sábado, 12 de setembro de 2015

A Morte do Menino Aylan Kurdi e o Problema do Mal no Cristianismo (Primitivo)


Massacre dos Inocentes, Nicolas Poussin (1626),  Wikipedia Commons
Causou extrema comoção, no mundo inteiro, o caso do menino Aylan Kurdi, de 3 anos de idade, que junto com seu irmão Galip (5 anos), e sua mãe Rehan morreram em um naufrágio de uma barca de 16 refugiados sírios, que, da Turquia, tentavam chegar a Ilha de Kos, na Grécia. O corpo de Aylan foi encontrado pela polícia turca, nas praias do Mar Egeu. Sua foto foi veiculada em todo mundo (e que não ousamos reproduzir aqui), comovendo e chamando a atenção para a profunda crise de refugiados na Europa, onde 2500 pessoas morreram, a maioria afogada no Mediterrâneo.

Aylan vivia na cidade de Kobani, perto da fronteira da Síria e Turquia, e sua família fugia dos confrontos entre as milícias curdas e o Estado Islâmico. A tia de Aylan, Teema Kurdi, vive em Vancouver (Canadá) e a família buscava chegar a União Européia para tentar asilo junto as autoridades canadenses, uma vez que solicitação anterior feita na Turquia havia sido indefirida.

Aylan é simbolo também de outra tragédia. Quando ele nasceu, a Siria era governada pelo regime ditatorial de Bashar El Assad, quando foi sacudida pela primavera árabe. O movimento, inicialmente pacífico, foi reprimido durante pelo ditador, e se transformou em guerra civil aberta. As potências ocidentais, assim como a Turquia e a Arábia Saudita interferiram no conflito com o objetivo de fortalecer rebeldes sunitas "moderados", enquanto o Irã, a mílicia Hezbollah do Libano, bem como a Rússia apoiaram a manutenção do atual governo Sirio. O resultado, além de 220 mil mortos, a quase destruição da infraestrutura do país, milhões de refugiados pelos países vizinhos, e a ruína de vidas como a do menino Aylan, privado da possibilidade de crescer. Entre os vários grupos rebeldes, se sobressaem a Frente Al Nusra, "franquia" local do Al Quaeda, e o mais radical e o tristemente célebre Estado Islâmico. O conflito é visto como de difícil resolução, houve todos os tipos de propostas, desde uma cooperação com jihadistas mais moderados para derrubada de Assad, até, na prática, os que propõem se aliar a eleEm suma, os interesses e jogos de poder de ditadores e potências internacionais arruinaram os sonhos e a vidas de milhões de pessoas. A morte de Aylan Kurdi é a face visível de mais um "massacre dos inocentes", agora em pleno século XXI.

Além das considerações geopolíticas, há o lado humano. O sofrimento do pai de Aylan, Abdullah Kurdi, ao não poder evitar a ruína de seu mundo e a morte de sua família. E faz questionar o sofrimento. E o mal no mundo. Como na recente capa da revista Veja, citando Santo Agostinho "Sendo Deus bom, fez todas as coisas boas, de onde então vem o mal?"  (Confissões Livro 7.5.7) .

Uma resposta, bastante sucinta, para o problema tem sido "Não há Deus", pois se existisse, não haveria o mal. Não entraremos nesse debate. No entanto, vamos utilizar o trabalho de um estudioso que não acredita em Deus, para  trazer luz a como os crentes lutaram para responder essas questões, e que moldaram de forma fundamental o cristianismo.

Bart Erhman, o estudioso de quem falamos, Professor da Universidade da Carolina do Norte em Chappel Hill.

Em seu livro, Evangelhos Perdidos, Erhman analisa a explicação do sofrimento na teologia bíblica tradicional do Velho Testamento, que ele chama de Profética [1]:

"O que deveriam pensar os teólogos e outros, então, quando em tempos posteriores o povo de Israel sofreu, sem a interferência de Deus? Muito da Bíblia Hebraica  tem haver com essa questão. A resposta padrão vem nos escritos dos profetas hebreus, como Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias e Amós. Para esses escritores, Israel sofre reveses militares, políticos, econômicos e sociais porque o povo pecou contra Deus e esta sendo punido por isso. Quando porém eles retornarem aos caminhos de Deus, seguindo as orientações para a vida comunal e a adoração que lhes haviam sido dadas por Moisés na Lei, Deus condescenderia e faria com que voltasse a ter uma vida próspera e feliz"[1]
No entanto, a história bíblica traz momentos onde os justos sofreram justamente por serem justos. O profeta Elias se questiona "porque os filhos de Israel deixaram a tua aliança, derrubaram os teus altares e mataram seus profetas a espada, e só eu fiquei, e buscam minha vida para me tirarem" (I Reis 19:10). Da mesma forma, o justo Jó, perde seus bens, sua família e sua saúde, e seus amigos o questionam, achando que havia algum pecado oculto que causava o seu sofrimento, mas a retidão de Jó é reconhecida pelo próprio Senhor. 

Erhman desenvolve em seguida o locus histórico de uma outra Teologia do Sofrimento, a Apocaliptica:

O sentido apocaliptico judaico surgiu em um contexto de extremo sofrimento, cerca de duzentos anos antes de Jesus, quando o governante sírio que tinha o controle da Palestina, a patria judaica, perseguiu os judeus extamente por serem judeus. Por exemplo, a circunsição - o sinal central da união pactual com Deus - foi proibida sob pena de morte. Claramente , para muitos pensadores judeus, esse tipo de sofrimento, contrário a clássica visão dos profetas, não poderia vir de Deus, uma vez que era o resultado direto de tentar segui-lo. Deveria haver alguma outra razão para o sofrimento, e assim algum outro agente responsável por ele (...) Além disso, havia forças cosmicas no mundo, forças malignas com o Diabo à frente, que estavam afligindo o povo de Deus. De acordo com essa perspectiva, ainda era o criador deste mundo e seria seu redentor final. Mas, no momento, as forças do mal haviam sido libertadas e estavam lançando devastação sobre o povo de Deus. Os apocalipticos judaícos, porém, sustentavam que Deus logo interviria e destruiria essas forças do mal em uma demonstração cataclísmica de poder, destruindo todos que se lhe opussessem, incluindo os reinos que estavam causando sofrimento a seu povo. Ele traria então um novo reino, no qual não haveria mais pecado, sofrimento, mal ou morte.[1]


Estudiosos como o Professor John J. Collins, de Yalle, citando o trabalho de Paul D Hanson,  (Harvard Divinity School), observam que a profecia pós-exílica, no final do século VI AC (cerca de 500 BC), encontrada em autores como Ageu e Zacarias já trazia as sementes do apocaliptismo. Collins avalia também a possível contribuição de precedentes babilônicos e do zoroatrismo persa, no entanto, o genêro se desenvolve plenamente e encontra seu apogeu no período helenístico e romano[2].


No Novo Testamento, o anseio pela intervenção direta do Senhor na história é amplamente atestado, o Apóstolo Paulo, no documento cristão mais antigo, sua carta aos Tessalonisseences (50 DC), escreve "Pois, dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá do céu, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois disso, os que estivermos vivos seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre.(I Tessalonissences, 4:16-17). Paulo deixa claro que os cristãos não deveriam ser ignorantes nesses ensinos "para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança"(v.13).


No entanto, a primeira e segunda geração de cristãos repousou, e o Senhor não voltou, e uma série de eventos perturbadores atingiram as comunidades de judeus e gentios cristãos, tais como a Perseguição de Nero (64 DC), e a destruição de Jerusalém e do Templo (70 DC), a Revolta de Bar Kochkba (132-135 DC), colocando novos desafios a sua fé. Neste contexto, surge uma nova interpretação, radical, da origem e aparente prevalência do mal no mundo. Continua o Professor Bart Erhman:

Entretanto, se essas visões [profética e apocaliptica] são qeustionadas pelas realidades presentes do sofrimento no mundo, o que acontece? Talvez, na verdade, a suposição toda esteja errada. Talvez esse mundo não seja a criação de um Deus único e verdadeiro. Talvez o sofrimento não esteja acontecendo como punição desse Deus ou apesar de sua bondade. Talvez o Deus deste mundo não seja bom. Talvez ele esteja causando sofrimento não porque seja bom e queira que as pessoas compartilhem sua bondade, mas porque seja maligno, ignorante ou inferior, querendo que as pessoas sofram ou não se importando se sofrem, ou talvez ele não possa fazer nada quanto a isso. Mas, se isso é verdade, então o Deus deste mundo não é o Deus único e verdadeiro. Deve haver um Deus maioracima disso tudo, que não criou este mundo. Nesse entendimento, o mundo material em si - a existência material em todas as suas formas - é inferior ou maligno na melhor das hipóteses e assim também é o Deus que o criou. Deve haver um Deus não material, não conectado com este mundo, acima do Deus criador do Velho Testamento, um Deus que nem criou este mundonem lhe trouxe sofrimento, que quer aliviar seu povo do sofrimento - não redimindo este mundo, mas libertando dele as pessoas, livrando-as do enclausuramento na existência material.[3]

"Jesus Chorou", James Tissot, 1886, Brooklin Museum, via Wikipedia Commons

Essa é que o Professor Erhman chama de visão "gnostica", compartilhada por vários grupos que foram associados a figuras como Simão o Mago, CerintoBasilides, o influente Valentino, e seus seguidores Marcus, Ptolomeu, Heracleon e Bardaisan. Posteriormente, encontraria sua expressão mais duradoura com Mani. Sua visão geral influenciou ainda outros pensadores,  como Marcião de Sinope


O que esses teologos e pensadores primitivos propunham é quase a expansão da "Hipótese" de Carlos Drummond de Andrade:

E se Deus é canhoto e criou com a mão esquerda?Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.
O correspondente ao "deus canhoto" de Drummond era o demiurgo,  a figura postulada por Platão ( 428-348 AC) como o "artesão" que criou o mundo. Como explica o Professor Donald Zeyl (Universidade de Rhode Island), na Enciclopédia Stanford de Filosofia, Em seu dialogo Timeu, Platão propõe:

The universe, he proposes, is the product of rational, purposive, and beneficent agency. It is the handwork of a divine Craftsman (“Demiurge,”dêmiourgos, 28a6), who, imitating an unchanging and eternal model, imposes mathematical order on a preexistent chaos to generate the ordered universe (kosmos). (Tradução) O universo, ele propõe, é o produto de um agente racional, com propósitos, e benigno. É moldado´pelo trabalho de um divino artesão (Demiurgo, "demiourgos", 28a6), que, pela imitação de um modelo imutável e eterno, impõe ordem matemático ao caos preexistente, gerando o universo ordenado (Kosmos).[4]
Assim, o Demiurgo não era, a princípio, mau. O Gnosticismo porém o reinterpreta, como explica o Professor Edward Moore, o Demiurgo, para os gnósticos:

According to Gnostic mythology (in general) We, humanity, are existing in this realm because a member of the transcendent godhead, Sophia (Wisdom), desired to actualize her innate potential for creativity without the approval of her partner or divine consort. Her hubris, in this regard, stood forth as raw materiality, and her desire, which was for the mysterious ineffable Father, manifested itself as Ialdabaoth, the Demiurge, that renegade principle of generation and corruption which, by its unalterable necessity, brings all beings to life, for a brief moment, and then to death for eternity. However, since even the Pleroma itself is not, according to the Gnostics, exempt from desire or passion, there must come into play a salvific event or savior—that is, Christ, the Logos, the "messenger," etc.—who descends to the material realm for the purpose of negating all passion, and raising the innocent human "sparks" (which fell from Sophia) back up to the Pleroma (Tradução) De acordo com a mitologia gnostica (genericamente) Nós, a humanidade, existimos no reino material, porque um membro do conselho divino, Sofia (Sabedoria), desejou concretizar seu potencial criativo inato, sem aprovação do seu consorte ou parceiro divino. Sua hubris (presunção), neste particular, resultou em materialidade bruta, e seu desejo, que era para o misterioso Pai Inefável, se manifestou como Ialdabaoth, o Demiurgo, o principio generativo, renegado e corrupto, que tem a constante necessidade de trazer todas as coisas a vida, por um breve momento, para que depois morram eternamente. Entretanto, como até mesmo o Pleroma não é, de acordo com os Gnósticos, isenta de desejo e paixão, há de existir um evento salvífico ou Salvador - que é, Cristo, o Logos, o mensageiro, etc - que desce ao mundo material com o propósito de anular todas as paixões, e manifestando as centelhas divinas na humanidade inocente (provenientes da queda de Sofia), de volta a Pleroma.[5]
Como já discutimos aqui no adcummulus anteriormente ensinavam os mestres gnósticos, O Logos, Cristo, desceu do seio divino e passando através dos vários níveis celestiais, chegou a terra e tomou forma humana, aparecndo nos tempos de Pôncio Pilatos como Jesus Cristo. Para alguns gnósticos Jesus apenas parecia ter um corpo humano, tal como os anjos que apareceram a Abraão. A maioria porém acreditava que o Espirito Divino Cristo se apossou de um homem chamado Jesus, e por meio dele realizou feitos maravilhosos e extraordinários. Assim, Simão, o Mago, segundo Irineu  de Lyon ensinava que apareceu como Filho aos Judeus e como Pai aos Samaritanos, tendo resolvido vir ao mundo - porque os anjos estavam governando-o mal, servindo a suas próprias paixões - para acertar as coisas, e alterou sua forma em sua descida, assemelhando-se aos principados e potestades por onde passou, e aos homens apareceu em forma humana, embora não fosse humano, que acreditaram que ele sofreu na Judeia, embora não tenha sofrido (Irineu, Contra Todas as Heresias Livro I: Capitulo 23).   Cerinto, segundo Hipolito de Roma, " afirma que Jesus não nasceu de uma virgem, mas da união natural de José e Maria, como o resto da humanidade; mas que ele excedia em justiça, prudência e compreensão todos os outros homens. E Cerinto afirma também que após o batismo de Jesus, Cristo veio a terra em forma de pomba e desceu sobre ele, vindo da parte da Soberania que habita acima do circulo da existência, e depois disso ele passou a pregar o Pai, que não era conhecido, e realizar milagres. E ele declara que no fim de sua paixão, Cristo o deixou, uma vez que era incapaz de sofrer, sendo um Espírito da parte do Senhor" (Hipolito, Refutação de todas as Heresias, Livro X, Capítulo 17). Também Basilides pregava que "o Pai não nascido e sem nome, (...) enviou seu próprio primogênito Nous (aquele que é chamado Cristo) para libertar, aqueles que acreditam nele, do Demiurgo criador do mundo. Ele apareceu então, na Terra em forma humana, para nações representadas por aquelas potestades, e realizou milagres. No entanto ele mesmo não sofreu a morte, mas Simão, um home de Cirene, sendo chamado, levou a cruz em seu lugar; e foi transfigurado para parecer com ele, para que acreditassem que ele era Jesus, e o crucificassem, por ignorância e erro, enquanto Jesus recebeu a forma de Simão, e estando de longe, ria deles" (Irineu , I:24, seção 4). Por fm, Marcion rejeitava as especulações e emanações divinas postuladas pelos gnósticos, e afirmava simplesmente que existia um Deus mau e vingativo, retratado nas escrituras judaicas, e criou o mundo material, e um Deus amoroso e compassivo, totalmente outro e desconhecido, que enviou Jesus Cristo, um ser celestial que vem ao mundo em semelhança de carne, em forma humana. A julgar pela quantidade de tinta que os pais da igreja utilizaram para refuta-lo, Marcião foi o mais temível adversário da proto-ortodoxia. [6] 

O gnosticismo porém não conseguiu ser predominante na Igreja primitiva. A visão gnóstica tinha vulnerabilidades, e elas foram rapidamente exploradas, sem pena, pelos Pais da Igreja. Pois se Cristo era de outra natureza, e só parecia ser humano, ou se sua união com elemento humano era apenas transitória, como poderia ter realmente experimentado o sofrimento, dor e morte, e se não sofreu dor e morreu, como poderia entender a condição humana? Pois se a condição humana é indigna, desonrosa, e sofredora não deveria o Salvador participar desta realidade para nos redimir? "Portanto, visto que os filhos compartilham de carne e sangue, Ele também participou dessa mesma condição humana, para que pela morte destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o Diabo" (Hebreus 2:14). Tertuliano, usando todo os recursos da retórica, faz uma poderosa crítica a Marcião, em particular, e aos gnósticos doceticos e separacionistas em geral.
Uma vez que, portanto, você não rejeitam a hipótese de um corpo como impossível ou como perigosa para o caráter de Deus, repudiam e censuram-no como indigno dele. Vejamos agora, começando a partir do próprio nascimento,  contra a imundície dos elementos geradores dentro do útero, a sujeira dos fluídos e do sangue, do crescimento desta carne que durante nove meses deve tirar seu alimento daquele lodo . Descreve-nos este ventre, que cresce dia a dia, pesado,atormentado, mesmo durante o sono inquieto, inconstante em seus sentimentos de desagrado e desejo. E agora igualmente contra a própria vergonha de uma mulher em trabalho de parto, que, no entanto, deve sim ser homenageado em relação aos perigos que enfrenta, e considerado sagrado em relação a (o mistério da) natureza. Claro que você também estão horrorizados com a criança, que é derramada na vida com os embaraços que o acompanham desde o ventre; Da mesma forma que você, é claro, a detesta mesmo depois de ser lavado, quando é vestida nas suas roupinhas, agraciado com a unção repetida, sorrindo para os que cuidam dela. Este curso reverendo da natureza, você, ó Marcião, (com prazer ) despreza; e ainda, de que maneira você nasceu? Se você detesta o ser humano com o seu nascimento; como pode então amar alguém? (...)Cristo, pelo menos, amou esse homem, esse coagulo formado no ùtero entre as imúndices, esse homem vindo ao mundo pelos orgãos vergonhosos, esse homem alimentado com carícias irrisórias. Foi para ele que ele desceu, foi para ele que pregou, por ele que, com todoa a humildade se rebaixou até a morte, e morte de cruz. Foi em aparência que ele amou aqueles que resgatou por tão alto preço? [7] 
Por fim, o último (?) capítulo de nossa história passa por Santo Agostinho. cuja história de vida segue a trajetória  desse post, e por sua inquietude com o problema do mal lhe ter levado a desenvolver a sua própria (e extremamente influente) teoria. Agostinho foi educado por sua mãe cristã, tendo contato com as explicações ortodoxas e tradicionais para o mal e sofrimento. Na juventude, se tornou maniqueu, movimento profundamente influenciado pelo gnosticismo, mas também se decepcionou, e depois de um breve período influênciado pelo ceticismo da Nova Acadêmia, voltou ao cristianismo.  Como Bispo de Hipona, Agostinho se tornou um profundo pensador e teólogo, e se debruçou com afinco numa explicação para o mal.
E ai voltamos a resposta a Agostinho, da pergunta que ele mesmo se fez:
(...)E no universo, até o que é chamado de mal, quando é controlado e colocado em seu lugar, só aumenta nossa admiração do bem; pois apreciamos e valorizamos o bem mais quando a comparamos com o mal. Pois o Deus Todo-Poderoso que, como até mesmo os pagãos reconhecem, tem o poder supremo sobre todas as coisas, sendo ele mesmo o bem supremo, nunca iria permitir a existência de qualquer coisa má no meio de suas obras, pois não seria tão onipotente e bom se não pudesse trazer coisas boas mesmo a partir do mal. Pois o que é aquilo a que chamamos  mal, senão a ausência do bem? Nos corpos de animais, doenças e feridas nada são senão a ausência de saúde;  para quando a cura é efetuada, isso não significa que os males que estavam presentes, ou seja, as doenças e feridas, saitam do corpo e foram para outro lugar: eles deixam de existir por completo; para o ferimento ou doença não é uma substância, mas um defeito na substância carnal, -a própria carne sendo uma substância, e, portanto, algo de bom, de que esses males - isto é, privações da dadíva que chamamos de saúde - são acidentes . Assim, da mesma forma, o que são chamados de vícios na alma são nada além de privações de bem natural. E quando eles são curados, eles não são transferidos para outro lugar: quando eles deixam de existir na alma saudável, eles não podem existir em qualquer outro lugar (...). [8].


"Ouve-se um pranto em Ramá, Raquel chora por seus filhos",
Selo das Ilhas Faroe,2001, via wikicommons
 Desta forma, na concepção de Agostinho, o que existe, o que foi criado por Deus é bom. O mal decorre do afastamento e corrupção das coisas criadas por Deus. Sendo o ser humano livre, fica implícita a possibilidade de se afstar de Deus e de se corromper.
É dificil superestimar a contribuição deste (e outros) trabalhos de Agostinho para teologia e filosofia ocidentais. Sua resposta passou a ser padrão no que se refere ao problema do mal desde então, seja por discordância ou concordância. É claro que questão continuou e continuará sendo discutida, mas em Agostinho o cristianismo tradicional encontrou sua linha mestra de argumentação racional, combinada com o profundo apelo a psichê humana de que Jesus Cristo, encarnação do logos divino havia sofrido dores, padecimentos, frustrações, tristezas e morte, como os seres humanos sofrem, e havia sido vitorioso sobre todas essas coisas.

Na verdade, quando dizemos que a concepção de Agostinho se tornou prevalente, não queremos dizer que ela refutou de forma incontestável os gnósticos, e eles nunca mais brandiram seus argumentos. Assim, como os gnósticos não eliminaram os apocalipticos e os adeptos da "visão profética" (como definida por Bart Erhman, acima). A questão é que esses movimentos foram racionalizações para entender a realidade e suas constantes mudanças. E a medida que o contexto mais amplo muda, a percepção da concretude do poder do mal também, sendo maximizada ou minimizada. Assim, ao longo da sua história, em momentos de intenso sofrimento e/ou de insegurança causada por transformações sociais intensas, movimentos apocalipticos tendem a florescer, ou ainda há um movimento de afastamento do mundo e do tudo que é material, que passa a ser visto como funcionalmente corrupta, racionalizada no discurso, até mesmo de grupos fundamentalmente ortodoxos, não pelo propósito de um Demiurgo, mas pelos efeitos da queda do homem, implicando que o fiel deve se abster do mundo e de tudo que ele representa, até mesmo de atividades comezinhas ( como os asceticos do sec. IV, que não casavam, e alguns grupos pentecostais do sec. XX, que não assistem televisão). No entanto, quando a fé cristã se expandiu, e havia a percepção de vitórias e conquistas religiosas, bem como avanços sociais, elementos da "teologia profética" se tornavam visíveis em um discurso triunfalista de que a devoção do povo de Deus a sua Palavra eliminaria os males desse mundo (tais como a escravidão, a exploração do trabalhador, o alcoolismo), como visto no protestantismo do séculos XIX e início do século XX, em movimentos liberais como o Evangelho Social,  e conservadores como a Teologia do Domínio. E mesmo em uma versão leiga, influenciou nos EUA o desenvolvimento da Doutrina do Destino Manifesto (a crença de que o povo dos Estados Unidos tem a missão de transformar o mundo, sendo o expansionismo geopolítico norte-americano apenas uma expressão dessa vocação).

Referencias Bibliográficas:

[1] Bart Erhman (2005), Os Evangelhos Perdidos, fl.177
[2] John J Collins (1998), A Imaginação Apocaliptica, fls. 48-65
[3] Bart Erhman (2005), Os Evangelhos Perdidos, fl.178-179
[4] Zeyl, Donald (2005 e 2014), "Plato's Timaeus", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2014 Edition), Edward N. Zalta (ed.), http://plato.stanford.edu/archives/spr2014/entries/plato-timaeus/. visualizado em 05.09.2015
[5] Edward Moore (2005), "Gnosticism",  The Internet Encyclopedia of Philosophy http://www.iep.utm.edu/gnostic/, visualizado em em 05.09.2015
[6] Tim Henderson, Marcion: A Beginer Guide, https://earliestchristianity.wordpress.com/2010/08/02/marcion-a-beginners-guide/, 02.08.2010.
[7] Tertuliano, Da Carne de Cristo, capítulo IV  http://www.earlychristianwritings.com/text/tertullian15.html
[8] Santo Agostinho, Enchiridion (Handbook) de Fé, Esperança e Amor, capitulo 11 http://www.ccel.org/ccel/schaff/npnf103.iv.ii.xiii.html


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