segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Observando Jesus pelas lentes de seus adversários: Parte 2b, feitos e ditos de Jesus no Talmude


Continuando, além da passagem em Sanhedin 43a, Professor Geza Vermes cita algumas outras que provavelmente aludem aos ensinos de Jesus, indiretamente, bem como em curas efetuadas em seu nome por um díscipulo Jacó (Tiago) de Kfar Secaniah:

"Uma máxima do Rabi Abbahu de Cesaréia, contemporâneo do século III de Orígenes, refere-se quase com certeza a Jesus: - Se um homem lhe diz "Eu sou Deus, ele esta mentindo. Eu sou o filho do Homem [um ser humanõ] , no final ele vai lamentar [pois como todo ser humano, vai morrer] . Eu vou subir aos céus, terá, mas não vai cumprir (yTaan 65 b). A segunda citação de Jesus aparece no Talmude Babilônico (b Abodah zara 16b-17a) atribuídas a rabis ou Taanaim da passagem do primeiro ao segundo século. O famoso R. Eliezer ben Hircano recorda que um cristão judeu, chamado Jacó de Kfar Seranaya, interpretou "Não trarás a casa de (...) teu Deus o salário de uma prostituta, no sentido de que tal dinheiro só seria adequado à construção de uma latrina para o Sumo-Sacerdote. Quando Eliezer confessou que era incapaz de compreender a explicação Jacó apresentou-lhe uma exegese atribuida a Jesus que aparentemente vinculou Miquéias 1:7 (já que elas [ todas as suas estátuas] foram ajuntadas com o salário da prostituição, tornar-se-ão de novo salário de prostituição", a Deuterônomio 23:19 para chegar a explicação: "De um lugar de corrupção elas vieram, e ao lugar de corrupção elas retornarão". Eliezer ficou impressionado com o talento interpretativo de Jesus, e, por causa disso, foi acusado de heresia e excomungado pelos outros rabis." [1]

Jacó de Quefar Secania (ou Quefar Sama) foi um carismático curandeiro judeu-cristão citado diversas vezes na literatura rabínica. As personalidades os quais ligado sugere que esse Jacó atuou na virada do século I para o século II DC. Jacó prometia realizar curas em nome de Jesus de Nazaré e transmitia seus ensinamentos. Uma história o liga ao Rabino Eleazar Ben Dama e seu tio Ismael ben Elisha. Jacó, em nome de Jesus, quis curar Eleazar, que tinha sido picado por uma cobra venenosa. O Rabi Ismael vetou a oferta. Eleazar, desejando ser curado, tentou argumentar com seu tio, mas morreu antes de conseguir faze-lo [2]

Além dessas prováveis referências a Jesus, existem algumas outras, mais incertas, citadas pelo Professor Craig Evans, Acadia University (Canadá) [3]:

"Rabi Meir costumava ensinar 'Qual o significado (do verso), "Aquele que for pendurado no madeiro é maldito de Deus" (Dt 21:23)? Havia dois irmaos gêmeos que eram parecidos. Um reinava sobre o mundo todo e outro se tornou um ladrão. Após um tempo, o que era bandido foi pego e então crucificado em um madeiro. Todos que passavam e viam, diziam "parece que o Rei foi crucificado" (bTalmude, Sinédrio 9:7).

Evans acredita, contra a opinião do célebre talmudista Morris Goldstein, que o texto acima possivelmente alude a Jesus, a cena da crucificação e o "Titulus Crucis" ("Jesus Nazareno Rei dos Judeus"). Evans cita Marcos 14:48 ("Disse-lhes Jesus: Saístes com espadas e varapaus para me prender, como a um salteador?), o termo utilizado para ladrão ou salteador nesta passagem do Talmude teria uma conotação de agitação politica e revolucionária ou rebeldia, semelhante a encontrada na descrição de Flavio Josefo "A Judéia estava infestada de salteadores ... qualquer um podia se proclamar Rei" (Antiquidades 17:285). Essa passagem, juntamente a referência de Jesus como próximo ao governo (ou realeza) em Sinédrio 43a, sugere Evans, seriam uma resposta sarcástica a alegada descendência davídica de Jesus [4]

Prof. Mahlon H Smith [5], da Universidade Rutgers (New Jersey State University), apresenta uma possível alusão a Jesus, encontrada no Talmude Babilônico, Tratado Sinédrio, 106 b. Aqui um minim (ou herege, termo frequentemente usado para designar os cristãos) pergunta ao Rabi Hanina Bar Hama (220-260 DC) qual era a idade de Balaão quando ele foi morto. Hanina diz que os registros não mencionavam essa informação, mas que, no entanto, ele achava que ele teria morrido com 33 ou 34 anos de idade pois "homens de sangue e de traição não viverão metade dos seus dias" (Salmos 55:23). O Minin responde que Hanina devia estar certo, pois no relato sobre Balaão estava escrito que "Balaão, o coxo, tinha 33 anos de idade quando foi morto por Finéias, o ladrão" (bTalmude, Sinédrio, 106b). O Professor Smith observa que Balaão, o falso profeta citado no livro de Números que levou Israel a pecar, seria um codinome utilizado por alguns rabis para se referir a Jesus (em virtude da censura exercida pela Igreja). Da mesma forma 33 anos, seria a idade de Jesus, somando os 30 anos que ele tinha quando iniciou seu ministério (Lc 3:23), com as três páscoas mencionadas no evangelho de João. Ainda segundo Smith, Finéias, o Ladrão, seria também o codinome para Pôncio Pilatos, porque ele se apropriou dos fundos do Templo, incidente mencionado por Josefo (Antiguidades 18:60-62).

Um pouco mais hesitante que Mahlon D Smith, Travis Herford acredita que o codinome Balaão se aplicava a Jesus. Evans é cético quando a essa identificação, assim como Bruce Chilton, Morris Goldstein e Joseph Klausner. Chilton observa que dificilmente os rabinos dariam um nome tão respeitável a alguém como Pôncio Pilatos [6] Entretanto, poderíamos objetar que independente da identificação com Pilatos, o Talmude já usa o termo Finéias, o Ladrão, que é no mínimo estranho se o objetivo era se referir ao venerável sacerdote Finéias, neto de Arão.

Por fim, Jonh.P. Meier cita Klausner, e o julgamento deste quanto as tradições encontradas no Talmude:

Klausner (Jesus of Nazareth, 46) faz o seguinte resumo das afirmações confiáveis na tradição rabínica (1) Yeshu de Nazaré praticava a feitiçaria, istoé, fazia milagres e desencaminhava Israel; (2) Ele zombou das palavras dos sábios (istoé, dos mestres reverenciados de Israel). (3) Interpretava as escrituras da mesma forma que os fariseus (4) Tinha cinco discípulos (5) Dizia que não viera para tirar nada da Lei ou acrescentar algo (6) Foi enforcado (ou seja, crucificado) como falso mestre. Como é facil de ver temos aqui apenas uma imagem invertida e polêmica de várias afirmações dos quatro evangelhos [7]

Assim, o Talmude conteria tradições que compartilhariam a perspectivas básicas das atividades de Jesus, milagres, crítica a religião tradicional, o compartilhamento das crenças básicas dos fariseus, como anjos e ressureição dos mortos, seu relacionamento com Lei, ter discípulos e sua morte violenta. Geza Vermes [8] observa que, provavelmente, os rabinos reinterpretaram antigas tradições populares de Jesus como homem sábio e realizador de milagres, correntes na Palestina, atribuindo esses feitos a prática de feitiçaria. Assim, a imagem popular de Jesus retratada nos evangelhos e reavaliada sob um prisma negativo.

"Quando essas duas acusações são examinadas, elas se tornam uma representação pejorativa do retrato Josefano de Jesus. Pois desencaminhador/falso profeta e "feitiçeiro" são equivalentes deturpados de "homem sábio" e "milagreiro" [8]

O ponto levantado por Vermes, da reinterpretação de antigas tradições sobre Jesus é relevante, principalmente quando comparamos a parte reputada autêntica do polêmico "Testimonium Flavianum", escrita por Flavio Josefo no século I. Josefo diz que Jesus fazia feitos paradoxais ou incríveis, sendo a palavra paradoxa ambigua, isto pode significar tanto maravilhoso quanto controverso. O Talmude (e Celso) diz que Yeshu praticava feitiçaria (o que torna implícito que praticava feitos "controversos", explicados pela suposta prática de magia). Josefo diz que Jesus "era mestre de homens que recebem a verdade com prazer. Ele atraiu muitos judeus e muitos gentios". Os rabis dizem que Yeshu era uma ameaça, pois "levou Israel a pecar" e "o fez apóstata", dando a entender uma popularidade razoável , aliciando e desencaminhando um grande número de díscipulos. Dizem também que um processo foi iniciado, e um arauto saiu a covocar as testemunhas de defesa. Josefo afirma que "os principais homens entre nós o denunciaram". Por fim, no Talmude Jesus é executado e "levantado" (no madeiro), talvez por ordem de "Fineias, o Ladrão" (codinome para Pôncio Pilatos), enquanto Josefo diz que Pilatos o crucificou. É ainda possível que haja uma recordação dos motivos que levaram a execução (algo que Josefo não declara abertamente), de que Jesus foi acusado de ser um insurgente que ameaçava a ordem estabelecida, "O Rei dos Judeus".

Graham Stanton também compatilha da percepção de Geza Vermes ao observar que as acusações imputadas a Jesus nessa passagem do Talmude - que ele praticou feitiçaria e levou Israel a pecar - também são encontradas em Dialogo com Trifo, de Justino, já mencionado.Para Stanton essa tradição rabínica é de dificil interpretação, e mais complicado ainda é data-la com segurança. No entanto, acrescenta que não fora a grande correspondência com a acusação que circulava em circulos judaicos, na metade do século II, de que "Jesus era um mágico e enganador do povo" (Dialogo com Trifo 69:7), seria tentador descartar essa passagem do Talmude como resultado de polêmicas do terceiro século, ou mesmo posteriores, entre judeus e cristãos.Entranto, a terminologia semi-técnica encontrada no grego de Dialogo com Trifo é muito próxima do hebreu das tradições rabínicas. Assim, conclui Stanton, essas tradições teriam raízes profundas.[9]

Em resumo, quais são as informações que podemos obter do Talmude (se é que alguma informação pode ser obtida)?

Além de Johannes Maier, Edgard Leite é bastante cético em relação ao Talmude, "que não parece conter referências claras ao Jesus histórico" [10]

Por outro lado, Professor R. T. France, de Oxford, conclui que, pelo menos a partir do início do segundo século, Jesus era conhecido e abominado como alguém que realizava feitos incríveis e que tinha conquistado tão grande número de seguidores que foi devidamente executado como "aquele que levou Israel a pecar". Embora depreciativo, pelo menos é, de uma maneira distorcida, evidência para o impacto razoável dos milagres de Jesus e de seus ensinos. A conclusão de que isto é inteiramente dependente da pregação cristã, e que "judeus do segundo século adotaram de forma acrítica o pressuposto de que ele realmente existiu " é certamente resultado do ceticismo dogmático. Tal polêmica, frequentemente utilizando "fatos" completamente distintos do que os cristãos acreditavam, muito dificilmente teria surgido em menos de um século em torno de uma figura inexistente." [11]

Também Geza Vermes, observa que histórias como a de Jacó de Kfar Secaniah "indicam que um judeu cristão palestino no final do século I DC estava se dedicando, como os apóstolos e seus seguidores imediatos nos Atos dos Apostolos, a curar e pregar em nome de Jesus. Ainda, os textos rabínicos mostram que o mundo oficial rejeitava essas práticas, mas que judeus e até mesmo rabinos não necessariamente se opunham a elas na sociedade judaica palestina do fim do século I" [12]

Da mesma forma, Max Wilcox, Professor da Universidade de North Wales, avalia que o Talmude e outros escritos da literatura rabínica embora mencionem Jesus de forma muito esporádica, e devam ser utilizados pelo historiador de forma muito cautelosa e criteriosa, acabam por endossar as afirmações evangélicas de que Jesus curava e operava milagres, ainda que atribuindo esses feitos a feitiçaria. Além disso, preservam uma memória de que ele era um mestre, tinha discipulos, e de que pelo menos no início do período rabínico nem todos os rabinos tinham se convencido totalmente de que ele era um herege e enganador. [13]

Assim, em vista do exposto, podemos dizer que passagens sobre Jesus no Talmude devem ser avaliadas com cautela, reconhecendo que mais provavelmente trazem um "eco" de informações e tradições antigas, frequentemente de forma âmbigua, não devendo ser tomadas ao "pé-da-letra". Analisando em conjunto com o Dialogo com Trifo (69:7), e Celso, podemos dizer que o Talmude reforça a percepção de alguns fatos da vida de Jesus, encontrados nessas e em outras fontes, sua execução violenta em conflito com as autoridades, sua fama de realizador de milagres e feitos extraordinários (atribuidos por alguns rabinos a atos de feitiçaria), de que ele conseguiu alcançar um grupo razoavel de discipulos ("pois levou Israel a pecar e fez apóstata"), ainda que, por vezes, apareçam alguns sinais de que a hostilidade não é completa, de que, como já disse Geza Vermes, judeus e até mesmo rabinos não necessariamente se opunham a elas na sociedade judaica palestina do fim do século I .

Desta Forma, em vista das observações de Klausner, Vermes e Wilcox, acima, concluimos que as tradições populares sobre Jesus na Palestina, (provavelmente) teriam sido conservadas pelos rabinos por várias gerações, e não eram necessariamente hostis. Com o tempo, a medida que os caminhos de cristãos e judeus foram se afastando, essa memória foi sendo reinterpretada de forma cada vez mais polêmica e hostil.

Referências bibliograficas:

[1] Geza Vermes, O Autêntico Evangelho de Jesus , fl.19, nota 33
[2] Geza Vermes, Quem é quem na época de Jesus, fls. 152-153
[3] Craig Evans; Jesus in Non Christians Sources in Bruce Chilton & Craig Evans; Studying the Historical Jesus, fl. 447
[4]Craig Evans; Jesus in Non Christians Sources in Bruce Chilton & Craig Evans; Studying the Historical Jesus, fl. 449
[5] Mahlon H. Smith, Into His Own, Jesus and Christians in non Christians sources, 191
http://virtualreligion.net/iho/jesus.html, acessado em 23.12.2009
[6] Craig Evans; Jesus in Non Christians Sources in Bruce Chilton & Craig Evans; Studying the Historical Jesus, fl. 449, nota 16
[7] John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I fl. 115, nota 62
[8] Geza Vermes, Jesus in His Jewish Context fl. 98
[9] Graham Stanton, Gospel Thuth?New Light on Jesus and the Gospels, fl. 157
[10] Edgard Leite, Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito: Uma Parábola Talmudica in Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História, fl. 291.
[11] R T France The Evidence for Jesus, fl. 39
[12] Geza Vermes, Quem é quem na época de Jesus, fls. 154
[13] Edwin Yamaguchi, Jesus Outside the New Testament: What is the Evidence, in Wilkins & Moreland; Jesus Under Fire, fls. 214)

domingo, 20 de dezembro de 2009

Observando Jesus Pelas Lentes De Seus Adversários - Parte IIA: O Talmude e a imagem popular de Jesus entre seus conterrâneos

Continuamos nossa analise da imagem popular de Jesus com base nas fontes polêmicas judaicas e apologéticas cristãs da antiguidade. Na parte 1, avaliamos fontes do sec. II, Celso (que afirma estar repetindo informações que circulavam em fontes judaicas), e os escritos de Justino e Tertuliano (que buscavam rebater percepções negativas que também existentes entre os judeus). Verificamos que sua origem, seus feitos extraordinários, e sua morte violenta foram atribuidos a uma união ilícita de seus pais, de seu aprendizado de magia, e da impossibilidade das reinvidicações messianicas. Concluimos, seguindo a tese do Prof. Geza Vermes, que essa é uma reinterpretação polêmica de uma visão popular anterior - atestada em Josefo, de que Jesus de Nazaré era percebido entre os judeus do sec .I como um mestre sábio, hasside e realizador de feitos extraordinários - e se torna cada vez mais incisiva como reação as reinvidicações cristãs da origem dávidica de Jesus, de seus milagres como prova de sua messianidade, e de sua morte (e ressureição) como cumprimento das escrituras.

Analisaremos agora o Talmude, que considero uma das fontes mais difíceis no que se refere ao Jesus Histórico, em virtude de ser tardia, e das eventuais alusões serem objeto de intensa polêmica entre os estudiosos, primeiro no que diz respeito a se realmente uma dada passagem faz uma menção a Jesus de Nazaré, segundo se traz uma tradição histórica antiga, com um núcleo que remonte ao 1° século DC, ou é apenas uma reação dos rabinos do sec. V ou VI, ou até mesmo de meados da Idade Média, a pregação do evangelho pelos cristãos.

Introdução

Professor Edgard Leite, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, descreve o desenvolvimento e formação do Talmude:

Os fariseus se consideravam detentores de uma tradição espacífica, a assim chamada Mishnah, literalmente "Ensinamento". Tratava-se de um conjunto complexo de disposições legais e filosóficas, conhecida também como a Torah oral. Aceitava-se que se constituia em material complementar à Torah escrita e instrumental para sua correta compreensão. Tal tradição não tinha uma aceitação ampla no período anterior ao levante. Para os fariseus, no entanto, era a espinha dorsal de uma particular visão de mundo. A sua origem, do ponto de vista mítico, era entendida como associada à revelação a Moisés, tendo sido transmitida por ele a Josué, depois aos anciãos, aos profetas, aos homens da Grande Assembléia (zoferim, os escribas), e finalmente aos líderes dos fariseus. A tradição atribui as academias dos mestres Hilel e Shamai o início do processo de organização deste vasto material , ainda em períodos anteriores ao primeiro levante. Após a guerra, depois de 73, vários sábios estiveram envolvidos no processo de consolidação da Mishnah (...) os sábios que contribuiram para essa versão final da Mishnah, cerca de 150, passaram a ser tradicionalmente conhecidos como tannaim, isto é, os professores. (...)
A partir do século III, a discussão sobre os conteúdos da Mishnah foi conduzida pelos amoraim, os expositores. Foram eles que começaram a elaborar o Talmude, ou Gemara, isto é o comentário, no caso sobre a Mishnah
. (...) Um texto mais ou menos consolidado foi fixado por Ashi, diretor de Sura por 52 anos, em torno de 427, e consolidado por Rabina, em torno de 499. Aos capítulos da Mishnah , assim, foram acrescentados os comentários dos amoraim. Estes constituem a Gemara, de fato atas de reuniões ou coletâneas de opiniões, que envolvem não apenas afirmações amoraitas, mas tanaíticas e de fontes diversas. Não se trata, portanto, de um livro de história. O seu objetivo é a exegese da Torah, a reflexão sobre os infinitos sentidos da revelação do Sinai, a discussão ampla sobre a natureza da condição humana segundo a perspectiva judaica
[1]

Desta forma, o Talmude não é propriamente um livro de história, e as alusões (ou supostas alusões a Jesus), são, em sua maioria, indiretas ou ambiguas.Em alguns casos a (suposta) alusão é feita em forma de parabola ou lenda, referindo-se a tradições correntes sobre Jesus ou dos cristãos.

Um motivos adicional para que as alusões fossem veladas, e que como as passagens atribuem imputações de nascimento ilegitimo e pratica de feitiçaria a Jesus, o Talmude esteve sujeito a desconfiança e vigilância da Igreja e autoridades cristãs durante a Idade Média. Em 1264, a Igreja ordenou a exclusão dessas passagens, consideradas ofensivas, e, eventualmente, o Talmude foi incluido no Index Librorum Prohibitorum em 1554, pelo papa Paulo IV.

Avaliação da Fonte. É mesmo Jesus?

Desta forma, o que se discute é se determinada passagem realmente se refere a Jesus, e se há e qual seria o núcleo histórico daquela afirmação. Alguns estudiosos entendem que o valor histórico das referências do Talmude é nulo, ou quase nulo. Enquanto outros acreditam que podem obter valiosas informações com base nas tradições dos rabis, independentes ou complementares aos evangelhos.

No lado "cético", temos como principal referência o Professor Johann Maier:
"Johann Maier representa uma posição radical ao sustentar que não apenas a Mishná, como também ambos os Talmudes, não contém qualquer menção direta e autêntica a Jesus de Nazaré (...) Sua conclusão é que mesmo os textos originais dos dois Talmudes nunca falaram de Jesus: tais referências seriam, todas, interpolações posteriores, inseridas na idade média" [2]

"Ele [Maier] antes afirma que o nome de Jesus foi inserido no processo secular de formação do Talmud apenas secundariamente em contextos existentes, a saber, como reação a provocações cristãs" [3]

Já entre aqueles que acreditam que o Talmude apresenta algumas (poucas) tradições historicamente independentes sobre Jesus, provenientes do periodo tanaitico, temos como "campeão" e representante o Professor Joseph Klausner (1874-1958), da Universidade Hebraica
Klausner (Jesus of Nazareth, 23) menciona vários baraitas do tempo do Rabi Eliezer Ben Hircano e do Rabi Ismael (final do século I e início do século II d.C). Baraitas são doutrinas rabínicas antigas que não foram incluidas no Mishná, porém foram preservadas nos documentos posteriores (Tosefta, dois Talmudes). [4]

Em contraposição a isso, outros autores, como por exemplo, J. Klausner, acreditam poder encontrar pelo menos algumas tradições antigas e historicamente confiáveis no Talmud [5].

Entre essas posições "extremas", existem várias opiniões intermediárias que parecem acomodar a maior parte dos críticos, e que, nesse primeiro momento, buscaremos seguir.

Jesus e sua execução no Talmude

Thiessen e Merz [6] apontam Sanhedrin 43a, abaixo, como representante de muitos textos possíveis, por se referir a execução de Jesus e seus (cinco?!) díscipulos e a uma tradição que provavelmente procede do periodo tanaítico.

Isso com certeza foi dito: Na véspera da páscoa Yeshu [de Nazaré] foi pendurado (ou enforcado); Pelos quarenta dias que antecederam sua execução, um arauto saiu e anunciou: ‘Ele será apedrejado porque praticou feitiçaria e induziu Israel à apostasia: "Jesus de Nazaré será apedrejado porque praticou feitiçaria e induziu Israel a pecar". Qualquer um que saiba algo em seu favor deixo-o vir adiante e o defenda. Porém, uma vez que nada foi alegado em seu favor, ele foi pendurado a véspera da páscoa.
Rabi Ulla pergunta: “Você supõe que ele era alguém de quem alguma defesa pudesse serfeita?“Ele não era um instigador, a respeito de quem as Escrituras dizem: ‘tu não o pouparás, nem o ocultarás’?” Com Yeshu (Jesus), contudo, foi diferente porque ele tinha conexões com o governo (ou a realeza).
Os rabinos ensinaram: Yeshu tinha cinco díscipulos: Mathai, Naqai, Neçer, Buni e Thoda. Quando apresentaram Mathai, este lhes disse: deve Mathai ser executado: pois foi dito: quando [Mathai] virei eu e aparecerei diante do rosto de Deus!? [ Sl. 42,3]. Eles lhes responderam: pois bem, Mathai deve ser executado, pois foi dito: quando [Mathai] ele morrerá e seu nome perecerá? [Sl. 41,6]
(semelhantes jogos de palavras seguem-se também para os outros quatro díscipulos de Jesus) [7]

Segundo o Professor Edgard Leite [8], apenas 1 dos quatro manuscritos mais antigos (todos da Idade Média) do Talmud, trazem a expressão Ha Nozri, (Nazareno ou de Nazaré). Nos outros manuscritos é simplesmente Yeshu. Leite lista como possíveis explicações a auto censura da maioria dos copistas, ou de que algum deles teve acesso a alguma tradição especial, ou então pela simples decisão de acentuar uma identificação/justaposição. Uma vez que uma identificação ainda mais explícita de Yeshu com Jesus de Nazaré seria altamente problemática para copistas judeus em um ambiente majoritariamente cristão, é bem possivel que a omissão do termo "de Nazaré" nos outros manuscritos esteja relacionado ao receio de possíveis reações da Igreja. O Prof. David Flusser, acredita que Yeshu seria a pronuncia galiléia do nome Yeshua [9].

Tanto Maier como Klausner aceitam que na passagem, na forma como está hoje, Yeshu se refere a Jesus de Nazaré. No entanto, Thiessen e Merz [10], esclarecem que a posição de Maier é a de que o nome de Jesus foi incluido secundariamente no relato da execução de algum mago ou aliciador, que fora casualmente morto na véspera da páscoa. Desta forma, observa Thiessen, se Maier estiver certo, "fica impossibilitada qualquer conclusão histórica".

Thiessen e Merz comentam as informações trazidas pelo Baraita :

"Uma vez que se trata de explicar um processo legal rabínico, os acusadores e executores da punição são, exclusivamente autoridades judaicas, o que com certeza não é historicamente exato.
De modo correspondente, Jesus deve ser apedrejado e depois o cadaver deve ser suspenso. O "deixar suspenso na véspera da Páscoa" é fortemente destacado em relação ao apedrejamento, talvez para ajustar a narrativa ao conhecido fato de Jesus foi crucificado (pelos romanos). (...)
Jesus praticou feitiçaria, uma acusação que estava circulando desde muito cedo, uma vez que já aparece na pericope de Belzebu (Mc. 3.22). Ela naturalmente interpreta os milagres de Jesus como feitiçaria e magia satânica quando não se via neles a ação de Deus. Mas é muito improvável que esta acusação esteja relacionada a execução de Jesus".
"Jesus desencaminhou Israel e o tornou apóstata. Esta acusação absolutamente não reproduz a postura dos acusadores de Jesus.; Aqui um processo histórico posterior é retroprojetado na vida de Jesus. Somente retrospectivamente - depois que os cristãos se separam do judaísmo como grupo religiosos, aboliram a observância da Lei (principalmente, a circunsição, o sábado, e as regras alimentares) e cultuavam Jesus como Kyrios e Deus - os judeus poderiam apresentar Jesus como alguém que desencaminhou Israel, levando-o a idolatria"
[11]

A forte ênfase sobre o "deixar suspenso no madeiro", apontada por Thiessen e Merz parece também ser uma forma de enfatizar o destino vergonhoso de Yeshu-Jesus, pois esta escrito em Deuteronômio: "Se um homem tiver cometido um pecado digno de morte, e for morto, e o tiveres pendurado num madeiro, o seu cadáver não permanecerá toda a noite no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto aquele que é pendurado é maldito de Deus. Assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança.(Deuteronômio 21:22-23)". A idéia dos cristãos, de um Messias Crucificado (logo, pendurado no madeiro) foi considerada absurda por seus contemporâneos. Em o Dialogo com Trifo, Justino alude as profecias de Daniel 7:9-27, e Trifo prontamente responde "Estas mesmas escrituras, meu caro, nos ordenam esperar aquele que, como Filho do Homem, receberá do Ancião de Dias o Reino Eterno. Mas este que vocês chamam de Cristo não teve honra ou glória, tanto assim que a maldição contida na Lei de Deus caiu sobre ele, porque foi crucificado [11].

CONTINUA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

[1]Edgard Leite, Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito: Uma Parábola Talmudica in Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História. fl. 280-281
[2] John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I, fl. 101
[3] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 94
[4 John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I, fl. 112, nota 47.
[5] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 95
[6] Talmude Babilônico, Tratado Sinédrio (bSahedrin) 43a
[7] Edgard Leite, Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito: Uma Parábola Talmudica in Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História, fl. 286.
[8] David Flusser, Jesus, fl.16
[9] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 95, nota 38
[10] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 95-96
[11] Justino Martir, Dialogo com Trifo, Capítulo 32


sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Pluralidade entre os movimentos nas raizes cristãs

Há um texto chave no Evangelho de João a partir do qual podemos refletir sobre a pluralidade do movimento cristão nascente entre segmentos religiosos da região de onde emergiu. Ele ganha maiores cores quando o examinamos à luz de outras importantes passagens sobre o nascimento da igreja cristã.


João 4.1-42. A passagem por Samaria, o diálogo com a Samaritana e a imagem da colheita.
Antes, gostaria de expor uma questão embaraçosa por parte de alguns eruditos. Costuma-se apontar que nesta época do ano tal poço ( cujo termo empregado, pegé, também designa “nascente”) - que se alega ter sido objeto de descoberta arqueológica [1] - deveria estar transbordando, o que seria um sinal inequívoco, senão cômico, da não-historicidade do relato. J.P. Méier é um que, infelizmente, comete tal temeridade [2].

Como engenheiro agrônomo, sei que para um poço transbordar não basta haver chuva em uma determinada época. Condições agroecológicas determinantes da capacidade de infiltração de água, retenção de água no solo, capilaridade do solo, profundidade do solo, que estão interligados com a fitofisionomia do local; isso sem contar que variações no índice pluviométrico ocorrem, pode haver anos em que determinado índice de determinado mês sofra grandes variações, ainda mais extrapolando vários séculos. Por isso considero no mínimo irresponsavelmente precipitado alguém querer ser tão seguro numa afirmação como essa. [ Nota de acréscimo: segundo o professor D.A.Carson, o poço teria pelo menos 30 metros de profundidade, e Jesus teria se encontrado lá à hora sexta, ou meio-dia [3]].

Esta passagem de João nos remete a diversas alusões para com o Antigo Testamento e expectativas messiânicas, com implicações para grupos e povos como os Samaritanos, vizinhos mas repudiados pelos judeus, em que se estabelece a importância da tradição ser guardada, memorizada e relatada pela sua significação por um ambiente de grupos oriundos, ou compostos significativamente por pessoas ligadas a eles. A começar pela passagem da Judéia para a Galiléia por Samaria; habitualmente seguia-se o vale do Jordão. Poderia remeter à profecia de Isaías 11.12:, em que O Espírito de Deus “reagrupará os banidos de Israel e reunirá os dispersos de Judá”. Confira Os. 2.2; Ez.37.16-24. A referência aos maridos da samaritana remete a II Reis 17.24-41 [4], a respeito das divindades das 5 tribos babilônicas que se estabeleceram em Samaria após a conquista do Reino do Norte. Josefo, em Antiguidades Judaicas, IX, 14,3, dedica uma menção e reflexão a respeito. Nesta passagem de Reis, de forma mais aproximada, implica na verdade que teriam sido 7 divindades, pois duas das tribos levaram duas divindades, passando a adorar YHWH igualmente.

A perspectiva "messiânica" samaritana tinha ênfase no papel deste como profeta e sacerdote, como o prometido em Dt.18.15, o profeta semelhante a Moisés. Não advogamos aí as injunções forçadas quanto ao “Messias Filho de José” para com o evangelho. Embora possamos refletir paralelamente uma figura remetida por muitos judeus cristãos a Jesus, à qual a comunidade de Samaria iria se opor- o ‘Filho de Davi”, que seria a vindicação dos judeus ante os gentios e samaritanos, inclusive em questões territoriais. Jesus parece ter tido uma relação quase ambivalente com essa perspectiva, assumindo partes dela e também negando outros aspectos. Quando no encontro com a mulher siro-fenícia [Mt. 15.21-28], Jesus ironiza-a clamando por ele como “Filho de Davi”, pois pela lógica ela teria era medo e/ou ojeriza com essa figura, que seria perigosa para ela e seu povo. Como muitas outras vezes, Jesus não é condescendente com quem pode se aproximar dele com dubiedade, dissimulação. Tal figura seria um adversário para ela, alguém que poderia lhes ( i.e., ela e seu povo) expulsar da terra...estaria ela sendo dissimulada apenas para obter o que queria, ou manifestava uma fé sincera? O restante da história mostra que não era o caso, que para ela a aflição de sua filha era mais importante do que os conflitos.


Podemos visualizar a imagem da "água viva", e a referência antecedente a “dom de Deus”, na ótica da esperança do "messias" sacerdotal. À luz da passagem da leitura messiânica de Dt. 18.18, o "messias" seria o Profeta à semelhança de Moisés, um libertador; João retrata que alguns dos discípulos mais chegados de Jesus compartilhavam de tal expectativa, vide a menção a “aquele que Moisés escreveu na Lei” (1,45), no convite de André para Natanael em João 1.45. Raymond Brown [5] assevera sobre a fala da personagem da mulher samaritana: “Em nenhuma parte mais Jesus é chamado ‘Salvador’ durante o ministério público. Contudo, o mais que se pode provar de Jo 4,4-42 é que os samaritanos usam um título que não é tradicionalmente messiânico – não há nenhuma alusão à preexistência”.

Samaritanos esperavam o “Taeb” [6],
uma figura "messiânica" de menos vulto (tanto que não se vê de forma comum referências a ela como Messias), de caráter sacerdotal. Aqueles que buscam afirmar que o evangelho joanino apregoaria que Jesus se identificara como o enviado divino da perspectiva samaritana necessitam crer que as diversas partes em que se recusa a se auto-identificar tanto com as reivindicações samaritanas quanto as dos judeus, foram uma inserção posterior corretiva...pois invocando a imagem do Ruah – em pneumati kai aletheia – transpassaria-se as conotações de disputas políticas e territoriais em seu messianato... Estaria significando “não sou o messias da política de aspiração de poder judaica nem a samaritana”, transcendendo os dois ideários. Nesse ponto, podemos entender o que, no ponto de vista de seus opositores, teria sido um insulto a Jesus ao lhe dirigirem a pergunta retórica “Você é um samaritano?”(Jo.8.48). O autor do evangelho, na passagem que temos referente ao versículo 22 neste mesmo capítulo 4, deixa claro que não estava usando Jesus para uma apologia do movimento samaritano contra o judaico.

Alguns exegetas ingenuamente acabam partilhando do ponto de vista dos interlocutores e concluem que de fato Jesus se identificara com o partido Samaritano. Lamentamos tamanha ingenuidade. Pois com pouco esforço de raciocínio nos lembramos que um grupo extremista, que se afirma pelo contraste com outro grupo, tende a pensar das posições não-alinhadas como tomar partido com os outros. Recentemente, não o vimos tais declarações por parte de autoridades estadunidenses em sua guerra unilateral contra o “Terror”? Não eram assim também ambos os lados da Guerra Fria? Novamente lembramos que não basta buscarmos apenas lançar mão de dados para ter erudição, senão caímos na falácia estatística das “imagens semi-aderentes”; é importante antes o bom concatenar lógico das proposições. Coerentemente, teriam que especular se Jesus teria mesmo parte com o demônio...

O cenário didático da colheita é corrente em Jesus. Por exemplo, confira-se Mt. 9.37. A semeadura ocorria em outubro/novembro e a colheita-março/abril. Se estabelece aí um contraste entre os campos literais verdes, ainda longe do tempo da colheita. “Levantai e vede”: grupos samaritanos vindo de Sicar. Os campos da missão dão os sinais de que estão no ponto de colheita. Então, já haviam sido semeados anteriormente! Era para os discípulos participarem da alegria dos trabalhadores anteriores, e não serem recalcitrantes por não terem sido eles– vs. 36-37. Afinal, como a fala no evangelho de Marcos, “Aquele que não está contra nós é a nosso favor” - Tradução Bíblica Ecumênica


Quem semeara? Terá sido por isso que Jesus “necessitou passar por Samaria?” Vs. 38 – o trabalho dos cultivadores será proveitoso para a comunidade cristã, para a Igreja. Interessante essa imagem. Se o Cristo é o semeador, e os apóstolos os colhedores, os outros então cultivaram a partir do trabalho de Cristo, e não por conta própria.

Podemos perceber que neste evangelho poderia estar contido[7], de forma embutida ou mais clara para aqueles do seu contexto, uma resposta a questionamentos sobre o papel de samaritanos e grupos ligados a eles na igreja cristã; os que supostamente promoviam este questionamento podiam se apegar a Mateus 10.5, considerando, como no apontado por Bauckham [8] , que é um erro considerar os evangelhos como destinados apenas às comunidades locais, e sim que a partir delas eles tinham a perspectiva da difusão entre as igrejas e delas para a evangelização. Especificamente quanto ao ambiente da comunidade joanina, acompanhamos Raymond Brown [9]: “longe de ser um cristianismo de isolamento, ele foi um confronto em plena corrente com as sinagogas e outras igrejas, e que apesar de tendências sectárias, ele orava pela unidade com os outros cristãos. Mas era um cristianismo desafiadoramente diferente e volátil – tão volátil que estava destinado a ser absorvido nos movimentos cristãos mais amplos (de direita e de esquerda) que surgiam no primeiro século".

Esse motivo no evangelho, de buscar apontar a legitimidade das missões a partir de Samaria, pode mostrar as ligações precoces logo no início da atividade missionária da igreja, dentre os conversos samaritanos e helenistas, e que estaria também ligado também à polêmicas cristológicas, envolvendo a alta cristologia da perspectiva do evangelho joanino. Por exemplo, aponta-se João Batista como precursor, se considerarmos que Enon, próximo a Salim (João 3.23) fora situada em Samaria.
 Assim, desconstruiria-se os argumentos de que encontrar indícios de pensamento helenista, ou de âmbitos culturais além de estritamente judaicos, em textos neotestamentários - especialmente evangelhos - é certeza de que seja desenvolvimento tardio. Não adoto aqui a perspectiva radical de que o evangelho joanino é uma costura de diversas tradições independentes e criadas em épocas diferentes, sendo o “discípulo amado” narrador uma figura simbólica ou um “rosto coletivo”, a personificação do grupo [10].

Podemos saltar para, bem mais à frente, um episódio crucial para a expansão do movimento cristão. Em Atos, o discurso de Estevão parece trabalhar em cima da Torá Samaritana. Vemos isso analisando-se à luaz de temas quanto à idade de Terach implicada como 145, não 205 anos. Abraão sepultado em Sh'kem. Filo de Alexandria, em “De Migratione Abrahami”[11], coloca que Abraão deixou Haran depois da morte de Terach. Também no seu discurso há influência do livro de “Jubileus”, no enterro dos ossos dos irmãos de José em Heron – Jb 1.27-29; 2.1. 

O caráter indissiocrático das idéias de Estêvão, comparadas com o evangelho lucano e com Atos – destacando os demais discursos onde se apresenta ideias coerentes com o que se mostra ser a do compilador do livro- atesta para a fonte independente do discurso [12], sem dúvida de origem dos “helenistas” cristãos [13], ou como especulamos mais aqui, dos conversos samaritanos, acrescentando a importância dada ao patriarca José característica do imaginário efraimita. O livro o apresenta como “denunciado” pelos judeus da dispersão que eram ex-escravos (At 6.9).

O
s helenistas foram a Samaria com a perseguição. Não acredito que apenas a oposição ao culto do Templo serviria como elo tão forte. Importante: eles não tinham comprometimento apologético nem com o Templo, tampouco, tal como Jesus, com o Monte Gerazim. Para o evangelista, eles tinham contemplado a Shekinah, ou seja, Jesus era lócus do culto. Ele “habitou entre nós”, retoma a idéia do Tabernáculo, ou da resposta de Deus a Davi-Salomão, de que ia de tenda em tenda.

Os Sete, incluindo Felipe que era dotado de desenvoltura para pregar entre gentios e samaritanos (At 8.4-13 e 26-40) – terão sido um grupo-referência, não contando com o status dos Doze mas sendo também um referencial alternativo? Os helenistas encontraram acolhida em Samaria porque ali poderia já existir um grupo coeso, importante? Então, tal grupo já vinha dos tempos da atividade de Jesus. Isso possibilitou a missão saída da perseguição desencadeada após o martírio de Estêvão, sendo que daí Pedro e João foram enviados lá a partir das notícias – Atos 8.14, expressando o quadro desenhado em João 4.38.  Serviram então como uma ponte, um referencial maior entre os dois grupos, o mais identitariamente judaico e o... nem tanto. Tiago passara a ser o líder em Jerusalém, no lugar de Pedro... este, é encostado na parede por Paulo por se intimidar pelo “partido judaizante”, tendo passado por uma saia justa em um momento que tinha que tomar uma posição(Gl. 2.11-14). E João (além da grande probabilidade de fundar/ dirigir comunidades na Ásia Menor, especialmente Éfeso)?.. 

Referências

[1] BROWN, Raymond E.
The Gospel According to John I-XII
[2] MEIER, J.P. Um Judeu Marginal.
[3] CARSON, D.A. The Gospel According to John.
[4] CULLMAN, Oscar.
Das origens do Evangelho à formação da teologia cristã.
 [5] BROWN, Raymond E.
A comunidade do discípulo amado
[6] SCARDELAI, D. Movimentos Messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias.
[7] CULLMAN, Oscar. Early Christian Worship
[8] BAUCKHAM, Richard. The Gospels for All Christians: Rethinking the Gospel Audiences
[9] BROWN, Raymond E. A comunidade do discípulo amado
[10] - BAUCKHAM, Richard. Testimony of the Beloved Disciple, The: Narrative, History, and Theology in the Gospel of John
     - HENGEL, Martin. Johannine Question
     - MOLONEY, Francis J., HARRINGTON, Daniel J., The Gospel of John
[11] ALEXANDRIA, Philon. De Migratione Abrahami.
[12] BLOMBERG, Craig. From Pentecost to Patmos: An Introduction to Acts Through Revelation
 [13] HENGEL, Martin.
Acts and the History of Earliest Christianity
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