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quarta-feira, 22 de julho de 2009

As mulheres no nascimento do cristianismo


É algo que nos ocorre e nos deixa estupefatos quando vamos tendo pensamentos, que vão se enlevando e se encaixando com diversos insights ao ponto de iniciarmos um quadro mental, e descobrimos que houveram outros desbravadores dessa mata escura, e que podemos aproveitar os rastros e clareiras por eles deixados. Com uma fina pontada de desapontamento por não sermos os 'descobridores da América', vem uma felicidade de não sermos exóticos estranhos no ninho.

Acontecera isso comigo recentemente, ao refletir sobre a perspectiva das mulheres na igreja cristã nascente. Elas costumam ser esquecidas, e dificilmente se encaixam nos esquemas gerais traçados. Algumas vezes, o olhar feminista sobre a bíblica recai num essencialismo ululante, desprovido de realismo, ou anacronismos, o que nos enfastia. Alguns conseguem ser mais centrados e escapam dessa armadilha. Eu os busco. Encontrei um neste livro de Bauckham, ‘Gospel Women: Studies of the Named Women in the Gospels’, que tive a felicidade de ler e compartilho, das resenhas com as quais me deparei na internet, a que de forma sucinta traduzira as minhas impressões fora a da professora Dra. Robin Gallaher Branch, doutora em Estudos Hebraicos da Universidade do Texas em Austin. Fora uma Fullbright Scholar e depois Professora Associada na Universidade de Potchefstroom, África do Sul. Atualmente é professora de Bíblia e Teologia na Faculdade Crichton, em Memphis, Tennessee. Deixo aqui disponível uma tradução livre (aberta a correções) de minha parte, para compartilhar e divulgar esse trabalho extremamente relevante para os leitores de língua portuguesa, esperando contribuir para que alguma editora possa publicar no Brasil.

O original está publicado na Review of Biblical Literature.

Bauckham, Richard
Gospel Women: Studies of the Named Women in the Gospels
Grand Rapids: Eerdmans, 2002. Pp. xxi + 343.


Richard Bauckham, professor de Estudos no Novo Testamento e Bispo Professor na Universidade de St. Andrews, na Escócia, escreveu um importante trabalho sobre algumas das mulheres nomeadas no Novo Testamento. Ao fazê-lo, ele olha entusiasticamente as histórias, fatos e sugestões no texto bíblico e em histórias na literatura extrabíblica sobre estas mulheres.

Seus temas incluem mulheres na genealogia de Jesus em Mt. 1; Elizabeth e Maria em Lucas 1; Ana da tribo de Aser em Lucas 2; as duas Salomés, uma, irmã de Jesus, e a segunda, sua xará e não referida no texto bíblico, uma discípula de Jesus (226), Joana (Lucas 8:3, 24:10), a qual, ele argumenta, é uma apóstola; Maria de Cléopas (João 19:25), e as mulheres nas histórias da ressurreição.

Ele começa por olhar para o livro de Rute, apontando que ele oferece uma chave ginocêntrica para uma leitura das Escrituras(1.16). À primeira vista isso parece pouco habitual, ainda que estabelece as bases para o seu argumento de que porções das Escrituras apresentam vozes das mulheres. Ele aponta que, embora não possamos conhecer a autoria de Rute, 'a voz com a qual o texto fala aos seus leitores é feminina' (3, ênfase original); esta voz feminina domina até os últimos versos, quando a voz masculina, sob a forma de genealogia de David retorna ao texto(4). Citando o trabalho de Carol Meyers, Bauckham observa em relance certos textos, como Rute, Cântico dos Cânticos, e possivelmente Ester, um mundo interior de mulheres, um lugar na sociedade em que suas vozes sejam ouvidas e apreciadas(9). Ele argumenta que os textos ginocêntricos não têm o papel de relativização dos textos androcêntricos, os textos predominantes em ambos os Testamentos, mas de contrabalançar ou corrigir precisamente isto: seu androcentrismo(15,16). Por conseguinte, ouvir e atentar para as vozes e perspectivas das mulheres no Novo Testamento são executados como um tema em todo o livro de Bauckham 'Gospel Women'.

Bauckham continua sua ênfase no Antigo Testamento ao olhar para as quatro mulheres citadas na genealogia de Jesus em Mateus: Tamar, Rahab, Rute, e a esposa de Urias o hitita...'Numa genealogia patriarcal deste tipo, as mulheres não têm lugar necessário', ele inicia, e então pergunta por que elas estão lá. Conduzindo seus leitores passo a passo, argumenta que genealogia de Mateus exprime o sentido universal do propósito de Deus, nomeadamente, que Jesus é o Messias judeu para os gentios(21). Que as quatro mulheres têm algum tipo de ligação por nascimento ou casamento fora de Israel 'estando de acordo com o objetivo global messiânico da genealogia'.(27).

Ele afirma que Tamar 'era, pelo menos, não mais gentia do que Sara, Rebeca, Lia, e Raquel foram'(31). Além disso, o fato de que Jesus tivera ancestrais gentios mostra o grau de abertura das pessoas de Deus para a inclusão dos gentios crentes, uma abertura que o Messias confirma e amplia(42).

A interação de Elizabete Maria em Lucas 1 apresenta uma vinheta textual proporcionando um olhar sobre o mundo das mulheres. Falta no seu capítulo sobre estas duas mulheres, no entanto, um profundo olhar para Elizabete; Bauckham concentra-se em Maria. Ele cita a prevalência do tema da mãe-filha em muitos das histórias precedentes do Antigo Testamento sobre mulheres. A seção Maria-Elizabete continua no modelo salvífico de mulheres como portadoras das pessoas de Deus. Anteriormente as mulheres portadoras que ele cita são Sifrá e Puá, as parteiras em Êxodo 1; Débora a juíza e Jael, que matou Sísera(Juizes 4-5); Ana (1 Sm. 1,2); e Ester. Juntamente com os homens, as mulheres atuam como agentes humanos da libertação de Deus para seu povo, dos seus inimigos(57). Maria e Isabel continuam esse padrão. Bauckham nota que comentadores costumam dizer que as canções de Maria e Ana celebram a salvação do Deus de Israel e permanecem separadas das próprias mulheres cantoras. Ele considera que estes comentadores tenham perdido o ponto.

Em vez disso, ele sustenta que as canções dessas alegres mulheres 'celebram a ação graciosa de Deus para a própria cantora em seu significado para todos aqueles que também estão em condições humilhantes de vários tipos e então para todos os fiéis de Deus em geral'.(6, ênfase original).

Bauckham nota que Ana da tribo de Aser é a única personagem judaica no Novo Testamento não pertencente à tribo de Levi, Judá, ou Benjamin (77). Ele sustenta convincentemente que a menção de Ana e da tribo de Aser garante que a comunidade representada na narrativa de Lucas representa Israel como um todo, tribos do norte, bem como do sul, exilados, bem como os habitantes da terra (98). A mensagem da salvação na pessoa de Jesus veio para todo Israel.

Em seu capítulo mais longo e interessante (109,202), Bauckham postula que Joana, e seu marido Cuza, capataz de Herodes, são os ‘Andrônico e Junia’ mencionados tão carinhosamente por Paulo como seus parentes e companheiros presos em Rom 16:7. Ele observa que a referência ao marido de Joana é excepcional entre todas as referências dos Evangelhos às mulheres discípulas de Jesus (119).

Bauckham observa que Joana e Cuza, como membros da aristocracia herodiana de Tiberíades, moveram-se livremente no mundo romano(161). Joana, já como uma membra da aristocracia, escolhera ser uma seguidora de Jesus e por isso, tinha feito uma incrível travessia social para se tornar uma seguidora(145). Ela atravessara ainda mais, de acordo com os argumentos de Bauckham, as desigualdades sociais, quando ela se tornou, com o seu marido Andrônico/Cuza, uma missionária itinerante. Argumenta que o nome Junia é uma versão grega de Joana, provavelmente retomado por uma judia palestina que se tornou uma missionária cristã para o mundo grego(169).

Em um conto imaginário que deve ter sido divertido escrever, Bauckham, desenhando a partir da sua investigação, inclinações, e palpites, traça um esboço histórico desta intrigante mulher e seu marido (194-98). Paulo louva-os como 'distinguidos entre os apóstolos' e crentes em Cristo antes dele ter se tornado um crente (Rm 16:7).

Outro casal missionário jovem bastante provável era Maria de Cléopas e seu marido Cléopas(198). Em seu próximo capítulo, Bauckham argumenta que a frase 'Maria de Cléopas'(João 19:25) pode significar quer que Maria é uma solteira filha de Cléopas ou a esposa de Cléopas e ele opta por esta última(207-9). Rastrear tanto a união e linha de Maria e Cléopas prova-se fascinante, pois este estudo revela a importância dos papéis que desempenharam os parentes de Jesus na Igreja primitiva(203).

Bauckham diz que Cléopas foi o irmão do pai adotivo de Jesus, José(208). Maria e Cléopas tiveram um filho muito famoso, um homem chamado Simão ou Simeão, o mais importante líder cristão na Palestina por metade de um século(209). Certamente, de acordo com textos extrabíblicos, ele foi martirizado com 120 anos, uma idade que coloca-o na mesma categoria de importância como Moisés(209). Porque Simão/Simeão foi tão bem conhecido por toda sua reputação entre as igrejas, os primeiros leitores do Quarto Evangelho, João, não teriam tido qualquer dificuldade em identificar Maria de Cléopas como a sua mãe (209).

Bauckham, continuando a sua exploração de textos extrabíblicos e a luz que eles derramaram sobre as pessoas em torno de Jesus, cita uma tradição cristã pós-canônica nomeando Maria e Salomé como as duas irmãs de Jesus(p. 226). A História Copta de José menciona que Salomé seguiu Maria, José, e Jesus na fuga para o Egito(231).

Em seu capítulo concludente Bauckham aborda cada história de ressurreição nos Evangelhos separadamente e olha para as suas personagens mulheres. Quanto a Mateus, ele diz que o comando para as mulheres 'ir e contar'(Mt 28:10) manteve aplicação durante suas vidas. Porque é inconcebível que as mulheres teriam parado de contar a todos os que foram posteriormente dispostos a ouvir, o seu testemunho não é substituído pelo dos onze, como tem sido argumentado, mas inclui a sua própria validade contínua(279).

A narrativa da ressurreição de Lucas remete para os discípulos de tal forma a tornar claro que não só os onze, mas também um grupo maior está em mente; as mulheres pertencem a este grupo maior, diz Bauckham(82). Em João, a declaração de Maria Madalena 'Eu vi o Senhor'(João 20:18) vai depor sobre a realidade do Senhor ressuscitado e é tão persuasiva como um testemunho quanto o dos outros discípulos e Tomé(285).

Bauckham manipula bem o difícil problema da maneira como o Evangelho de Marcos termina. Ele argumenta que o silêncio das mulheres diz aos leitores que, embora as mulheres passam as notícias da ressurreição de Jesus para os discípulos do sexo masculino, a proclamação do evangelho ao mundo não começa neste momento. Na verdade ele não pode começar aqui, não porque as mulheres são mulheres, mas porque a proclamação deve começar a partir de que uma aparição do Jesus ressuscitado comissiona suas testemunhas(294) [Ele sustenta que os adendos seguiram um padrão convencional nas igrejas, retratado nos outros - Nota do Tradutor] .

Bauckham, claramente um refinado e metódico professor, escreve como um acadêmico para acadêmicos. Seu estudo 'Gospel Women' inclui interessantes suplementos da sua investigação, como uma refinada seção chamada 'Mulheres Judias como Donas de Propriedades'(121,35) e notas sobre as tribos do norte no exílio em 4 Esdras 13 e no livro de Tobias (101,7).

Seu livro teria sido melhor chamado ‘Gospel Women: Estudos de (algumas das) Mulheres Nomeadas dos Evangelhos’. Uma das esperanças é que ele aplique seus conhecimentos para uma sequência, algo como Gospel Women: Estudos de (mais) Mulheres Nomeadas no Novo Testamento.


Robin Gallaher Branch
Potchefstroom University for Christian Higher Education
Potchefstroom, South Africa

quarta-feira, 11 de março de 2009

As duas estórias sobre o Dilúvio Bíblico

Todas as pessoas que se dedicam a um estudo mais aprofundado do texto bíblico sabem que o texto do Pentateuco (Torah), foi escrito por pelo menos quatro diferentes indivíduos em diferentes períodos da história dos reinos de Israel e de Judá. Além destes 4 principais, teríamos pelos menos outros 2 redatores (ou equipes de redatores) que fizeram o trabalho de "colar" e "costurar" determinadas partes dos grandes textos básicos. O relato, pois, dos cinco primeiros livros da bíblia é o resultado de uma composição que durou pelo menos uns 5 séculos até tomar a sua forma final, parecida com a que temos hoje.

Um dos maiores problemas, no entanto, para aquelas pessoas, tais como eu, que sabem destas divisões do texto, sempre foi o de localizar detalhadamente a autoria das variadas partes do texto. Alguns trechos são relativamente fáceis de identificar. Já outros, possuem sutilezas que estão acima de um nível intermediário de conhecimento, demandando a ajuda de especialistas no hebraico e no estudo profundo da tessitura bíblica. Humildemente, reconheço estar ainda vários e vários degraus aquém deste nível.

No entanto, no ano passado, tive a felicidade de adquirir um espetacular livro neste campo. Trata-se de The Bible with Sources Revealed: new view into the five books of Moses, publicado por Richard Elliot Friedman. Este livro é uma verdadeira pérola para os nossos oceanos de ignorância. Ele traça minuciosamente, e em cores, as variadas fontes do Pentateuco. Ou seja, ele nos mostra, de forma, nítida, as partes escritas pelos variados autores, cada um com uma cor diferente. Com ele, podemos saber agora, de forma clara como foi costurado estas variadas composições ao longo dos séculos. Trata-se de um livro único e especial, sem pares conhecidos, por enquanto.

Para exemplificar o poder deste livro, resolvi expor para os leitores o caso do dilúvio bíblico. Se alguém ainda não sabe, nós temos dois relatos diversos sobre o dilúvio na bíblia. A primeira narrativa é do javista [entre 922 e 722 a.C]. Já a segunda narrativa foi elaborada pelo chamado autor sacerdotal [reinado de Ezequias 715-687 a.C.] . O fato é que os textos estão de tal forma entrelaçados que normalmente os lemos como se fosse um único relato, dado o efeito hipnótico da leitura sequencial. Tomando como base a separação elaborada por Elliot, resolvi separar os dois. O que vocês irão perceber é fantástico. Após a separação, temos em mãos dois relatos plenamente inteligíveis. Percebam:


1º Relato do Dilúvio (Autor Javista):

Depois disse o SENHOR a Noé: Entra tu e toda a tua casa na arca, porque tenho visto que és justo diante de mim nesta geração. 2 De todos os animais limpos tomarás para ti sete e sete, o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois, o macho e sua fêmea. 3 Também das aves dos céus sete e sete, macho e fêmea, para conservar em vida sua espécie sobre a face de toda a terra. 4 Porque, passados ainda sete dias, farei chover sobre a terra quarenta dias e quarenta noites; e desfarei de sobre a face da terra toda a substância que fiz. 5 E fez Noé conforme a tudo o que o SENHOR lhe ordenara. 7 Noé entrou na arca, e com ele seus filhos, sua mulher e as mulheres de seus filhos, por causa das águas do dilúvio. 10 E aconteceu que passados sete dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio. 12 E houve chuva sobre a terra quarenta dias e quarenta noites. e o SENHOR o fechou dentro. 17 E durou o dilúvio quarenta dias sobre a terra, e cresceram as águas e levantaram a arca, e ela se elevou sobre a terra. 18 E prevaleceram as águas e cresceram grandemente sobre a terra; e a arca andava sobre as águas. 19 E as águas prevaleceram excessivamente sobre a terra; e todos os altos montes que havia debaixo de todo o céu, foram cobertos. 20 Quinze côvados acima prevaleceram as águas; e os montes foram cobertos. 22 Tudo o que tinha fôlego de espírito de vida em suas narinas, tudo o que havia em terra seca, morreu. 23 Assim foi destruído todo o ser vivente que havia sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; e foram extintos da terra; e ficou somente Noé, e os que com ele estavam na arca.

e a chuva dos céus deteve-se. 3 E as águas iam-se escoando continuamente de sobre a terra, 6 E aconteceu que ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela da arca que tinha feito. 8 Depois soltou uma pomba, para ver se as águas tinham minguado de sobre a face da terra. 9 A pomba, porém, não achou repouso para a planta do seu pé, e voltou a ele para a arca; porque as águas estavam sobre a face de toda a terra; e ele estendeu a sua mão, e tomou-a, e recolheu-a consigo na arca. 10 E esperou ainda outros sete dias, e tornou a enviar a pomba fora da arca. 11 E a pomba voltou a ele à tarde; e eis, arrancada, uma folha de oliveira no seu bico; e conheceu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra. 12 Então esperou ainda outros sete dias, e enviou fora a pomba; mas não tornou mais a ele. Então Noé tirou a cobertura da arca, e olhou, e eis que a face da terra estava enxuta. 20 E edificou Noé um altar ao SENHOR; e tomou de todo o animal limpo e de toda a ave limpa, e ofereceu holocausto sobre o altar. 21 E o SENHOR sentiu o suave cheiro, e o SENHOR disse em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem; porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice, nem tornarei mais a ferir todo o vivente, como fiz. 22 Enquanto a terra durar, sementeira e sega, e frio e calor, e verão e inverno, e dia e noite, não cessarão.


2º Relato do Dilúvio
(autor sacerdotal)

Noé era homem justo e perfeito em suas gerações; Noé andava com Deus. 10 E gerou Noé três filhos: Sem, Cão e Jafé. 11 A terra, porém, estava corrompida diante da face de Deus; e encheu-se a terra de violência. 12 E viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra. 13 Então disse Deus a Noé: O fim de toda a carne é vindo perante a minha face; porque a terra está cheia de violência; e eis que os desfarei com a terra. 14 Faze para ti uma arca da madeira de gofer; farás compartimentos na arca e a betumarás por dentro e por fora com betume. 15 E desta maneira a farás: De trezentos côvados o comprimento da arca, e de cinqüenta côvados a sua largura, e de trinta côvados a sua altura. 16 Farás na arca uma janela, e de um côvado a acabarás em cima; e a porta da arca porás ao seu lado; far-lhe-ás andares, baixo, segundo e terceiro. 17 Porque eis que eu trago um dilúvio de águas sobre a terra, para desfazer toda a carne em que há espírito de vida debaixo dos céus; tudo o que há na terra expirará. 18 Mas contigo estabelecerei a minha aliança; e entrarás na arca, tu e os teus filhos, tua mulher e as mulheres de teus filhos contigo.

19 E de tudo o que vive, de toda a carne, dois de cada espécie, farás entrar na arca, para os conservar vivos contigo; macho e fêmea serão. 20 Das aves conforme a sua espécie, e dos animais conforme a sua espécie, de todo o réptil da terra conforme a sua espécie, dois de cada espécie virão a ti, para os conservar em vida.21 E leva contigo de toda a comida que se come e ajunta-a para ti; e te será para mantimento, a ti e a eles. 22 Assim fez Noé; conforme a tudo o que Deus lhe mandou, assim o fez. 8 Dos animais limpos e dos animais que não são limpos, e das aves, e de todo o réptil sobre a terra, 9 Entraram de dois em dois para junto de Noé na arca, macho e fêmea, como Deus ordenara a Noé. 11 No ano seiscentos da vida de Noé, no mês segundo, aos dezessete dias do mês, naquele mesmo dia se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram, 13 E no mesmo dia entraram na arca Noé, seus filhos Sem, Cão e Jafé, sua mulher e as mulheres de seus filhos. 14 Eles, e todo o animal conforme a sua espécie, e todo o gado conforme a sua espécie, e todo o réptil que se arrasta sobre a terra conforme a sua espécie, e toda a ave conforme a sua espécie, pássaros de toda qualidade. 15 E de toda a carne, em que havia espírito de vida, entraram de dois em dois para junto de Noé na arca. 16 E os que entraram eram macho e fêmea de toda a carne, como Deus lhe tinha ordenado; 21 E expirou toda a carne que se movia sobre a terra, tanto de ave como de gado e de feras, e de todo o réptil que se arrasta sobre a terra, e todo o homem. 24 E prevaleceram as águas sobre a terra cento e cinqüenta dias.

E lembrou-se Deus de Noé, e de todos os seres viventes, e de todo o gado que estavam com ele na arca; e Deus fez passar um vento sobre a terra, e aquietaram-se as águas. 2 Cerraram-se também as fontes do abismo e as janelas dos céus, e ao fim de cento e cinqüenta dias minguaram. 4 E a arca repousou no sétimo mês, no dia dezessete do mês, sobre os montes de Ararate. 5 E foram as águas indo e minguando até ao décimo mês; no décimo mês, no primeiro dia do mês, apareceram os cumes dos montes. 7 E soltou um corvo, que saiu, indo e voltando, até que as águas se secaram de sobre a terra. 13 E aconteceu que no ano seiscentos e um, no mês primeiro, no primeiro dia do mês, as águas se secaram de sobre a terra. 14 E no segundo mês, aos vinte e sete dias do mês, a terra estava seca. 15 Então falou Deus a Noé dizendo: 16 Sai da arca, tu com tua mulher, e teus filhos e as mulheres de teus filhos. 17 Todo o animal que está contigo, de toda a carne, de ave, e de gado, e de todo o réptil que se arrasta sobre a terra, traze fora contigo; e povoem abundantemente a terra e frutifiquem, e se multipliquem sobre a terra. 18 Então saiu Noé, e seus filhos, e sua mulher, e as mulheres de seus filhos com ele. 19 Todo o animal, todo o réptil, e toda a ave, e tudo o que se move sobre a terra, conforme as suas famílias, saiu para fora da arca.


Como é possível perceber, temos dois relatos bíblicos perfeitamente inteligíveis, através de uma leitura linear. As duas estórias são perfeitamente coerentes. E estando agora separadas, podemos analisar facilmente as suas diferenças, dentre várias possibilidades.

1 - A primeira e clara diferença se refere à forma pela qual os dois relatos se dirigem a Deus. O primeiro e mais antigo relato, elaborado pelo autor javista, se refere à Deus como SENHOR (este SENHOR é, na verdade, no texto em Hebraico o tetragrama YHWH ou YAHWEH). O autor sacerdotal não se utiliza deste termo, se dirigindo ao mesmo através de DEUS [El ou Elohim]. Este é um dado extremamente interessante. O autor javista, desde o início de sua narrativa, opta por afirmar que o nome de YHWH era conhecido desde os primeiros tempos, logo após a expulsão do Éden (Gen 4:26). No entanto, o autor sacerdotal, bem como o autor eloísta optam por afirmar que o nome de YHWH só se tornou conhecido a partir de Moisés (Êxodo 6:2-3). No relato do autor sacerdotal, YHWH se apresenta a Abraão como EL SHADDAY (Gen 17:1). Desta forma, o que diferencia o relato destes escritores quanto ao nome de Deus é a época na qual YHWH se apresenta aos homens.


2 - O autor Javista coloca 7 pares de animais limpos na Arca . Porém, dos animais que não são limpos, um par apenas (Gen 7:2-3). Já o autor sacerdotal coloca estritamente apenas um casal de cada espécie (Gen 6:19-20).


3 - O dilúvio do autor javista dura 40 dias e 40 noites (Gen 7:17). Já a contrapartida do autor sacerdotal faz com que o dilúvio transcorra por um período de 150 dias (Gen 8:2).


4 - O relato do autor javista nos mostra que Noé pode sair da arca após 47 dias (40 de chuva + uma semana navegando). Já o relato do autor sacerdotal nos oferece um relato bem mais complexo. Gen 8:4 nos fala que a arca repousou no Monte Ararat no décimo sétimo dia do sétimo mês. Se tomarmos o calendário lunar como base (29 a 30 dias intercalados)teríamos 177 + 17 = 194 dias. Sendo assim, Noé teria ficado 44 dias navegando após o dilúvio (194 - 150), até chegar ao monte Ararat.
O relato prossegue, nos dizendo, no entanto, que as águas só secaram por sobre a terra depois de um ano (Gen 8:13). Desta forma, tomando como base o calendário lunar, teríamos 354 dias.
A terra, no entanto só secaria definitivamente no vigésimo sétimo dia do segundo mês (Gen 8:14). Sendo assim, teríamos mais 56 dias. O cálculo final, nos fornece então um período de 410 dias (150 dias de tempestade e 260 dias até a terra secar definitivamente).


5 - Quando as águas vão se acalmando, Noé solta uma pomba no relato do autor javista (Gen 8:8). Já o autor sacerdotal opta por narrar um corvo no lugar da pomba (Gen 8:7). Interessantes anotarmos que no relato de Gilgamesh, do qual estes dois textos são dependentes, Uta-Napshtim (o herói da epopéia) solta respectivamente uma pomba, uma andorinha e um corvo. Vejamos:

"Ao chegar ao sétimo dia eu trouxe uma pomba e libertei-a.
A pomba voou e [então] retornou;
Como não tinha lugar para pousar, ela voltou.
Eu trouxe uma andorinha e libertei-a.
A andorinha voou e [então] voltou;
Como não tinha lugar para ela pousar, ela voltou.
Eu trouxe um corvo e libertei-o.
O corvo voou, viu as águas que baixavam.
Comeu, andou por sobre as águas (?), levantou-se (?)
e não voltou."



6 - No final do relato do autor javista, encontramos a passagem na qual Noé oferece um holocausto a Iahweh sob a forma do sacrifício dos animais e aves limpos (Gen 8:20). Ora, tal fato poderia se apresentar como uma contradição procriativa [dado que assim Noé estaria matando a possibilidade de reprodução daquela espécie]. No entanto, o paradoxo se desfaz justamente pelo fato de que na narrativa javista, entraram 7 pares de animais puros, em contraste com a narrativa sacerdotal.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Ad Cummulus do Dia - #1

1 - A história do textus receptus de acordo com vários pesquisadores [scholars], tanto conservadores quanto liberais.

2 - Confiram este antigo texto escrito por Samuel P. Tregelles sobre algumas variantes de importância dogmática encontradas nos manuscritos bíblicos.

3 - Um interessante argumento sobre a data e autoria dos evangelhos de João e Tomé podem ser vistos no blog do NT Gateway. O argumento se apóia justamente na necessidade do autor destes dois textos de buscar apresentar autoridade formal a partir de dentro do próprio evangelho - estabelecendo uma ligação direta entre aquele que escreve e a autoridade apostólica. Enquanto nos evangelhos mais antigos, tal necessidade não se observa, em um segundo momento - tal apresentação se apresentaria através da necessidade do estabelecimento de um link de legitimidade:


The more blatant signs, though, of the relative lateness of John and Thomas lie in their attempts at authorial self-representation. Where earlier Gospels like Mark and Matthew are anonymous and avoid attempting to project an authorial presence to lend authority to their work, the author of the Fourth Gospel makes claims to have been present, most notably in 19.35 and of course 21.24, “This is the disciple who testifies to these things and wrote them down (καὶ ὁ γράψας ταῦτα). We know that his testimony is true,” similar in style and literary function to the Incipit of Thomas, “These are the secret sayings which the living Jesus spoke and which Didymos Judas Thomas wrote down.” In both, the authorial self-representation legitimizes the message of the book in a way absent from the earlier Gospels but found explicitly in later texts like the Apocryphon of James. John’s claim enables the author to establish his Gospel’s authority – he knows that the things he reports are true because he was there. In Thomas, there is a further step: the author was present and, moreover, he was privy not just to the public teaching but also the secret teachings (Incipit, Thomas 13).


4 - Um voto de confiança - e uma sincera esperança [nesta virada de página na história] - no princípio de que - SIM, NÓS PODEMOS! Yes, we can! Brilhante jogada de marketing, porém - sincera verdade - Yes, we can!

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Paulo presenciou a morte de Estevão?


Gálatas - 1,22 - "De acordo que, pessoalmente, eu era desconhecido às igrejas da Judéia que estão em Cristo"

Atos - 7,58 - "Lançaram Estevão fora da cidade e começaram a apedrejá-lo. As testemunhas depuseram os seus mantos aos pés de um moço chamado Saulo (Paulo).

Em Gálatas Paulo afirma nunca ter estado em Jerusalém e em Atos, Lucas afirma que ele estava no apedrejamento de Estevão e que devastava a igreja em Jerusalém. Como resolver tal antinomia?

Para que possamos tentar elucidar um pouco deste problema, devemos deixar claro alguns pontos centrais — Lucas não conheceu Jesus. Isso é um fato. Nenhum evangelista o conheceu - outro fato. Todos evangelistas se utilizaram de fontes escritas e orais baseadas nas tradições acerca de Jesus. Da mesma forma, por incrível que isso possa parecer, o autor do evangelho segundo Lucas e dos Atos dos Apóstolos provavelmente não conheceu Paulo. Se o conheceu, seu contato foi insuficiente para dele ter sido um seguidor, companheiro ou discípulo de longa data.

As contradições entre os relatos dos Atos e as Cartas de Paulo, bem como as diferenças entre “teologia paulina” apresentada por Lucas e a teologia das cartas autênticas de Paulo são várias e extrapolam o escopo deste tópico. Neste sentido, como pontua Kümmel, “É fora de dúvida, pois, que nos três pontos básicos supracitados, a respeito da atividade de Paulo, o autor de Atos tem um conhecimento de tal forma deturpado a respeito dos fatos históricos, que dificilmente poderia ter sido companheiro de Paulo nas viagens missionárias deste.” KUMMEL, Introdução ao Novo Testamento, 1982, p.230)

Não só o autor de Lucas possui um conhecimento secundário acerca da trajetória de Paulo, como também toda a obra dos Atos dos Apóstolos de forma alguma pode ser considerada como um texto com pretensões historiográficas. Como pontua Helmut Koester, “É muito difícil encontrar no Livro dos Atos informações históricas úteis. Como o autor não escreve uma história, mas uma epopéia, ele não submeteu nenhum material tradicional ao escrutínio crítico do historiador.” KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, vol. 2, 2005, p.339-40)

Neste sentido, o material lucano deve ser encarado prioritariamente a partir de seu propósito apologético, qual seja – o de transmitir a um público gentio a trajetória de uma Igreja unificada, evitando-se e minimizando a idéia de conflitos de tal Igreja para com o Império Romano. É possível encontrar ecos de eventos e tradições antigas ligadas aos autores dos discursos encontrados em Lucas. Por outro lado, tais discursos só podem ser devidamente interpretados a partir da proposta apologética editorial do autor lucano.

Como mencionam Cláudio Moreschini e Enrico Norelli em seu História da Literatura Cristã Antiga grega e Latina: “Os discursos dos Atos são importantes para o estudo do pensamento do autor; as convenções historiográficas antigas permitiam por na boca dos personagens históricos discursos que eles não tinha realmente pronunciado, mas que serviam para iluminar o significado da situação.” [1995, p.98] Koester [p.340] concorda com Moreschini e Norelli quanto à inserção de discursos compostos pelo autor na boca de personagens históricos retratados como sendo uma técnica da historiografia antiga. No entanto, ressalta, que a mesma técnica era usada por autores de romances e epopéias, de tal forma a destacar o significado de eventos importantes.

Com relação à antinomia em questão, pontuamos a seguinte visão dos autores:

“A presença de Paulo na morte de Estevão (At 7,58) é excluída por Gl 1,22. Atos 8,3 não é histórico pela mesma razão, e consequentemente também Atos 26,10-11. É impensável que Paulo, de posse de cartas do sumo sacerdote, pudesse ter levado cristãos de fora da Palestina para Jerusalém para serem punidos. Nem o sumo sacerdote e nem o sinédrio judaico em Jerusalém jamais tiveram esses poderes de jurisdição.” [KOESTER, p.115]


“Por outro lado, é pouco provável que tenha recebido uma formação rabínica em Jerusalém junto ao grande Gamaliel (At 5,34; 22,3) [...] Que, no entanto, o centro de sua atividade de perseguidor fosse Jerusalém (At 9, 1-2), a ponto de assistir ao apedrejamento de Estevão (At 7,58; 8,1; 22,20), parece contradito por Gl 1,22, segundo a qual ele era pessoalmente desconhecido nas igrejas da Judéia.” [MORESCHINI e NORELLI, p.35-6]


Concluindo, então:

1 - Os relatos acerca de Paulo, sob a perspectiva lucana, devem ser avaliados sempre com reservas e cotejados com a informação das epístolas de Paulo, as quais possuem sempre uma primazia enquanto fonte histórica.

2 – O texto de Lucas não se conforma como um trabalho com pretensões historiográficas. O mesmo deve ser visto sob a ótica literária de uma epopéia e a partir do propósito apologético específico do autor.

3 – Os relatos sobre a atividade de Paulo na Judéia apresentam antinomias. Neste sentido, tendo, pois a concordar com as supracitadas posições de Koester, Moreschini e Norelli.

Existiu o Demônio Geraseno? [revisado 2013]


"Ao chegar ao outro lado, ao país dos gadarenos, vieram ao seu encontro dois endemoniados, saindo dos túmulos. Eram tão ferozes que ninguém podia passar por aquele caminho. E eis que puseram-se a gritar: 'Que queres de nós, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar antes do tempo?' Ora, a certa distância deles, havia uma manada de porcos que pastavam. Os demônios lhe imploravam, dizendo: 'Se nos expulsas, manda-nos para a manada de porcos' Jesus lhes disse: 'Ide'. Eles, saindo, foram para os porcos e logo toda a manada se precipitou no mar, do alto de um precipício, e pereceu nas águas."[Mateus 8:28-32]

 "Navegaram em direção à região dos gerasenos, que está do lado contrário da Galiléia. Ao pisarem terra firme, veio ao seu encontro um homem da cidade, possesso de demônios.  Havia muito que andava sem roupas e não habitava em casa alguma, mas em sepulturas. Logo que viu a Jesus começou a gritar, caiu-lhe aos pés e disse em alta voz: 'Que queres de mim, Jesus filho do Deus altíssimo? Peço-te que não me atormentes' Jesus com efeito, ordenava ao espírito impuro que saísse do homem, pois se apossava dele com frequência. Para guardá-lo, prendiam-no com grilhões e algemas, mas ele arrebentava as correntes e era impelido pelo demônio para os lugares desertos. Jesus perguntou-lhe: 'Qual é o teu nome?' - 'Legião', respondeu, porque muitos demônios haviam entrado nele. E rogavam-lhe que não os mandasse ir para o abismo. Ora, havia ali, pastando na montanha, numerosa manada de porcos. Os demônios rogavam que Jesus lhes permitisse entrar nos porcos. E ele o permitiu. Os demônios então saíram do homem, entraram nos porcos e a manada se arrojou pelo precipício, dentro do lago, e se afogou."[Lucas 8:26-33]

"Chegaram do outro lado do mar, à região dos gerasenos. Logo que Jesus desceu do barco, caminhou ao seu encontro, vindo dos túmulos, um homem possuído por um espírito impuro: habitava no meio das tumbas e ninguém podia dominá-lo, nem mesmo com correntes. Muitas vezes já o tinham prendido com grilhões e algemas, mas ele arrebentava os grilhões e estraçalhava as correntes, e ninguém conseguia subjugá-lo. E, sem descanso, noite e dia, perambulava pelas tumbas e pelas montanhas, dando gritos e ferindo-se com pedras. Ao ver Jesus, de longe, correu e prostrou-se diante dele, clamando em alta voz: 'Que queres de mim, Jesus, filho do Deus altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes!' Com efeito, Jesus lhe disse: 'Sai deste homem, espírito impuro!' E perguntou-lhe: 'Qual é o seu nome?' Respondeu: 'Legião é meu nome, porque somos muitos'. E rogava-lhe insistentemente que não os mandasse para fora daquela região. Ora, havia ali, pastando na montanha, uma grande manada de porcos. Rogavam-lhe, então, os espíritos impuros dizendo: 'Manda-nos para os porcos, para que entremos neles.' Ele o permitiu. E os espíritos saíram, entraram nos porcos e a manada - cerca de dois mil - se arrojou no precipício abaixo, e se afogavam no mar."[Marcos 5:1-13]

Comentário da Bíblia de Jerusalém sobre o relato de Marcos: "A aldeia de Gerasa, a atual Djerash, está situada a mais de 50 km do lago de Tiberíades, o que torna impossível o episódio dos porcos. É possível que Mc misture dois episódios distintos. Conforme o primeiro, Jesus teria realizado simples exorcismo, na região de Gerasa (vv. 1-8.18-20). Conforme o segundo (cf. Mt 8,28-34), Jesus manda os demônios para os porcos que se precipitam no lago." [Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2008, p.1765]

A interpretação típica desta passagem é a literal. Jesus encontra um possesso na região da Decápolis e pratica ali um exorcismo. Aquilo, no entanto, que parece ser mais um dos vários exorcismos praticados por Jesus pode, na verdade, ser outra coisa bem diversa daquilo que aparenta.

Essa passagem está cheia de possíveis complicadores, dado que não era de se supor a presença de uma criação de suinos entre judeus. De qualquer forma, para que possamos compreender a questão dos porcos, deve-se pontuar que a região de Gerasa (vista em Marcos) ou Gadara (vista em Mateus) fica na região da Decápolis (atual Jordânia), fora da Judéia. Logo, a presença de uma criação de porcos nessa região não é improvável, dado que era habitada por uma cultura não-judaica em sua maioria. Um outro dado relevante é a distância destas cidades até o mar. Gerasa fica a 48 km do Lago [mar] da Galiléia. Fica também a uma distância semelhante do Mar Morto.Já Gadara fica a 9,6 km. Conferira aqui o mapa da região. Seria realmente um evento grosteco a imagem de 2 mil porcos percorrendo uma verdadeira maratona para se suicidarem.

Mateus nos fala sobre dois endemoniados. Essa parece ser, na verdade, uma opção redacional peculiar do evangelista. Da mesma forma encontramos dois cegos em Jericó (Mt 20,30) e dois cegos em Betsaida (9,29). Tais "duplos" parecem ser um recuro estilístico mateano.

Por outro lado, tal episódio é apenas a imagem de algo bem diverso daquilo que uma interpratação literal possa transparecer. Ela se refere ao império romano. Podemos encontrar referências no Talmud e em outros textos judaicos nos quais os gentios são associados chamados de porcos, cães ou bestas.  Em uma destas passagens, encontramos: "As almas de não-judeus vem de espíritos impuros e são chamadas porcos" Talmud (Jalkut Rubeni gadol 12b). [para maiores detalhes, conferir aqui].





Na verdade, o próprio Jesus se referiu a eles nestas palavras [caso da mulher cananéia]. O nome do demônio que possuía o corpo daquele indivíduo (Mateus fala de dois endemoniados) nos dá a pista central - trata-se de uma legião. Não é atoa que se contava na casa dos milhares o seu número. Provavelmente o autor original de tal passagem se referia à X legião Fretensis.

Este texto não trata da expulsão física de demônios, mas é, na verdade, mapa cifrado da expulsão do império e da instauração do Reino de Deus, por Jesus. A saída do demônio é a libertação da opressão imposta pelo domínio romano.

Mas como poderíamos demonstrar tal hipótese?

Para tal, vamos observar alguns dados sobre a marcha das tropas romanas quando da guerra contra os judeus entre 66-73 d.C. Percebam como foi a política de destruição e terra arrasada imposta pelos Romanos à Gerasa e Gadara [segundo Flávio Josefo em seu Guerras Judaicas] :



Gerasa

"Ânio [o oficial comandante] tomou a cidade de assalto, matou mil jovens — todos aqueles que não tinham escapado —, aprisionou mulheres e crianças e permitiu que seus soldados saqueassem os bens. Finalmente incendiou as casas e marchou contra as aldeias circunvizinhas. Os que podiam, fugiram, os inválidos pereceram e tudo o que restou foi destruído pelas chamas" (G.J. 4.488-89) citado por HORSLEY, Richard & HANSON, John. Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995, p.190.



Gadara

A cidade de Gadara foi tomada pelos romanos sem muito esforço, dado que a elite da cidade secretamente fez um acordo com os romanos para protegerem seus bens. Porém... Os rebeldes fugiram da cidade... O que lhes foi feito?

"Vespasiano mandou Plácido com 500 homens de cavalaria e 3000 de infantaria perseguir aqueles que haviam fugido de Gadara... Quando os fugitivos subitamente viram a cavalaria em sua perseguição, invadiram uma aldeia chamada Betenabris antes de iniciar qualquer batalha. Plácido ordenou um ataque e após uma renhida batalha, que se estendeu até a noite, capturou as muralhas e toda a aldeia. Os não-combatentes foram mortos em massa, enquanto os fisicamente mais capazes fugiram. Os soldados saquearam as casas e depois incendiaram a aldeia. Entrementes, aqueles que tinham fugido agitaram a zona rural."


Acabaram pois se refugiando em Jericó:

"Plácido, baseando-se na sua cavalaria e animado por seus sucessos anteriores, perseguiu-os até o Jordão, matando a todos os que podiam capturar... Seu caminho até a região era um longo rastro de carnificina, e o Jordão... e o mar Morto ficaram cheios de cadáveres..." [G J, citado por HORSLEY, p.190-1]
Moeda romana - X Legião Fretensis




Sentiram alguma semelhança com uma grande trajetória percorrida pela legião perseguidora romana e pelos rebeldes perseguidos israelitas [De Gadara até ................................ os corpos serem jogados no mar] - boiando?



Nunca houve um tal milagre de Jesus expulsando um demônio chamado Legião de um possuído na região da Decápolis. E nem muito menos tais demônios entraram dentro de porcos que saíram percorrendo distâncias de 50 km até se jogarem ao mar. Nada disso aconteceu. Seria de fato a coisa mais maluca ver a enorme maratona dos milhares de porcos se jogando ao mar, praticamente enfartados de tanto correrem.



O relato dos evangelistas em nada tem a ver com um exorcismo praticado por Jesus pessoalmente. O que está contido nessa passagem é uma mensagem sutil de combate ao império romano. A região da Palestina
está possuída. E este demônio é Roma. Gerasa e Gadara simbolizam o mal perpetrado pelo domínio.

O evento histórico da chacina e destruição em massa perpetrada pelas tropas e legiões de Vespasiano estão bem nítidos na pele do evangelista que está escrevendo pouco após tais chacinas. A perseguição e morte dos rebeldes israelitas por vários e vários Km até chegarem ao mar morto e ao Jordão são invertidos pela narrativa do evangelista.

A implantação do Reino de Deus significa a expulsão do demônio [Roma] - a Legião expulsa [os porcos gentios] se precipita ao mar. O evento histórico é revertido na ótica do evangelista. Na implantação do Reino de Deus, são os romanos [a legião de demônios] que serão expulsos e destruídos.



Ps. O recém-publicado texto: "Gadara, Gerasa, os porcos e a Legio Frentesis" por Jones F. Mendonça nos trouxe este novo insight sobre o símbolo da heráldica da X Legião Fretensis. Trata-se exatamente de um Javali ou Porco Selvagem.
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