, Deus julgará os povos”. E o que di[z: “Até quando jul]gareis injustamente e guardareis consideração aos malvados? Selah.”

12 Sua interpretação concerne a Belial e aos espíritos de seu lote, que foram rebeldes [todos eles] apartando-se dos mandamentos de Deus [para cometer o mal]. 13 Porém Melquisedec executará a vingança dos juízos de Deus [nesse dia, e eles serão libertados das mãos] de Belial e das mãos de todos os es[píritos de seu lote]. 14 Em sua ajuda (virão) todos “os deuses de [justiça”; ele] é que[m prevalecerá nesse dia sobre] todos os filhos de Deus, e ele pre[sidirá a assembléia] 15 esta. Este é o dia d[a paz, do qual] falou...


Estaria, pois, tal texto estabelecendo uma ligação com o messias davídico? Aparentemente não. Outros textos da yahad de Qumran ligam Melquisedec com Miguel Arcanjo, como um anjo superior. Os Cantos do Sacrifício do Shabbat sugerem tal possibilidade. Tal Cântico inclusive foi também encontrado na fortaleza de Massada e é um dos pontos que vão contra a idéia de que os textos de Qumran tenham sido eminentemente compostos lá. Já no Pergaminho da Guerra (1QM 13:10; 16:6-8; 17:7), Melquisedec pode ser visto como Miguel. De qualquer forma, devemos atentar no texto em questão para o fato dos "filhos de Deus" se assentarem ao lado de Melquisec no momento do julgamento escatológico. Neste sentido, ligando Melquisedec a uma figura angélica, teríamos a presença de outros anos. Por outro lado, considerando-o como uma liderança sacerdotal atemporal, teríamos outros seres, talvez da mesma ordem, participando deste julgamento.

No entanto, devemos lembrar de duas coisas concernentes ao Novo Testamento:

Em Hebreus, Jesus pertence à Ordem de Melquisedec, mas não é o próprio. De qualquer forma, neste texto Jesus aparece como um ser poderoso, atemporal de perfil sacerdotal. Neste sentido, para o autor de Hebreus, o caráter de messias-rei não é tão ressaltado. A referência se dá muito mais no sentido do messias-sacerdote.

domingo, 26 de outubro de 2008

Resolvi ser menos ambicioso, obviamente graças a uma decente reflexão e o salutar bom senso. Toda essa temática é por demasiado complexa para se resolver em um mero post de blog. Por isso, vamos aos poucos, uma pedrinha de cada vez. Resolvi iniciar esta série de apocalíptioca, fazendo alguns pequenos textos, breves comentários e análises. Com o andar do tempo iremos construir algo que poderíamos chamar de BIG PICTURE.

Então, humildemente vamos começar pelo trabalho de Florentino Garcia Martnez, intitulado Messianic Hopes in the Qumran Writings. Um outro trabalho interessante desta coletânea é o texto de Dana Pike intitulado: Is the Plan of Salvation Attested in the Dead Sea Scrolls?
  • Recent Posts

  • Text Widget

    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
  • Blogger Templates