Para aqueles que não sabem, a crença corrente entre os povos semíticos sobre o post-mortem era a de que a alma acompanhava o corpo em sua peregrinação para o mundo dos mortos (no caso dos israelitas e judaítas - o sheol)! A estela de Sam´al, no entanto, datada do século VIII a.C. nos fornece uma outra perspectiva e abre um novo campo de investigações sobre o assunto, fazendo com que tal tema seja melhor esquadrinhado. A estela encontrada é basicamente uma lápide mortuária, elaborada ainda no período em que o sepultado se encontrava ainda vivo.
O texto assim diz:
"Eu, Kuttamuwa, servo de [o rei] Panamuwa, sou o único que supervisionou a produção desta estela para mim mesmo enquanto ainda estava vivo. Eu a coloquei em uma eterna câmara [?] E criou um banquete, nesta câmara: um touro para [o deus] Hadad, um carneiro para [o deus] Shamash e um carneiro para a minha alma que se encontra neste estela ".
A tradução para o inglês foi feita pelo Dennis Pardee, um professor de Civilização e Linguagem do Oriente Próximo na Universidade de Chicago. De acordo com ele, a palavra usado por Kuttamuwa em sua estela para alma é a palavra aramaica nabsh. O alfabeto utilizado é o fenício, mas linguagem é aramaica. A representação pictórica da estela é também impressionante, dado que mostra um indivíduo barbado [Kuttamuwa, provavelmente] sentado em uma cadeira se alimentando de pão e tomando vinho. Tal representação nos dá indicações sobre a concepção post-mortem naquela região e contexto histórico. Mais impressionante ainda é o fato de que Kuttamawa afirmar que a sua alma se separou do corpo e agora reside ali mesmo na pedra da estela! O autor da estela faz referência a duas divindades: Hadad e Shamash. O primeiro é o conhecido deus da tempestade, Baal. Já o segundo é o deus semítico do sol.
Tal descoberta é realmente desconcertante para as até então concepções sobre o post-mortem entre os semíticos. A concepção judaica antiga, por exemplo, era a de que os indivíduos, após sua morte, desciam ao reino dos mortos e dos túmulos e ficavam por lá em um estado enfraquecido de existência (perambulando desnorteados ou semi-adormecidos). A idéia de uma vida boa no post-mortem entre os semitas, regada a boa comida e vinho, é realmente um achado inusitado. Mais além, nos dá informações sobre a separação entre corpo e a alma.
Muito do que se fala, por exemplo, sobre as concepções cristãs sobre o post-mortem se referem à hipótese de uma incorporação de conceitos platônicos, quer nas primeiras gerações de cristãos, através da junção entre a filosofia grega e as escrituras, notadamente nos tratados de apologética e posteriores tratados teológicos, quer no próprio repensar conceitual judaico no pós-exilio babilônico, desenvolvido notadamente a partir do século III a.C. sobre as idéias de imortalidade da alma e da ressurreição dos corpos. Supostamente, a helenização advinda do império alexandrino e seus sucessores selêucidas e ptolomeus teria atuado como um melting pot cultural, facilitando a incorporação dos conceitos platônicos sobre a alma.
A estela samaliana introduz todo um novo rumo na pesquisa sobre tais conceitos. Tudo terá que ser revisto, a partir de agora. Encontramos ali, três séculos antes de Platão, em uma cultura tipicamente semítica, a idéia desconcertante de que a alma de um morto se incorporou a uma tumba e lá vive em uma condição de abundância, separada de seu corpo original. É importante frisarmos que aparentemente há ali nesta cidade de Sam´al uma certa herança cananéia misturada com a cultura hitita, por fim sob domínio assírio.
Ps 1 - Uma imagem em alta resolução da estela pode ser encontrada aqui
Ps 2 - A apresentação oficial sobre os dados de Zincirli, feita por Dennis Pardee e David Schloen, acaba de ser comentada pelo blog Biblia Hebraica.
7 comentários:
Achei muito bom. Acho que a arqueologia ainda vai desvendar toda a bíblia. Cada lugar do oriente médio tinha uma crença que apesar de não serem iguais se misturaram e daí dessa mistura de crenças as contradiçõs da bíblia.
Desvendar toda a bíblia, não irá, Esperança. No entanto, aos poucos, vamos caminhando para uma melhor compreensão sobre o que de fato se passava naquelas épocas.
É, temos que estudar para compreender. Só a bíblia não basta, é muito confusa.
A leitura única do texto bíblico nunca será capaz de dizer ao leitor - o que de fato é a bíblia - e o que de fato, ocorreu ao longo dos vários textos que a compõe!
Por sinal, das coisas mais tolas que já se inventaram em termos teológicos é a idéia de que "a bíblia interpreta a si mesma"! Isso é de uma tolice a toda prova!
Que legal, Flavinho! Interessantíssima a descoberta. E vc entende de tudo (como dizem nossos parentes), heim? Um grande abraço,
Dulce.
Entendo nada, Dulce! Vamos aos poucos, né... caminhando! Quero ver é o teu blog repleto de posts heim!
No deuterocanônico da Sabedoria podemos ver também essa concepção de sobrevivência da vida-alma, aguardando o Julgamento final quando ressuscitaria e poderia viver plenamente,ou os perseguidores, traidores, sendo condenados.
Macabeus também dá certos vislumbres.
Outrossim,lembramos da passagem em Atos quando achavam que Pedro havia morrido, e ele aparece na casa e questionam se não era o "anjo" dele. Isso mostra que tinham uma noção quanto a um período de vida intermediário entre a morte e a ressurreição.
Ou seja, no judaismo contemporâneo da Palestina dos tempos de Jesus, a crença predominante era a de que a vida pós-morte plena se daria com a ressurreição e a restauração de todas as coisas; e assim proseguiu com variações no cristianismo primitivo. Não se rechaçava a sobrevivência da alma, só não ocupava um lugar importante, não era frisada.
Devemos ter cautela também,amigos, em generalizar as crenças entre as populações semíticas, que era diversificadas, não identificando-as automaticamente umas com as outras.
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