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sábado, 12 de setembro de 2015

A Morte do Menino Aylan Kurdi e o Problema do Mal no Cristianismo (Primitivo)


Massacre dos Inocentes, Nicolas Poussin (1626),  Wikipedia Commons
Causou extrema comoção, no mundo inteiro, o caso do menino Aylan Kurdi, de 3 anos de idade, que junto com seu irmão Galip (5 anos), e sua mãe Rehan morreram em um naufrágio de uma barca de 16 refugiados sírios, que, da Turquia, tentavam chegar a Ilha de Kos, na Grécia. O corpo de Aylan foi encontrado pela polícia turca, nas praias do Mar Egeu. Sua foto foi veiculada em todo mundo (e que não ousamos reproduzir aqui), comovendo e chamando a atenção para a profunda crise de refugiados na Europa, onde 2500 pessoas morreram, a maioria afogada no Mediterrâneo.

Aylan vivia na cidade de Kobani, perto da fronteira da Síria e Turquia, e sua família fugia dos confrontos entre as milícias curdas e o Estado Islâmico. A tia de Aylan, Teema Kurdi, vive em Vancouver (Canadá) e a família buscava chegar a União Européia para tentar asilo junto as autoridades canadenses, uma vez que solicitação anterior feita na Turquia havia sido indefirida.

Aylan é simbolo também de outra tragédia. Quando ele nasceu, a Siria era governada pelo regime ditatorial de Bashar El Assad, quando foi sacudida pela primavera árabe. O movimento, inicialmente pacífico, foi reprimido durante pelo ditador, e se transformou em guerra civil aberta. As potências ocidentais, assim como a Turquia e a Arábia Saudita interferiram no conflito com o objetivo de fortalecer rebeldes sunitas "moderados", enquanto o Irã, a mílicia Hezbollah do Libano, bem como a Rússia apoiaram a manutenção do atual governo Sirio. O resultado, além de 220 mil mortos, a quase destruição da infraestrutura do país, milhões de refugiados pelos países vizinhos, e a ruína de vidas como a do menino Aylan, privado da possibilidade de crescer. Entre os vários grupos rebeldes, se sobressaem a Frente Al Nusra, "franquia" local do Al Quaeda, e o mais radical e o tristemente célebre Estado Islâmico. O conflito é visto como de difícil resolução, houve todos os tipos de propostas, desde uma cooperação com jihadistas mais moderados para derrubada de Assad, até, na prática, os que propõem se aliar a eleEm suma, os interesses e jogos de poder de ditadores e potências internacionais arruinaram os sonhos e a vidas de milhões de pessoas. A morte de Aylan Kurdi é a face visível de mais um "massacre dos inocentes", agora em pleno século XXI.

Além das considerações geopolíticas, há o lado humano. O sofrimento do pai de Aylan, Abdullah Kurdi, ao não poder evitar a ruína de seu mundo e a morte de sua família. E faz questionar o sofrimento. E o mal no mundo. Como na recente capa da revista Veja, citando Santo Agostinho "Sendo Deus bom, fez todas as coisas boas, de onde então vem o mal?"  (Confissões Livro 7.5.7) .

Uma resposta, bastante sucinta, para o problema tem sido "Não há Deus", pois se existisse, não haveria o mal. Não entraremos nesse debate. No entanto, vamos utilizar o trabalho de um estudioso que não acredita em Deus, para  trazer luz a como os crentes lutaram para responder essas questões, e que moldaram de forma fundamental o cristianismo.

Bart Erhman, o estudioso de quem falamos, Professor da Universidade da Carolina do Norte em Chappel Hill.

Em seu livro, Evangelhos Perdidos, Erhman analisa a explicação do sofrimento na teologia bíblica tradicional do Velho Testamento, que ele chama de Profética [1]:

"O que deveriam pensar os teólogos e outros, então, quando em tempos posteriores o povo de Israel sofreu, sem a interferência de Deus? Muito da Bíblia Hebraica  tem haver com essa questão. A resposta padrão vem nos escritos dos profetas hebreus, como Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias e Amós. Para esses escritores, Israel sofre reveses militares, políticos, econômicos e sociais porque o povo pecou contra Deus e esta sendo punido por isso. Quando porém eles retornarem aos caminhos de Deus, seguindo as orientações para a vida comunal e a adoração que lhes haviam sido dadas por Moisés na Lei, Deus condescenderia e faria com que voltasse a ter uma vida próspera e feliz"[1]
No entanto, a história bíblica traz momentos onde os justos sofreram justamente por serem justos. O profeta Elias se questiona "porque os filhos de Israel deixaram a tua aliança, derrubaram os teus altares e mataram seus profetas a espada, e só eu fiquei, e buscam minha vida para me tirarem" (I Reis 19:10). Da mesma forma, o justo Jó, perde seus bens, sua família e sua saúde, e seus amigos o questionam, achando que havia algum pecado oculto que causava o seu sofrimento, mas a retidão de Jó é reconhecida pelo próprio Senhor. 

Erhman desenvolve em seguida o locus histórico de uma outra Teologia do Sofrimento, a Apocaliptica:

O sentido apocaliptico judaico surgiu em um contexto de extremo sofrimento, cerca de duzentos anos antes de Jesus, quando o governante sírio que tinha o controle da Palestina, a patria judaica, perseguiu os judeus extamente por serem judeus. Por exemplo, a circunsição - o sinal central da união pactual com Deus - foi proibida sob pena de morte. Claramente , para muitos pensadores judeus, esse tipo de sofrimento, contrário a clássica visão dos profetas, não poderia vir de Deus, uma vez que era o resultado direto de tentar segui-lo. Deveria haver alguma outra razão para o sofrimento, e assim algum outro agente responsável por ele (...) Além disso, havia forças cosmicas no mundo, forças malignas com o Diabo à frente, que estavam afligindo o povo de Deus. De acordo com essa perspectiva, ainda era o criador deste mundo e seria seu redentor final. Mas, no momento, as forças do mal haviam sido libertadas e estavam lançando devastação sobre o povo de Deus. Os apocalipticos judaícos, porém, sustentavam que Deus logo interviria e destruiria essas forças do mal em uma demonstração cataclísmica de poder, destruindo todos que se lhe opussessem, incluindo os reinos que estavam causando sofrimento a seu povo. Ele traria então um novo reino, no qual não haveria mais pecado, sofrimento, mal ou morte.[1]


Estudiosos como o Professor John J. Collins, de Yalle, citando o trabalho de Paul D Hanson,  (Harvard Divinity School), observam que a profecia pós-exílica, no final do século VI AC (cerca de 500 BC), encontrada em autores como Ageu e Zacarias já trazia as sementes do apocaliptismo. Collins avalia também a possível contribuição de precedentes babilônicos e do zoroatrismo persa, no entanto, o genêro se desenvolve plenamente e encontra seu apogeu no período helenístico e romano[2].


No Novo Testamento, o anseio pela intervenção direta do Senhor na história é amplamente atestado, o Apóstolo Paulo, no documento cristão mais antigo, sua carta aos Tessalonisseences (50 DC), escreve "Pois, dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá do céu, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois disso, os que estivermos vivos seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre.(I Tessalonissences, 4:16-17). Paulo deixa claro que os cristãos não deveriam ser ignorantes nesses ensinos "para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança"(v.13).


No entanto, a primeira e segunda geração de cristãos repousou, e o Senhor não voltou, e uma série de eventos perturbadores atingiram as comunidades de judeus e gentios cristãos, tais como a Perseguição de Nero (64 DC), e a destruição de Jerusalém e do Templo (70 DC), a Revolta de Bar Kochkba (132-135 DC), colocando novos desafios a sua fé. Neste contexto, surge uma nova interpretação, radical, da origem e aparente prevalência do mal no mundo. Continua o Professor Bart Erhman:

Entretanto, se essas visões [profética e apocaliptica] são qeustionadas pelas realidades presentes do sofrimento no mundo, o que acontece? Talvez, na verdade, a suposição toda esteja errada. Talvez esse mundo não seja a criação de um Deus único e verdadeiro. Talvez o sofrimento não esteja acontecendo como punição desse Deus ou apesar de sua bondade. Talvez o Deus deste mundo não seja bom. Talvez ele esteja causando sofrimento não porque seja bom e queira que as pessoas compartilhem sua bondade, mas porque seja maligno, ignorante ou inferior, querendo que as pessoas sofram ou não se importando se sofrem, ou talvez ele não possa fazer nada quanto a isso. Mas, se isso é verdade, então o Deus deste mundo não é o Deus único e verdadeiro. Deve haver um Deus maioracima disso tudo, que não criou este mundo. Nesse entendimento, o mundo material em si - a existência material em todas as suas formas - é inferior ou maligno na melhor das hipóteses e assim também é o Deus que o criou. Deve haver um Deus não material, não conectado com este mundo, acima do Deus criador do Velho Testamento, um Deus que nem criou este mundonem lhe trouxe sofrimento, que quer aliviar seu povo do sofrimento - não redimindo este mundo, mas libertando dele as pessoas, livrando-as do enclausuramento na existência material.[3]

"Jesus Chorou", James Tissot, 1886, Brooklin Museum, via Wikipedia Commons

Essa é que o Professor Erhman chama de visão "gnostica", compartilhada por vários grupos que foram associados a figuras como Simão o Mago, CerintoBasilides, o influente Valentino, e seus seguidores Marcus, Ptolomeu, Heracleon e Bardaisan. Posteriormente, encontraria sua expressão mais duradoura com Mani. Sua visão geral influenciou ainda outros pensadores,  como Marcião de Sinope


O que esses teologos e pensadores primitivos propunham é quase a expansão da "Hipótese" de Carlos Drummond de Andrade:

E se Deus é canhoto e criou com a mão esquerda?Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.
O correspondente ao "deus canhoto" de Drummond era o demiurgo,  a figura postulada por Platão ( 428-348 AC) como o "artesão" que criou o mundo. Como explica o Professor Donald Zeyl (Universidade de Rhode Island), na Enciclopédia Stanford de Filosofia, Em seu dialogo Timeu, Platão propõe:

The universe, he proposes, is the product of rational, purposive, and beneficent agency. It is the handwork of a divine Craftsman (“Demiurge,”dêmiourgos, 28a6), who, imitating an unchanging and eternal model, imposes mathematical order on a preexistent chaos to generate the ordered universe (kosmos). (Tradução) O universo, ele propõe, é o produto de um agente racional, com propósitos, e benigno. É moldado´pelo trabalho de um divino artesão (Demiurgo, "demiourgos", 28a6), que, pela imitação de um modelo imutável e eterno, impõe ordem matemático ao caos preexistente, gerando o universo ordenado (Kosmos).[4]
Assim, o Demiurgo não era, a princípio, mau. O Gnosticismo porém o reinterpreta, como explica o Professor Edward Moore, o Demiurgo, para os gnósticos:

According to Gnostic mythology (in general) We, humanity, are existing in this realm because a member of the transcendent godhead, Sophia (Wisdom), desired to actualize her innate potential for creativity without the approval of her partner or divine consort. Her hubris, in this regard, stood forth as raw materiality, and her desire, which was for the mysterious ineffable Father, manifested itself as Ialdabaoth, the Demiurge, that renegade principle of generation and corruption which, by its unalterable necessity, brings all beings to life, for a brief moment, and then to death for eternity. However, since even the Pleroma itself is not, according to the Gnostics, exempt from desire or passion, there must come into play a salvific event or savior—that is, Christ, the Logos, the "messenger," etc.—who descends to the material realm for the purpose of negating all passion, and raising the innocent human "sparks" (which fell from Sophia) back up to the Pleroma (Tradução) De acordo com a mitologia gnostica (genericamente) Nós, a humanidade, existimos no reino material, porque um membro do conselho divino, Sofia (Sabedoria), desejou concretizar seu potencial criativo inato, sem aprovação do seu consorte ou parceiro divino. Sua hubris (presunção), neste particular, resultou em materialidade bruta, e seu desejo, que era para o misterioso Pai Inefável, se manifestou como Ialdabaoth, o Demiurgo, o principio generativo, renegado e corrupto, que tem a constante necessidade de trazer todas as coisas a vida, por um breve momento, para que depois morram eternamente. Entretanto, como até mesmo o Pleroma não é, de acordo com os Gnósticos, isenta de desejo e paixão, há de existir um evento salvífico ou Salvador - que é, Cristo, o Logos, o mensageiro, etc - que desce ao mundo material com o propósito de anular todas as paixões, e manifestando as centelhas divinas na humanidade inocente (provenientes da queda de Sofia), de volta a Pleroma.[5]
Como já discutimos aqui no adcummulus anteriormente ensinavam os mestres gnósticos, O Logos, Cristo, desceu do seio divino e passando através dos vários níveis celestiais, chegou a terra e tomou forma humana, aparecndo nos tempos de Pôncio Pilatos como Jesus Cristo. Para alguns gnósticos Jesus apenas parecia ter um corpo humano, tal como os anjos que apareceram a Abraão. A maioria porém acreditava que o Espirito Divino Cristo se apossou de um homem chamado Jesus, e por meio dele realizou feitos maravilhosos e extraordinários. Assim, Simão, o Mago, segundo Irineu  de Lyon ensinava que apareceu como Filho aos Judeus e como Pai aos Samaritanos, tendo resolvido vir ao mundo - porque os anjos estavam governando-o mal, servindo a suas próprias paixões - para acertar as coisas, e alterou sua forma em sua descida, assemelhando-se aos principados e potestades por onde passou, e aos homens apareceu em forma humana, embora não fosse humano, que acreditaram que ele sofreu na Judeia, embora não tenha sofrido (Irineu, Contra Todas as Heresias Livro I: Capitulo 23).   Cerinto, segundo Hipolito de Roma, " afirma que Jesus não nasceu de uma virgem, mas da união natural de José e Maria, como o resto da humanidade; mas que ele excedia em justiça, prudência e compreensão todos os outros homens. E Cerinto afirma também que após o batismo de Jesus, Cristo veio a terra em forma de pomba e desceu sobre ele, vindo da parte da Soberania que habita acima do circulo da existência, e depois disso ele passou a pregar o Pai, que não era conhecido, e realizar milagres. E ele declara que no fim de sua paixão, Cristo o deixou, uma vez que era incapaz de sofrer, sendo um Espírito da parte do Senhor" (Hipolito, Refutação de todas as Heresias, Livro X, Capítulo 17). Também Basilides pregava que "o Pai não nascido e sem nome, (...) enviou seu próprio primogênito Nous (aquele que é chamado Cristo) para libertar, aqueles que acreditam nele, do Demiurgo criador do mundo. Ele apareceu então, na Terra em forma humana, para nações representadas por aquelas potestades, e realizou milagres. No entanto ele mesmo não sofreu a morte, mas Simão, um home de Cirene, sendo chamado, levou a cruz em seu lugar; e foi transfigurado para parecer com ele, para que acreditassem que ele era Jesus, e o crucificassem, por ignorância e erro, enquanto Jesus recebeu a forma de Simão, e estando de longe, ria deles" (Irineu , I:24, seção 4). Por fm, Marcion rejeitava as especulações e emanações divinas postuladas pelos gnósticos, e afirmava simplesmente que existia um Deus mau e vingativo, retratado nas escrituras judaicas, e criou o mundo material, e um Deus amoroso e compassivo, totalmente outro e desconhecido, que enviou Jesus Cristo, um ser celestial que vem ao mundo em semelhança de carne, em forma humana. A julgar pela quantidade de tinta que os pais da igreja utilizaram para refuta-lo, Marcião foi o mais temível adversário da proto-ortodoxia. [6] 

O gnosticismo porém não conseguiu ser predominante na Igreja primitiva. A visão gnóstica tinha vulnerabilidades, e elas foram rapidamente exploradas, sem pena, pelos Pais da Igreja. Pois se Cristo era de outra natureza, e só parecia ser humano, ou se sua união com elemento humano era apenas transitória, como poderia ter realmente experimentado o sofrimento, dor e morte, e se não sofreu dor e morreu, como poderia entender a condição humana? Pois se a condição humana é indigna, desonrosa, e sofredora não deveria o Salvador participar desta realidade para nos redimir? "Portanto, visto que os filhos compartilham de carne e sangue, Ele também participou dessa mesma condição humana, para que pela morte destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o Diabo" (Hebreus 2:14). Tertuliano, usando todo os recursos da retórica, faz uma poderosa crítica a Marcião, em particular, e aos gnósticos doceticos e separacionistas em geral.
Uma vez que, portanto, você não rejeitam a hipótese de um corpo como impossível ou como perigosa para o caráter de Deus, repudiam e censuram-no como indigno dele. Vejamos agora, começando a partir do próprio nascimento,  contra a imundície dos elementos geradores dentro do útero, a sujeira dos fluídos e do sangue, do crescimento desta carne que durante nove meses deve tirar seu alimento daquele lodo . Descreve-nos este ventre, que cresce dia a dia, pesado,atormentado, mesmo durante o sono inquieto, inconstante em seus sentimentos de desagrado e desejo. E agora igualmente contra a própria vergonha de uma mulher em trabalho de parto, que, no entanto, deve sim ser homenageado em relação aos perigos que enfrenta, e considerado sagrado em relação a (o mistério da) natureza. Claro que você também estão horrorizados com a criança, que é derramada na vida com os embaraços que o acompanham desde o ventre; Da mesma forma que você, é claro, a detesta mesmo depois de ser lavado, quando é vestida nas suas roupinhas, agraciado com a unção repetida, sorrindo para os que cuidam dela. Este curso reverendo da natureza, você, ó Marcião, (com prazer ) despreza; e ainda, de que maneira você nasceu? Se você detesta o ser humano com o seu nascimento; como pode então amar alguém? (...)Cristo, pelo menos, amou esse homem, esse coagulo formado no ùtero entre as imúndices, esse homem vindo ao mundo pelos orgãos vergonhosos, esse homem alimentado com carícias irrisórias. Foi para ele que ele desceu, foi para ele que pregou, por ele que, com todoa a humildade se rebaixou até a morte, e morte de cruz. Foi em aparência que ele amou aqueles que resgatou por tão alto preço? [7] 
Por fim, o último (?) capítulo de nossa história passa por Santo Agostinho. cuja história de vida segue a trajetória  desse post, e por sua inquietude com o problema do mal lhe ter levado a desenvolver a sua própria (e extremamente influente) teoria. Agostinho foi educado por sua mãe cristã, tendo contato com as explicações ortodoxas e tradicionais para o mal e sofrimento. Na juventude, se tornou maniqueu, movimento profundamente influenciado pelo gnosticismo, mas também se decepcionou, e depois de um breve período influênciado pelo ceticismo da Nova Acadêmia, voltou ao cristianismo.  Como Bispo de Hipona, Agostinho se tornou um profundo pensador e teólogo, e se debruçou com afinco numa explicação para o mal.
E ai voltamos a resposta a Agostinho, da pergunta que ele mesmo se fez:
(...)E no universo, até o que é chamado de mal, quando é controlado e colocado em seu lugar, só aumenta nossa admiração do bem; pois apreciamos e valorizamos o bem mais quando a comparamos com o mal. Pois o Deus Todo-Poderoso que, como até mesmo os pagãos reconhecem, tem o poder supremo sobre todas as coisas, sendo ele mesmo o bem supremo, nunca iria permitir a existência de qualquer coisa má no meio de suas obras, pois não seria tão onipotente e bom se não pudesse trazer coisas boas mesmo a partir do mal. Pois o que é aquilo a que chamamos  mal, senão a ausência do bem? Nos corpos de animais, doenças e feridas nada são senão a ausência de saúde;  para quando a cura é efetuada, isso não significa que os males que estavam presentes, ou seja, as doenças e feridas, saitam do corpo e foram para outro lugar: eles deixam de existir por completo; para o ferimento ou doença não é uma substância, mas um defeito na substância carnal, -a própria carne sendo uma substância, e, portanto, algo de bom, de que esses males - isto é, privações da dadíva que chamamos de saúde - são acidentes . Assim, da mesma forma, o que são chamados de vícios na alma são nada além de privações de bem natural. E quando eles são curados, eles não são transferidos para outro lugar: quando eles deixam de existir na alma saudável, eles não podem existir em qualquer outro lugar (...). [8].


"Ouve-se um pranto em Ramá, Raquel chora por seus filhos",
Selo das Ilhas Faroe,2001, via wikicommons
 Desta forma, na concepção de Agostinho, o que existe, o que foi criado por Deus é bom. O mal decorre do afastamento e corrupção das coisas criadas por Deus. Sendo o ser humano livre, fica implícita a possibilidade de se afstar de Deus e de se corromper.
É dificil superestimar a contribuição deste (e outros) trabalhos de Agostinho para teologia e filosofia ocidentais. Sua resposta passou a ser padrão no que se refere ao problema do mal desde então, seja por discordância ou concordância. É claro que questão continuou e continuará sendo discutida, mas em Agostinho o cristianismo tradicional encontrou sua linha mestra de argumentação racional, combinada com o profundo apelo a psichê humana de que Jesus Cristo, encarnação do logos divino havia sofrido dores, padecimentos, frustrações, tristezas e morte, como os seres humanos sofrem, e havia sido vitorioso sobre todas essas coisas.

Na verdade, quando dizemos que a concepção de Agostinho se tornou prevalente, não queremos dizer que ela refutou de forma incontestável os gnósticos, e eles nunca mais brandiram seus argumentos. Assim, como os gnósticos não eliminaram os apocalipticos e os adeptos da "visão profética" (como definida por Bart Erhman, acima). A questão é que esses movimentos foram racionalizações para entender a realidade e suas constantes mudanças. E a medida que o contexto mais amplo muda, a percepção da concretude do poder do mal também, sendo maximizada ou minimizada. Assim, ao longo da sua história, em momentos de intenso sofrimento e/ou de insegurança causada por transformações sociais intensas, movimentos apocalipticos tendem a florescer, ou ainda há um movimento de afastamento do mundo e do tudo que é material, que passa a ser visto como funcionalmente corrupta, racionalizada no discurso, até mesmo de grupos fundamentalmente ortodoxos, não pelo propósito de um Demiurgo, mas pelos efeitos da queda do homem, implicando que o fiel deve se abster do mundo e de tudo que ele representa, até mesmo de atividades comezinhas ( como os asceticos do sec. IV, que não casavam, e alguns grupos pentecostais do sec. XX, que não assistem televisão). No entanto, quando a fé cristã se expandiu, e havia a percepção de vitórias e conquistas religiosas, bem como avanços sociais, elementos da "teologia profética" se tornavam visíveis em um discurso triunfalista de que a devoção do povo de Deus a sua Palavra eliminaria os males desse mundo (tais como a escravidão, a exploração do trabalhador, o alcoolismo), como visto no protestantismo do séculos XIX e início do século XX, em movimentos liberais como o Evangelho Social,  e conservadores como a Teologia do Domínio. E mesmo em uma versão leiga, influenciou nos EUA o desenvolvimento da Doutrina do Destino Manifesto (a crença de que o povo dos Estados Unidos tem a missão de transformar o mundo, sendo o expansionismo geopolítico norte-americano apenas uma expressão dessa vocação).

Referencias Bibliográficas:

[1] Bart Erhman (2005), Os Evangelhos Perdidos, fl.177
[2] John J Collins (1998), A Imaginação Apocaliptica, fls. 48-65
[3] Bart Erhman (2005), Os Evangelhos Perdidos, fl.178-179
[4] Zeyl, Donald (2005 e 2014), "Plato's Timaeus", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2014 Edition), Edward N. Zalta (ed.), http://plato.stanford.edu/archives/spr2014/entries/plato-timaeus/. visualizado em 05.09.2015
[5] Edward Moore (2005), "Gnosticism",  The Internet Encyclopedia of Philosophy http://www.iep.utm.edu/gnostic/, visualizado em em 05.09.2015
[6] Tim Henderson, Marcion: A Beginer Guide, https://earliestchristianity.wordpress.com/2010/08/02/marcion-a-beginners-guide/, 02.08.2010.
[7] Tertuliano, Da Carne de Cristo, capítulo IV  http://www.earlychristianwritings.com/text/tertullian15.html
[8] Santo Agostinho, Enchiridion (Handbook) de Fé, Esperança e Amor, capitulo 11 http://www.ccel.org/ccel/schaff/npnf103.iv.ii.xiii.html


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terça-feira, 3 de setembro de 2013

ANOTAÇÕES AD CUMMULUS 002: os complexos imaginários apocalípticos que circundavam Jesus

Estamos vibrando com a excelente iniciativa de nosso amigo Flávio de incrementar novos tipos de postagens no AD Cummulus, dando mais dinamicidade ao mesmo e potencializando os insights e horizontes que se descortinam nas nossas leituras e reflexões sobre o campo de interesse do blog. São drops valiosíssimos também para estimular o interesse em pessoas que se deparam com este campo de estudo acadêmico e que poderão ajudar a disseminá-lo mais no Brasil

E nosso amigo e fundador começou com uma exploração de grande fecundidade, de interesse literário, sociológico e histórico-cultural sobre o ambiente das ideias escatológicas envolvendo Jesus e os grupos religiosos do período. Flávio propõe-se a analisar as interfaces com escatologias presentes no ambiente farisaico.

A gente vislumbra pontes e pontos de apoio para muitos saltos e dos feixes que se formam a gente vai tentando amarrar. Me lembro de cara dos hinos de origens judaicas e rearranjados pelos judeus-cristãos da abertura do evangelho lucano, capítulos 1 e 2, por Izabel, Maria, os anjos no Gloria in Excelsis, Simeão... como sorvem em expectativas com muitas semelhanças aí. Reflexo dos anseios dos primeiros convertidos, e antes deles, de judeus com grandes anelos e anseios messianológicos.
Daí, em relação a eles, em Jesus parece-nos mais verossímil conceber que nele havia um embebimento comum de tradições judaicas como as refletidas no 1Enoque (como 51,3-4)
Ele [um anjo] disse: Todas essas coisas que contemplas serão para o domínio do Messias, para que ele possa comandar e ser poderoso sobre a terra.
E aquele anjo de paz respondeu-me dizendo: Aguarde mais um curto espaço de tempo, e entenderás, e cada coisa secreta que o Senhor dos Espíritos tem decretado será revelada a ti. Aquelas montanhas que viste, a montanha de ferro, a montanha de cobre, a montanha de prata, a montanha de ouro, a montanha de metal fluido e a montanha de chumbo, todas estas, na presença do Eleito,serão como um favo de mel diante do fogo, e como a água descendo de cima sobre estas montanhas, e devem tornar-se debilitadas diante de teus pés.
Também refletidas em 2 Baruq 70,2: 
Eis que os dias estão chegando e isso vai acontecer quando chegar a hora do mundo ter amadurecido e vier a colheita da semente dos ímpios e dos justos, que YWHW, o Poderoso, fará vir sobre a Terra e seus habitantes, e causar em seus governantes confusão de espírito e espanto do coração. E eles vão odiar uns aos outros e provocar um ao outro para lutar.
72,2: Depois que vierem os sinais vieram dos quais eu tenho falado com você antes - quando as nações forem movidas e o tempo de meu Ungido chegar, Ele vai chamar todas as nações, e algumas delas Ele não poupará, e outras ele vai exterminar.
O Hino do capítulo 10 do Testamento de Moisés:
E a terra há tremer: em seus limites ela será abalada
E as altas montanhas virão abaixo
E os outeiros serão abalados e cairão.
E as extremidades do sol serão despedaçadas e ele se converterá em trevas;
E a lua não dará a sua luz, e será transformada completamente em sangue.
E o círculo das estrelas será remexido.
E o mar se retirará para o abismo,
E as fontes das águas falharão,
E os rios se secarão.
Para a aparição do Altíssimo,  o único Deus Eterno, (...)
E também que formaram tradições refletidas na biblioteca de Qumrã, como o famoso 4 Q521, que engloba as passagens sobre os sinais da era messiânica tomados de cominações isaiânicas 35.5, 61.1 (presos libertos, cegos curados, encurvados soerguidos, mortos redivivos, boa nova aos ‘pobres’).  

Algo como a dimensão cósmica, com sinais antecipatórios; o misto de urgência com indeterminação. Talvez por uma questão de não identificar a realização das expectativas no que apontavam diversos os diversos grupos que cultivavam dadas orientações; aí a gente viaja na recepção e continuação do movimento de Jesus nos primeiros tempos da igreja primitiva e a incorporação de pessoas oriundas de outros movimentos messiânicos com abordagens em comum dos fariseus dos Salmos de Salomão, e mesmo de fariseus.


Os documentos das passagens citadas foram engendrados no período dos dois séculos circundantes a Jesus. Imagino que circularam entre grupos judaicos piedosos de estudiosos e místicos que fizeram uma leitura da história e de sua conjuntura mais fatalista, embora não desesperançada, à medida que influenciada pelas narrativas da libertação do Egito e diversos fragmentos proféticos, conceberam – e penso que não é necessário que o grau entre o que seria mais e menos metafórico ou simbólico seja o mesmo para todos – a intervenção de YWHW na história se faria acompanhar de sinais na criação e implicaria, para um mundo social renovado, renovações no mundo natural (à medida que foram amalgamando os males sociais e políticos com concepções cósmicas e o que a gente diria hoje, “ônticas” sobre a natureza destes males).

É um campo muito viçoso buscarmos conceber como teria sido o contato e interação de Jesus com estes corpos apocalípticos complexos, considerando que não seriam propriamente “escolas” ou “ramos” do judaísmo, tanto delineados como o é convencionalmente, mas ainda mais fluidos. Inclusive, eu imagino que deve estar na explicação para sua possível alfabetização.




ANOTAÇÕES AD CUMMULUS 001: esperanças farisaicas, Jesus e a data escatológica

Aqui inicio um novo tipo de postagem em nosso blog. As "Anotações AD Cummulus". Este tipo de postagem não se constituirá em um grande artigo ou paper. Por diversas ocasiões, lendo um determinado texto, tive um  insight útil para a formulação de um argumento ou encontrei um complemento para uma idéia já formulada. No entanto, em boa parte dos casos, eles ficaram apenas como uma idéia não-aproveitada e se perderam no mar de coisas que nos cerca pela vida cotidiana. Algumas boas ilações formuladas acabaram por se perder em minha memória, se transformando em vagas lembranças ou em lembrança alguma. Sendo assim, achei por bem criar esta categoria de textos onde colocarei estas pequenas formulações [que ficarão incubadas à espera de uma articulação de maior fôlego].


A primeira anotação será feita sobre um dos textos dos chamados Salmos de Salomão. Trata-se de uma coletânea de salmos escritos no século I a.C. A Enciclopédia Judaica situa tal conjunto de textos entre os anos de 40-70 a.C. A autoria dos textos é farisaica. O conteúdo mostra a oposição entre os fariseus e saduceus. Sobre a tipologia messiânica encontrada em alguns destes textos, assim fala a Enciclopédia:

"O Messias é um filho de David (em oposição aos reis-sacerdotes macabeus e aos messias-levíticos. Um homem sem poder sobrenatural, levantado por Deus para purificar Jerusalém e para reinar em paz sobre todas as nações. A descrição dele é tomada em grande parte dos Profetas e do Saltério. Ele é chamado no texto (XVII. 36) "o senhor Messias", ou "o ungido, Senhor" (χριστὺς κύριος), que é talvez um erro de escrita de "o ungido do Senhor", a expressão comum." [trad.própria]

A tradução para o inglês do texto completo dos Salmos de Salomão pode ser encontrada aqui. Nosso rápido comentário será feito sobre o versículo 23 do Salmo 17:

"Vê, ó senhor, e levanta a eles o seu rei, filho de Davi, no tempo em que tu vês, ó Deus, para que ele possa reinar sobre Israel, teu servo".[trad. própria]


P.Grelot, em seu A esperança judaica no tempo de Jesus, tece um interessante comentário sobre esta parte.

"Embora se espere a salvação da cidade santa e do povo só de Deus (v. 25a), o artífice dela será o rei filho de Davi (v.25). Não há nenhuma especulação sobre o tempo da sua vinda, pois só Deus o conhece (v.23b); a expectativa ansiosa do poeta fariseu e a sua oração insistentemente distingue-se assim da febre apocalíptica atestado no Livro de Henoc ou em Qumran." [GRELOT, P. A esperança judaica no tempo de Jesus. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 85]

Não poderia deixar de anotar esta referência no que toca às expectativas quanto ao TEMPO ESCATOLÓGICO. A analogia ao pronunciamento de Jesus em Mateus 24:36 é clara. O capítulo 24 de Mateus é tipicamente um pronunciamento de escatologia no qual Jesus discorre sobre a tribulação de Jerusalém e a vinda do Filho do Homem:

 "Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, mas só o Pai." [Mt 24:36] 

Os acontecimentos narrados por Jesus neste texto são de proporções cósmicas. Neste sentido, trata-se de um tipo de expectativa muito diferente daquelas esperadas nos Salmos de Salomão. No entanto, a questão a questão do conhecimento único por parte de Deus é um dado a ser marcado.

No Novo Testamento, vários elementos nos mostram a recorrente esperança de uma Parusia a ser verificada ainda no tempo em que aqueles personagens viviam. Jesus, no entanto, afirma desconhecer o exato momento dos eventos, apesar de elencá-los. O texto farisaico também fornece unicamente à Deus a percepção do momento. Isso nos é importante em termos sociológicos para entender o tipo de potencial mobilizador que a tipologia escatológica deve ter despertado nos leitores farisaicos, ou seja, uma esperança em tempo lento, pouco latente.

Ps. Teremos mais análises sobre os Salmos de Salomão nas próximas ANOTAÇÕES AD CUMMULUS.


domingo, 8 de julho de 2012

Origens Cristãs e a Questão de Deus: A Metanarrativa na Historiografia de N.T.Wright

Neste nosso trabalho visamos apresentar o arcabouço epistemológico e metodológico do programa de pesquisa de Nicholas Thomas Wright para o estudo histórico das Origens Cristãs. Daremos um panorama geral, apresentaremos os postulados básicos tendo em vista disponibilizar os instrumentos para o exercício a quem se interessar por suas propostas, e brevemente, indicarmos alguns resultados a que ele chega. Trarei para colaboração um resumo de uma abordagem que julgo ter alguns bons paralelos, descontando o interesse sobremaneira diverso, para o leitor poder julgar por si se os instrumentos que Wright oferece são apropriados e úteis dentro da consideração pelo rigor crítico.

**Obs. Como o presente autor procedeu em outra ocasião, por questões de espaço/tamanho, realizara a tradução livre direta das citações em inglês - reportando a fonte. Reafirma como da outra vez que com prazer pode repassar, já que são citações breves, a parte original em inglês de onde extraira caso seja solicitado.

N. T. Wright, também conhecido como Tom Wright, é mais famoso no Brasil como um dos expoentes da chamada “Nova Perspectiva” sobre os estudos de Paulo. Contudo, ele é internacionalmente reconhecido como exímio debatedor e acadêmico dos estudos sobre Origens Cristãs e Jesus Histórico. Em sua formação inclui-se estudos em Literatura Clássica, Filosofia e História no Exeter College, em Oxford, onde também cursara teologia e também “Divindades”, também em Durham e St. Andrews. De 2003 até se aposentar em 2010 fora Bispo de Durham da Igreja Anglicana. Foi professor das universidades de Cambridge e Oxford por vinte anos, professor visitante de universidades como Harvard Divinity School, nos Estados Unidos, Universidade Hebraica de Jerusalém e Universidade Gregoriana em Roma.

Duas de suas mais importantes obras para os propósitos de nosso empreendimento aqui são os livros “The New Testament and the People of God” e “Jesus and the Victory of God”, os dois primeiros volumes da série: Christian Origins and the Question of God. London: SPCK; Minneapolis: Fortress.

Wright situa a matriz explicativa para o despontar do cristianismo dentro de um “quadro de referencia narrativo”, um grande raconto alimentado no incitamento de oferecer respostas para a expectativa do futuro diante da memória histórica e condição social relacionados aos mesmos fatores histórico-políticos. O cristianismo foi uma irrupção de uma maneira de estar no mundo, eclodida dentro de um caldo fervilhantes de diversas outras maneiras na fonte comum do Judaísmo do Segundo Templo. O arrabalde cultural carregado de teologia, que era a luz sob a qual o povo se interrogava sobre sua identidade e seu destino.

A visão de mundo básica, referenciada na história – passada, presente, possibilidades ( e ansiedades) futuras – e ultrapassando-a, articulava símbolos, costumes, narrativas, perguntas e respostas. Wright delineia essa busca em termos de: “Quem somos? Onde estamos? O que está errado? Qual a solução? Como virá?”

Interessante é que tomando este ponto de partida, vemos como apropriadamente serve para contemplar a característica narrativa dos evangelhos tratando-a adequadamente no momento que se toma como fonte para o estudo histórico crítico. É algo que o eminente filósofo Alasdair MacIntyre, chama a atenção:
O que chamo de história é uma narrativa dramática encenada, na qual os personagens também são autores. Os personagens, naturalmente, nunca começam literalmente ab initio; eles mergulham, in medias res, o iniciar de sua história já feito para eles por quem ou pelo quê passou por lá anteriormente.
(...)
O homem é, em seus atos e trabalhos, bem como em suas ficções, essencialmente um animal narrador de histórias. Não é, em essência, mas se torna no decorrer de sua história, um contador de histórias que aspiram à verdade. Mas a questão principal não é sobre sua própria autoria; somente posso responder à questão ‘O que devo fazer?’ se souber responder ao questionamento: ‘De que história ou histórias eu estou fazendo parte?’ [1]
Tom Wright advoga que a memória coletiva dos judeus ainda era marcada por um senso de continuarem no “Exílio”, sendo que mesmo após o retorno do cativeiro babilônico, continuaram dominados por nações estrangeiras, se debatendo sobre o porvir das promessas proféticas de Isaías, Ezequiel, etc., que do contrário estariam frustradas. Assim, aguardava-se a forma como YWHW iria intervir para novamente libertar e restaurar seu povo, tal como no Pentateuco. Wright aponta algumas referências na literatura do Judaísmo do Segundo Templo, como o livro de Baruc e os capítpulos 13 e 14 do livro de Tobias. 

 Assim, as respostas para as questões básicas levantadas giravam em torno de: “Nós somos Israel, o verdadeiro povo do deus criador; nós estamos em nossa terra (e/ou dispersos fora de nossa terra); nosso deus ainda não nos restaurou completamente como um dia o fará; portanto, nós buscamos restauração, que incluirá a justiça de nosso deus sendo exercida sobre as nações pagãs.”  [2]

Nuances de amplo espectro se davam entre diferentes grupos dentro do judaísmo. Era muito forte e intensa a expectativa de haveria uma vindicação do povo pela divindade israelita, com uma ação com impacto em todo o mundo e um grande julgamento final dos seres humanos. [3]

Tal maneira de pautar um programa de estudo histórico pode causar um estranhamento. Talvez essa abordagem enquadrando em um “grande quadro narrativo” retire o rigor científico minucioso; talvez esteja por demais configurado por e mergulhado em temáticas teológicas e assim constituir-se-ia uma agenda teleológica. Como Craig Keener acentua nesta entrevista:
Tom é mais sintético: ele brilhantemente reúne um vasto conjunto de ideias e vê como elas se encaixam. Eu faço um pouco disso, mas acho que sou uma pessoa mais detalhista: eu gasto muito tempo matutando através de textos antigos individuais e vendo onde a evidência me leva. Tom é muitas vezes mais diretamente teológico, eu sou quando eu prego, mas em alguns dos meus trabalhos acadêmicos despendo muito tempo em detalhes históricos. Eu acho que Tom também se concentra mais na leitura do Novo Testamento através da lente do Antigo Testamento.  
Eu gostaria de contribuir para nos ajudar com tais dúvidas, tratando de uma abordagem de um cientista social com formação e interesse totalmente diverso, a respeito de um tema histórico completamente diferente. Peço licença para fazer uma divagação por um assunto de interesse distante da proposta do blog, mas que nos ajudaria a captar melhor a propriedade desta proposta do Wright, para quem quiser fomentar a análise crítica.


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Immanuel Wallerstein e o aflorar ideológico da Modernidade

 Immanuel Wallerstein teve como formação o B.A. (1951), M.A. (1954) e Ph.D. (1959) na Universidade de Columbia, Nova Iorque; fora professor distinto de sociologia da Universidade de Binghamton (SUNY) de 1976 até sua aposentadoria em 1999, além de chefe do Centro Fernand Braudel para o Estudo das Economias, Sistemas históricos e Civilizações até 2005.

Wallerstein ocupou vários cargos como professor visitante em universidades em todo o mundo, recebeu vários títulos honoríficos, de forma intermitente serviu também como Directeur d'Études Associé na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, foi presidente da Associação Internacional de Sociologia entre 1994 e 1998. Durante os anos 1990 , ele presidiu a Comissão Gulbenkian sobre a Reestruturação das Ciências Sociais. Em 2000 ingressou no Departamento de Sociologia de Yale como Pesquisador Sênior. Em 2003 recebeu o Prêmio Career of Distinguished Scholarship dos Estados Unidos. Sua grande contribuição revolucionária para o mundo do conhecimento das Ciências Sociais foi como, a partir da sistematização e reformulação de categorias de Karl Marx,  Nikolai Kondratiev, Max Weber, Karl Polanyi, Fernand Braudel, da Teoria da Dependência, dos estudos do pós-colonialismo, criador da Análise de Sistemas-mundo

O cientista social engendra uma explicação para o irromper de três movimentos ideológicos marcantes do mundo moderno: o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo. A apresenta dentro de um plano maior que contempla uma grande narrativa que combina revoluções estruturais na história que perpassavam preocupações, angústias e aspirações no imaginário e no inconsciente coletivo das pessoas do ambiente social e cultural de onde irromperam. Ele situa esta emergência em um intervalo que compreende o período em torno da Revolução Francesa. E que esta se dera, concomitante, no mesmo bojo , tendo um suscitado e desencadeado outro. Foram as racionalizações de respostas que se fizeram necessárias a temas cuja resolução exigia uma postura social e programas políticos, sendo que não se engendrara, porém, apenas como questão intelectual, mas de alternativas sociais e existenciais para as pessoas. Dentre a vasta obra, dois artigos podem ser selecionados para nossos fins. “The West, capitalism, and the modern world-system”, e “The French Revolution as a World-historical Event. In Unthinking Social Science: The Limits of Nineteenth-century Paradigms”. 

Seu raciocínio é desenvolvido apontando que a partir do século XVI irrompera um novo Sistema Histórico, o Capitalismo Histórico. Um "sistema histórico" se constrói de vários tipos de instituições as quais governam, ou moldam a ação social de forma a manter e operar os mecanismos básicos deste sistema, proporcionar relativa coesão social entre pessoas e grupos para que o comportamento seja compatível com esse sistema no grau mais ótimo possível, em torno de uma divisão do trabalho que lhe permite sustentar-se e reproduzir-se. Articula assim essas instituições, que agem reciprocamente de maneira econômica, política, sociocultural, de forma que o sistema “funcione em essência em termos das consequências de seus processos internos". [4]

Este sistema viera se formatando a partir de processos já desencadeados em que o autor destaca as cidades-estado italianas e o centro financeiro em flandres. E a grande irrupção adviera com os empreendimentos de grandes navegações e a chegada europeia nas Américas. Na mesma zona geocultural onde então predominavam os sistemas feudais, estes foram substituídos pelo Capitalismo Histórico. Nos padrões de mudanças de sistema que o autor articula, o que ocorrera fora que o sistema anterior ao capitalismo histórico experimentara a falência das estruturas e tendências seculares que garantiam a viabilidade renovada de suas instituições, não podendo mais fazer “os ajustes necessários para continuar operando segundo suas próprias regras”. 

Três instituições-chave entraram em colapso: o Senhorio, os arranjos estamentais, a igreja. “De um modo geral, as estruturas políticas estavam a tornar-se mais fracas, e a sua preocupação com as lutas internas dos politicamente poderosos significava que pouco tempo restava para reprimir a força crescente das massas da população. O cimento ideológico do catolicismo estava sujeito a uma grande tensão”. Convulsões demográficas desestabilizavam o sistema de servidão na terra dos senhores feudais, além de insurreições camponesas. As lutas entre as nobrezas mais a queda na arrecadação colapsaram os estados reais; isto enfraqueceu também economicamente a igreja, gerou dificuldade de sustentar sua autoridade ao mesmo tempo que fomentou grupos libertários no seu interior. 

Immanuel Wallerstein aponta que normalmente na história, sistemas assim desmoronam e os estratos governantes se renovam devido, mais frequentemente, a conquista externa ( um parâmetro que poderia servir para analisar a história judaica). Não tendo sido possível, e com o colapso do papel destas instituições no feudalismo, um fator emergente que assumira preponderância fora o “capital”. Passou a ser uma força de motivação social e dinâmica econômica à medida que firmou-se a característica primária de ser acumulativo autorreplicante, rompendo todos os constrangimentos culturais. O grande fator a destravar qualquer instituição inibidora para a “Mudança Social” e a mais potente “força motivadora”. [5]

O que fora catalizado então se estabelecera como elemento aglutinador da "geocultura", segundo o autor, com a eclosão da Revolução Francesa. É a questão definidora de como o autor delineia a “Modernidade”, como uma combinação de uma determinada realidade social com uma determinada “Weltanschauung”, ou visão de mundo geral. A Revolução Francesa fora assim um “ponto de inflexão” no qual se gerara respostas, em forma de programas socioculturais, à pautas civilizatórias para o horizonte, de forma a propiciar a realização das pessoas na sociedade; pautas estas: a “Mudança social, estabelecida agora como algo 'normal', 'inevitável' ”; a questão da legitimidade do poder político, ou 'a questão da soberania'."

A resposta inovadora viera nos tons dos apelos ao “progresso” e à “soberania popular”. E as três ideologias se concatenaram como respostas diferentes dadas a estas questões. Para o “Conservadorismo”, a mudança social poderia representar um perigo se não fosse bem “circunscrita” e limitada; para o “Liberalismo” [político], ela deveria ser administrada tecnicamente; para o “Socialismo”, deveria ser acelerada com luta política. Os liberais tenderam a representar o “povo” com a figura abstração do “indivíduo” em suas competências; os conservadores, em termos dos grupos “tradicionais” em graus hierárquicos na sociedade; os socialistas (antes, chamados "democratas"), em termos mais totalizantes e universais, embora enfatizando o recorte dos trabalhadores não-capitalizados. [6]

Enfim, para o interesse estrito da nossa apresentação, é importante destacar que, a despeito das grandes diferenças, vemos paralelos em dois tratamentos de origens de grandes movimentos socioculturais em reação a memórias históricas dentro de realidades sociais, em busca de configurar um cenário para o futuro. O autor trabalhou com um amplo plano temporal de escala analítica para analisar o que suscitara as inquietações e anseios a que os movimentos ofereceram como resposta para o povo.  Chama a atenção o quanto, considerando a matéria histórica tratada, o período, o foco e o fenômeno histórico, impera a necessidade de não somente ter sensibilidade para, diálogo com, mas embebimento em discussões de filosofia política. Assim também nas origens cristãs, para com inquéritos teológicos. 

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Ainda dentro da discussão dos aspectos básicos do programa de pesquisa de Wright, ele esmiúça um pouco mais questões de metodologia. Promove uma recapitulação dos diferentes estados da arte do campo de pesquisa desde o século XIX até os anos 90. Perpassa as críticas de Johannes Weiss e Albert Schweitzer aos contemporâneos que produziam um Jesus "sem escatologia", reproduzindo-o às suas imagens e semelhanças. A escola fideísta de Bultmann, às preocupações alemãs com os "ditos mais originais" que se espalharam pelo ambiente de língua inglesa, à inflexão com a ambientação judaica... Apresenta as teorias, os pressupostos, promovendo uma discussão crítica quanto até que ponto contemplavam as realidades do período histórico das origens cristãs. Ele promove uma comparação entre as abordagens positivistas ou objetivistas (afirmam que as entidades postuladas pelas teorias são realidades possíveis de serem captadas à parte da interferência do observador, interessando-se pela captura dos “fatos históricos” objetivos, a priori da interpretação), e as fenomenológicas-construtivistas ( se interessam pelo que se pode apresentar a respeito do “fenômeno” observável, não pela “coisa-em-si”, ou o “fato-em-si”, a preocupação focal é quanto aos procedimentos descritivos e suas propriedades), apontando pontos fracos e pontos fortes. 

A partir daí ele explica sua posição que considera escapar das armadilhas das outras duas e unir o que de mais teriam de consistente: o Realismo Crítico. Esta [ i.e., o Realismo Crítico] é uma maneira de descrever o processo de "saber" que reconhece a realidade da coisa conhecida, como algo diferente do que é o conhecedor (daí o ‘realismo’), enquanto também reconhecendo plenamente que o único acesso que temos a esta realidade encontra-se ao longo do trajeto em espiral de diálogo adequado ou uma conversa entre o conhecedor e a coisa conhecida (daí o 'crítico’). Este caminho leva à reflexão crítica sobre os produtos do nosso inquérito sobre a ‘realidade’, para que nossas afirmações sobre ela reconheçam a sua própria provisoriedade. O conhecimento, em outras palavras, embora em princípio concebe a realidade independente da mediação do conhecedor, nunca é em si mesmo independente do conhecedor.  [7] 

 Desta forma, ele acredita que a epistemologia para o estudo do caráter literário dos evangelhos pode se envolver com eles, sem se deixar ser tomada e perder o caráter crítico. Fechando uma encorpada sessão em que analisa a paisagem sociocultural da Palestina do século I d.C., ele recapitula eventos-chave para entender como se chegou àquele cenário; destarte ele explica a formação dos diferentes “partidos” no Judaísmo de então, os ramos mais sectários, e os pontos que ele considera em comum, elementais para se chamar Judaísmo. Ele focaliza sua preocupação depois com a vida e mentalidade do “judeu comum”. 

Assemelha-se este foco com o que o historiador Fernand Braudel chamava de “vida material”: 
Parti do cotidiano, daquilo que, na vida, se encarrega de nós sem que o saibamos sequer: o hábito ­ melhor, a rotina ­ mil gestos que florescem, se concluem por si mesmos e em face dos quais ninguém tem que tomar uma decisão, que se passam, na verdade, fora de nossa plena consciência. Creio que a humanidade está pela metade enterrada no cotidiano. Inumeráveis gestos herdados, acumulados a esmo, repetidos infinitamente até chegarem a nós, ajudam-nos a viver, aprisionam-nos, decidem por nós ao longo da existência. São incitações, pulsões, modelos, modos ou obrigações de agir que, por vezes, e mais freqüentemente do que se supõe, remontam ao mais remoto fundo dos tempos. [8]                                                     
Chama a atenção que tal historiador também trabalha com um vasto horizonte analítico, chamado "longue durée", marcado por interações físicas, ecológicas, geográficas, socioculturais, numa escala de tempo em que há estruturas básicas comuns.

Tom conclui que os judeus eram rigorosamente monoteístas, referendando-se no atributo criador da divindade, igualmente no papel redentor e escatológico, aguardando que ela os resgataria e livraria de toda dominação. Mais controvertida é sua posição de que as imagens e descrições apocalípticas, sobre fenômenos de cataclismos terrenos e cósmicos, eram figuras para expressar mudanças procelosas em toda ordem mundial [ similares seriam Richard Horsley, “Jesus e a Espiral da Violência”, pgs 118-128; Marcus J. Borg [ (embora o tom na escatologia de Wright seja muito mais proeminente), Conflict, Holiness and Politics in the Teachings of Jesus, pgs 22-35] , 


Para corroborar sua posição, procede uma análise dos capitulos clássicos apocalípticos em Daniel e na literatura chamada pseudepígrafa. Essa foi a matiz cultural e motivacional para os nascimento do cristianismo. Wright aponta que a literatura cristã está marcada pela convicção de que os cristãos viram esta redenção expressa no Messias Jesus, narrando suas histórias na perspectiva e expetação moldada pela personificação em sua obra dos temas do “êxodo, conquista, exílio e restauração” - “batismo , ministério, morte, ressurreição, ascensão”; paralelos com figuras como Samuel, Davi, Elias, Eliseu expressadas em João e Jesus, projeções da imagem do Lógos... em Jesus eles viram o cumprimento das promessas do judaísmo e assim configuraram seu narrar sobre ele. 

Aqui temos uma síntese das conclusões a que chega:

Essa idéia do plano a ser revelada é novo, caracteristicamente judaica, e os contemporâneos de Jesus tinham desenvolvido uma forma complexa de pensar nisso. Eles usaram imagens , muitas vezes sensacionalistas e espetaculares, elaborada a partir das Escrituras , para falar sobre coisas que estavam acontecendo no mundo público, o mundo da política e da sociedade, e dar a esses acontecimentos o seu significado teológico. 

Assim, ao invés de dizer "Babilônia vai cair, e isso vai ser como um colapso cósmico", disse Isaías: "O sol escurecerá, a lua não dará a sua luz, e as estrelas cairão do céu". (Isaías 13:10). A Bíblia Judaica está repleta de tal linguagem, que é muitas vezes chamada de "apocalíptica", e seria um grande erro imaginar que tudo estava predestinado a ser tomado literalmente. Era uma forma, para repetir ponto, de descrever o que poderíamos chamar de eventos no espaço-tempo e investi-los com o seu significado teológico ou cosmológico. Os judeus da época de Jesus não estiveram, em grande parte, a esperar que o universo no espaço-tempo chegasse a ficar inerte. Eles esperavam que Deus iria agir de forma tão dramática dentro do universo no espaço-tempo, como ele tinha agido antes em momentos-chave, como o Êxodo, que a única linguagem apropriada seria a linguagem de um mundo desmontado e renascido. 

Estes avisos se agrupam no chamado Breve Apocalipse de Marcos 13 e seus paralelos em Mateus 24 e Lucas 21. O capítulo inteiro é para ser lido, sugiro, como uma previsão não do fim do mundo, mas da queda de Jerusalém. A coisa crítica, aqui e alhures, é entender como funciona a linguagem apocalíptica. Como eu disse antes, a linguagem do sol e a lua se escurecendo, e assim por diante, é regularmente usada nas Escrituras para designar as grandes convulsões políticas ou sociais da ascensão e queda de impérios, como nós dissemos, e, pelo uso dessa linguagem, para conotar de significado cósmico ou teológico que eles atribuem a esses eventos. [9]

A linguagem de Marcos 13 então, sobre o Filho do Homem vindo sobre as nuvens não deve ser tomada literalmente a ferro e a fogo, como no decurso de gerações de ambos, estudiosos críticos e crentes não-críticos têm tomado. A linguagem aqui é retirada de Daniel 7, onde os eventos referidos são da derrota e do colapso dos grandes impérios que se opuseram ao povo de Deus e à vindicação do verdadeiro povo de Deus, os 'santos do Altíssimo'. A frase sobre "o filho do homem vindo sobre as nuvens" não iria ser lida, por um judeu do primeiro século debruçado sobre Daniel, como se referindo a um ser humano "aproximando-se" para baixo em direção à terra montado em uma nuvem real . Ele seria visto como a previsão de grandes eventos e através dos quais Deus iria vindicar seu povo verdadeiro após o seu sofrimento. Eles "chegariam", não à terra, mas a Deus. 

Jesus está assim usando alguns temas-padrão dentro da expectativa judaica do Segundo-Templo de uma forma radicalmente nova. Ele estava tomando o material sobre a destruição da Babilônia, ou Síria, ou quem quer que seja, e aplicando-o a Jerusalém. E redirecionando para ele e seus seguidores as previsões proféticas de vindicação. [10]    


Para ser possível concatenar coerentemente a partir desta verificação, Wright observa que é crucial conseguir engendrar uma análise da mentalidade motivacional das visões de mundo, se atendo ao estudo histórico e evitando psicologizar conjecturas, algo que está em descrédito fazem muitos anos nos estudos bíblicos. Desta forma ele adapta ferramentas desenvolvidas pelo semiólogo lituano Algirdas Julien Greimas  nos seus estudos sistemáticos das personagens das narrativas, de acordo com as interações nas sequências ao longo do esquema narrativo [11], onde a narratividade pode ser compreendida como um elemento organizador e fundador do sentido, o modo de se aperceber do sintagma; desta forma, um número finito de temas funcionais justapostos em oposição binária com possíveis papéis ( sujeito-objeto; emissor-receptor ; ajudante-adversário ) geraria as estruturas que chamamos de histórias. Com isto N.T. Wright consegue entretecer as perícopes dos evangelhos, que narram eventos e proclamações independentes, em um enredo interligada com o grande plano geral que traça afim de captar um sentido contatenado através das ações nas tramas. 

 É o ponto a partir do qual ele chega a uma das principais problematizações que desenvolve: a esperança judaica. Ele rechaça tentativas de se trabalhá-la em esquemas sistemáticos de dogmática; antes de tudo, para Wright, se dava como reação às pressões de dimensões sociais, econômicas, políticas e culturais, sempre sob o auspício da humilhação da dominação romana e opressão pelos líderes vassalos de Roma. Isso acrescenta altissonância ao centrar na “vinda do Deus de Israel” para a libertação nacional, em contraste com expectativas de desencarnação para sobrevivência post-mortem. [12]

Tal abordagem inverte os lugares-comuns sobre o “legalismo” judaico para com a Lei (Torá); as observâncias de regras de pureza não eram para “ganhar a salvação individual”, mas a sua tônica era a preocupação em manter sua distinção dado por Deus em contraste com as nações pagãs , especialmente aquelas que se julgavam como estando a oprimi-los. Era a demarcação do “povo da aliança”; as “obras da Torá" não eram degraus de uma escada legalista, na qual alguém subia para ganhar o favor divino, mas foram os emblemas que se usavam como as marcas de identidade [13]

Isto é o que ele focaliza o conceito de narrativas formadoras de identidades, em que podemos recapitular: 

Assim é então como ela deve ser entendida, lida em contextos apropriados, dentro de uma acústica que irá permitir os seus tons serem ouvidos. Deve ser lida com distorção tão pouca quanto possível, e com a sensibilidade , tanto quanto possível aos seus diferentes níveis de significado. Estes devem ser lido como histórias, e a História, à qual se diz poder ser consistente chegar com as histórias, e não como formas de declarar 'ideias a-históricas'. Deve ser lida sem o pressuposto de que já sabemos o que vai se dizer, e sem a arrogância que assume que 'nós '- que pode ser qualquer grupo- já temos direitos ancestrais sobre esta ou aquela passagem , livro, ou escritor [14] .

Desta forma está preparado o palco interativo para “Jesus and the Victory of God”. Wright postulando um critério que ele chama de “Dupla Similaridade e Dupla Dissimilaridade” [15] 

Dupla Similaridade tenta descobrir como Jesus cabe dentro judaísmo do primeiro século e como tal um Jesus Judeu poderia explicar a ascensão do cristianismo primitivo. A Dupla Dissimilaridade procura explicar por que Jesus foi rejeitado pelo judaísmo e como as tradições evangélicas, devido à sua dissemelhança , não poderiam ter se originado dentro da igreja primitiva. Assim, sua principal ferramenta é muito mais abrangente do que o muito mais limitado “critério de dissimilaridade”. Com ela, vai se afigurando uma figura profética peculiar, que passava de aldeia em aldeia, dizendo substancialmente as mesmas coisas onde quer que fosse, com variações e novidades surgindo em resposta a uma situação nova, um questionamento afiada ou desafio. Contudo, com o critério da Dupla Similaridade Wrigth postula que Jesus repetira certas parábolas-chave muitas vezes, provavelmente com pequenas variações . . . 

Meu palpite seria que temos duas versões da parábola Grande Ceia , duas versões da Parábola dos Talentos/Libras, e duas versões das Bem-aventuranças, não porque um é adaptado a partir do outro, ou ambos a partir de uma fonte comum de um único escrito, mas porque estas são duas em uma dúzia ou mais variações possíveis que, se alguém tivesse estado na Galileia com um gravador poderia ter 'recolhido' " [16].

Wright desmembra esta imagem na parte 2 do livro, "Perfil de um Profeta". Ela consiste em seis capítulos. No Capítulo 5, intitulado " A Práxis de um Profeta", Wright, com as ferramentas acima apontadas, argumenta que a melhor categoria para classificar Jesus é a de uma “ Liderança Profética e Oracular" (162-68 ). Explica de forma meticulosa nos capítulos 6, 7 e 8; "Histórias do Reino", subdivididos em "Anúncio", "Convite, Boas-vindas, Desafio e Convocação"e "Julgamento e Vindicação". Prossegue com o capítulo 9 intitulado "Símbolo e Controvérsia", onde discute as ações de Jesus e os ensinamentos sobre o símbolos da identidade judaica, ou seja, Sábado , Comida, Nação, Terra e Templo, problematizando o emprego próprio por parte de Jesus dos símbolos do Reino, que tratam do “retorno do exílio”, a “restauração da terra e da nação”, a “nova família de Deus”, “o culto renovado”. 

Wright ilustra um exemplo de atitude de arrependimento individual análogo nos escritos de Josefo, descrevendo um chefe de turba de bandidos tramando contra sua vida, ao passo que Josefo lhe diz: “Eu gostaria, no entanto, de desculpar suas ações se ele mostrasse arrependimento e provasse sua lealdade a mim”. É uma alusão que transmite a introspecção necessária para a conclamação de Jesus “se ele arrepender e crer em mim”. [17]


 “A parábola do filho pródigo é a história do exílio de Israel e sua restauração. Este é o tema principal. 

A Babilônia tinha tomado o povo em cativeiro; Babilônia caira, e voltou o retornara. Mas nos dias de Jesus muitos, se não a maioria, dos judeus consideravam o exílio como ainda a permaneccer. O povo voltou em sentido geográfico, mas a grande profecia de restauração ainda não tinha chegado realmente. O que Israel fazia? Porque, se arrependera-se do pecado que o havia levado ao seu exílio, e retornara a YHWH com todo o seu coração, então quem ficara em seu caminho para evitar seu retorno? A multidão mista, e não menos importante os samaritanos, tinham permanecido na terra enquanto o povo estava no exílio. Mas Israel iria voltar, submisso e redimido: os pecados seriam perdoados, a aliança renovada, o Templo reconstruído e os mortos ressuscitados. O que seu deus havia feito por ela no êxodo . . . ele iria enfim fazer de novo, ainda mais gloriosamente. YHWH finalmente tornar-se-ia rei, e faria por Israel, em aliança de amor, o que os profetas haviam predito. [18]

(...)"Aqueles que reclamam [ representados pelo irmão mais velho na parábola ] do que está acontecendo estão escalado para o papel do judeus que não foram para o exílio, e que se opunham as pessoas que regressaram.  Eles são, com efeito, virtualmente samaritanos" [19]

 O tema de Jesus assim seria eminentemente escatológico, e assim se descortina seu senso de vocação em sua pregação e visão de seu papel: 

Se, então , alguém fosse falar com os contemporâneos de Jesus de YHWH tornando-se rei, podemos seguramente assumir que eles têm em mente, de uma forma ou outra, essa história de dois lados sobre a dupla realidade de exílio. Israel faria "realmente" o retorno do exílio; YHWH finalmente retornaria a Sião. Mas, se isto viesse a acontecer teria que ser um terceiro elemento, tal como: o mal, geralmente em a forma dos inimigos de Israel, deve ser derrotado. Juntos, esses três temas formar a metanarrativa implícita na línguagem do reino”. [20]

 E consequentemente articula o programa do ideário do nascer do cristianismo: 

A práxis de Jesus, histórias e símbolos, assim, indicam suas respostas, implícitas e às vezes explícitas, às cinco grandes questões da visão de mundo: 'Quem somos nós?' Jesus e seus seguidores formam o povo do real retorno do exílio, o remanescente, a semente, o pequeno rebanho. 'Onde estamos?' Estamos na terra, embora ainda dominados, mas o nosso Deus nos fará herdar a terra. 'Em que tempo estamos?' Em tempo de crise, a grande tribulação através da qual o reino virá, o momento tão esperado, quando o Êxodo será re-promulgado, quando terminará o exílio, o mal será derrotado e YHWH irá retornar a Sião. 'O que está errado?' O mal está desenfreado não apenas dentro do paganismo, mas dentro de Israel: do regime opressivo dos chefes sacerdotais para os movimentos populares revolucionários, o mal do mundo radicalmente infectara Israel também. 'Qual é a solução?' Tudo o que sabemos sobre Jesus sugere que, no fundo de seu coração, ele deu a resposta: 'Eu sou'.  [21]



[1] MacINTYRE, Alasdair. After Virtue. Indiana: University of Notre Dame, 1984, pgs.215-16.
[2] The New Testament and the People of God, pg. 118.
[3] como desenvolvido em "The New Testament(...)", parte 3.
[4]  “The Rise and Future Demise of the World Capitalist System: Concepts for Comparative Analysis”, republicado em WALLERSTEIN, I. The Essential Wallerstein. New York: The New York Press, 2000
[5] “The West (...)”, pgs. 561-619.
[6] “The French Revolution”(…) pgs. 7-22.
[7] The New Testament and the People of God, pg. 35
[8] BRAUDEL, Fernand. (1987), A dinâmica do capitalismo.  Rio de Janeiro, Rocco. pg. 13-14
[9] em "The Challenge of Jesus", 38
[10] The Challenge of Jesus, 51
[11] conferir GREIMAS, A. J, Semântica Estrutural: Pesquisa de Método, Ed. Cultrix, Säo Paulo, 1976
[12] The New Testament and the People of God, 169-170
[13] The New Testament and the People of God, 237-238 
[14] Jesus and the Victory of God, pg. 6
[15] Jesus and the Victory of God131-33.
[16] Jesus and the Victory of God, 170
[17] Jesus and the Victory of God, 250
[18] Jesus and the Victory of God, 126-127
[19] Jesus and the Victory of God127
[20] Jesus and the Victory of God206.
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