terça-feira, 21 de abril de 2009

O que entra e o que sai


Marcos 7.14-23:

A seguir, chamando novamente a multidão, dizia-lhe: ‘Escutai-me todos e compreendei. Não há nada exterior ao homem que, entrando nele, possa torná-lo impuro, mas o que sai do homem, eis o que o torna impuro'.


Alguns autores consideram tal passagem como uma atribuição de ditos a Jesus, que não ocorreram, decorrente de uma necessidade apologética à comunidade do autor.

Algumas considerações certamente levam a um ceticismo a respeito da fidedignidade da narrativa ser histórica-correspondencial.

Há um comentário editorial, intercalado entre o vs.15 e 17, que não se encontra em todos os manuscritos: Quem tem ouvidos para ouvir ouça. Prosseguindo, os discípulos pedem explicações a respeito do dito, o que configura que, primeiramente, ter-lhes-ia soado enigmático. E assim, segundo o evangelista, Jesus lhes fizera uma explicação direta, no que o escritor acrescenta o comentário editorial: Com isto, ele declarava que todos os alimentos são puros. E prossegue detalhando explicações que Jesus teria dado a respeito.

Podemos ver em Atos, Gálatas, Romanos, e diversos outros escritos, que a questão dos alimentos, seja relacionando-se às leis judaicas, seja relacionando-se a alimentos que foram ou possivelmente foram oferecidos em oferendas pagãs, geraram grandes controvérsias no período que antecedeu a redação de Marcos (hipóteses válidas variando de perto de 60 a 70 d.C.) . Na epístola aos Gálatas, Paulo narra um episódio em Antioquia em que confrontara Pedro, que fora fonte de Marcos para seu evangelho [um episódio que deve ter sido muito precoce, dado que ainda emprega a referência aramaica para o nome Cefas, tal qual o emprega na passagem de I Coríntios 15,3-5, onde refere-se a uma confissão que ele própria havia recebido], relativo a preceitos rituais judaicos envolvendo as refeições.

Fica a pergunta: se houvera uma ocasião em que Jesus tivesse explicado tal situação tão direta e incisivamente, como haveria a brecha para tão grandes polêmicas, com incertezas ainda por cima pairando sobre o círculo dos apóstolos? Lucas não registra em Atos nenhuma associação de Pedro quanto a sua visão em Jope (10,9-16) a um dito de Jesus a respeito, nem há algo correlato na Assembléia de Jerusalém de Atos 15. E o fato do narrado ser intercalado logo antes da partida de Jesus para fora da Galiléia, em terras de pagãos, pode ser um indicativo de como fora estrategicamente arranjado inseri-lo aí.

Entretanto, ao se apontar para a conclusão de que tais palavras foram simplesmente colocadas na boca de Jesus e o episódio todo inventado, deparamo-nos com algumas complicações.

O próprio fato da polêmica e divergência ter envolvido os apóstolos, seria um obstáculo a que se cresse que a polêmica seria resolvida dessa forma. Aqueles dos apóstolos ou testemunhas ainda vivos na ocasião da composição de Marcos, ou em maior número, os ligados aos círculos deles, discípulos diretos, e ao círculo de Tiago (que na passagem de Paulo, parecia endossar a posição diversa da passagem de Marcos) teriam desacreditado a passagem, aberto brecha para o evangelho ser desacreditado em escopo maior, e depor-se-ia contra a legitimidade e fidedignidade do escritor na comunidade de fé. O tiro poderia sair pela culatra.

Também, polêmica toda era indissociada de uma outra questão, mais espinhosa, de peso ainda maior: a da circuncisão – vide Gálatas, Atos 15, etc. O evangelista poderia ter se valido do mesmo artifício para tentar elucidar a questão ou resolvê-la. Lucas registra que na Assembléia de Jerusalém, ao descartar-se a obrigação da circuncisão para pagãos convertidos, não se menciona as questões de pureza ritual, mas antes se recomenda absterem-se de carne asfixiada, do sangue, e da carne oriunda dos sacrifícios pagãos – Atos 15,29. Outrossim podemos ver, em Romanos, que tal polêmica persistira a respeito.

O relato se insere coerentemente diante de uma ocasião de debates com os fariseus, junto com seus discípulos, diante de uma multidão. Podemos imaginar um cenário que dificultaria a investida dos fariseus diante do escândalo do comentário de Jesus. Mateus a retoma também de forma suficientemente harmoniosa – Mt.15. É coerente com ensinamentos registrados em Lucas, p.ex. Lc.11,37-44, e passagens de cunho mais universalistas tais quais Lc. 4,25-27. Estaria em sintonia com o quadro expressado, sobretudo em Mateus, a respeito da posição em que Jesus se via ao tratar da Lei, como nas célebres passagens Ouvistes o que foi dito aos antepassados...Eu porém vos digo... (Mt.5 vs. 21-22,27-28,31-32,33-34,38-39,43-44).

Estaria de acordo com um critério secundário, mas importante, o da vividez da narração. Esse critério está longe de algo exaustivamente corroborativo, antes é um critério dúbio – vide Méier, J.P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus Histórico. Ed. Imago. RJ, 1992.

Contudo, podemos ver aí um fator indutivo. Mesmo considerando que diálogos não-históricos eram convenções narrativas comuns, temos que pensar que a audiência para a qual fora dirigido o texto estaria propícia também a um diálogo sobre dispensa da circuncisão. Não o vêmo-lo nos evangelhos, o que serve de um bom freio. Segundo, as próprias incongruências, contradições e falta de clareza o situar eventos geograficamente, ou quanto local ou coerência com a situação, e o problema seqüencial das narrativas, as lacunas, a falta de fundamentação precisa no tempo e espaço, a dificuldade de situar Jesus em um local e data específico, depõe contra o evangelista ser um romancista talentoso, ou quanto a obra, considerando que não temos como estabelecer antecedentes de obras que deporiam quanto ao talento literário do escritor, fica difícil imaginarmos que o mesmo seria um criador de um romance realista de tal invergadura.

Temos que ser cautelosos, todavia, ao nos lembrarmos as limitações do trabalho desse campo de pesquisa.

Somos levados então à modéstia e comedimento, não porque aqui defendamos uma ilusão superada do positivismo lógico como delimitador do conhecimento válido e seguro,que já não funciona como tal em nenhuma ciência; antes, que devemos reconhecer que nesse campo de pesquisa e assunto do texto, as necessárias extrapolações e generalizações metodológicas possuem maior arbitrariedade, interpolações são de maior amplitude ante o objeto, e o que buscamos presumir envolve mais riscos, pouquíssima segurança estatística é por natureza mais passivo de contaminação pelas preferências, subjetividades, visão de mundo e arcabouço conceitual próprio do estudioso do que outros campos; efetivamente, em micro-história, somos levados a reconhecer pelo nosso exame da experiência que no comportamento humano cotidiano, vemos gestos, atitudes, eventos, que não se enquadram em esquemas gerais (tal como Freud o tentou em Psicopatologia do Cotidiano, enquadrar até um trivial tropeção). Isso é inevitável, gerando uma saudável humildade e cautela, que não se vê tanto em meios fundamentalistas que defendem sua interpretação da inerrância bíblica, quanto em meios mais céticos minimalistas.

Penso que podemos pegar uma passagem, do evangelho de João, que poderia proporcionar uma sugestão coerente a respeito. No capítulo 16, de 16 a 30, narra-se os comentários dos discípulos ante um dito de Jesus, em que eles declaradamente não compreendiam o significado, o que seu mestre queria dizer com uma citação, e assim, não sabiam aplicá-la. Jesus procede com a explicação, e eles declaram afinal: Eis que agora falas abertamente, abandonando toda linguagem enigmática(...).

Isso é um claro indicador que algumas sentenças de Jesus teriam passado batido do entendimento, interpretação e horizonte de aplicação dos discípulos, nas ocasiões em que foram proferidas. Na afirmação deles neste episódio, isso é explicitado, em que eles comentam que tal alocução de sentido enigmático fora devidamente explicada na ocasião.

Não temos como imaginar uma possibilidade de uma grande assembléia de Jesus e seus discípulos, após esse episódio, em que eles fizeram uma sabatina a respeito de todos os momentos que incorreriam nessas dúvidas.

Fora registrado que os discípulos tinham a concepção de que um dos papéis do Espírito Santo seria lhes expandir a compreensão dos ensinamentos de Jesus. E mesmo os evangelhos em si tiveram a ver com a necessidade de retomá-los e aplicá-los a situações concretas e dilemas que se vivia no ministério e vida das comunidades. É perfeitamente cabível conceber que nas tradições repassadas pelos apóstolos e demais testemunhas oculares dos eventos do ministério de Jesus, foram-se fazendo interpretações iluminadas por indagações e reflexões sobre a conjuntura que viviam, e a respeito de suas expectativas.

Seria cabível supor que essa passagem em Marcos teria sido uma relembrança posterior de um dito de Jesus, num episódio marcante junto aos fariseus e mestres da Torah [associação perfeitamente esperável de acontecer ante uma polêmica envolvendo questões da observância da Lei], que então, seu alcance não tenha sido explorado pelos discípulos, tal como o argumento abordado logo acima. Marcos, ou sua fonte, pode tê-lo retomado, e nesse processo de rememorização, tê-lo traçado com contornos e coloridos, de dentro de um molde, em cuja expressão apresentou-se de maneira mais clara e direta do que tenha sido na ocasião, imiscuído na preocupação de se aplicar ao contexto. O que pode ter rendido comentários adicionais nessa transmissão da tradição quando exposta, que suscitou no evangelista o senso de ter que complementar a narração com seu comentário e ênfase próprios.

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