sábado, 20 de junho de 2009

Novo Testamento, Linguagem, Teologia e Paradoxos


Paulo reserva um lugar acentuado em sua exposição teológica para a asseveração da universalidade da pecaminosidade humana. Especialmente na carta aos Romanos, destacando o capítulo 5. Diversos viezes e mesmo sistemas teológicos foram arquitetados ao longo da história, em graus variados de acentuação a respeito da ênfase quanto a condição humana e o pecado, e a liberdade moral humana. Decerto, é comum hoje dizer que por vezes a visão de Paulo é ambivalente. Por exemplo, em Rm. 9.19, o homem não é capaz de se opor à compulsão divina; em Rm. 9.22, ele é.

Vamos buscar algumas considerações a respeito deste tema, em algumas passagens importantes da literatura judaica do Segundo Templo.

Não digas: ‘Foi Deus que me fez cair’,pois não deves fazer o que ele detesta. Não digas: ‘Foi Ele que me fez desviar’, pois Ele não precisa do pecador. O Senhor odeia toda abominação, e os que o temem não devem amá-la também. No princípio Ele criou o ser humano e o entregou às mãos de seu arbítrio. Se quiseres, tu podes observar os mandamentos e agir com fidelidade é uma questão de intenção.
Diante de ti, Ele colocou o fogo e a água: estende a mão para o que quiseres. Diante do homem estão a vida e a morte, e ele receberá aquilo que preferir.

Sirácida 15.11-17.

Pois, embora Adão tenha pecado primeiro e trazido sobre todos a morte fora de tempo, contudo, daqueles que nasceram dele, cada um preparou para si mesmo o tormento futuro; também cada um deles escolheu para si mesmo glórias futuras... Adão não é, portanto, a causa, exceto para sua própria alma, mas cada um de nós foi o Adão de sua própria alma.
II Baruc 54.14-15,19.

Pois o primeiro Adão, vestindo-se de um coração mau, transgrediu e foi vencido; e igualmente também todos os que nasceram dele. Portanto, a enfermidade tornou-se crônica; a Torá, na verdade, estava no coração do povo, mas junto com a semente do mal; então, o que era bom se foi e o mal permaneceu
.
4 Esdras 3.19-22

E eu respondi: ‘Esta é minha primeira e última palavra: Teria sido melhor se a terra não tivesse produzido Adão, ou, por outro lado, antes o tivesse produzido para que tu o tivesses produzido para que tu o tivesses impedido de pecar.Pois que proveito há para qualquer um de nós no fato de que, na era presente, devemos viver em aflição e, após a morte, esperar o castigo? Adão, o que fizeste! Pois embora foste tu que pecaste, a queda não foi somente tua, mas também nossa, seus descendentes! Que proveito há em recebermos a promessa da era eterna, quando temos feito as obras que trazem a morte?
4 Esdras 7.116-119

O quadro que temos dessa passagem também nos proporciona uma imagem de ambigüidade.

Pode-se elencar bons exemplos de ambigüidades no pensamento teológico de Paulo. Na carta aos Colossenses 2:12, temos a seguinte passagem:

Fostes sepultados com ele no batismo, também com ele ressussitastes, pela fé no poder de Deus, que o ressussitou dos mortos.


Tudo bem que uma leitura permitiria aí enquadrar os termos no simbolismo do batismo.

Em II a Timóteo- temos um porém. Essa epístola poderia ser paulina a considerar uma possibilidade: a prisão em Roma descrita no final de Atos não fora a definitiva que culminara em sua morte. Independente disso, outro cenário é de que alguém muito próximo a Paulo ou que se julgasse familiarizado a teria escrito buscando estar sob seu prisma, expressamente para alguém muito próximo ao apóstolo:

2:16-18: Eles se desviaram da verdade, dizendo que a ressurreição já se realizou, estão pervertendo a fé de vários.

Em I Co. 15, o capítulo expressa que a ressurreição foi inaugurada por Jesus e todos a experimentarão no futuro escatológico.

Outras ambigüidades mais claras:

A 'Justificação' se dá no futuro ou passado? – cf. Rm. 2.13, 8.33. Gl. 5.4,5.
A 'Santificação' é um evento/fenômeno passado? ICo.6.11; futuro? ITs.5.23
A 'Salvação' já se efetuou? Rm.8.24; I Co.15.2 ; está se efetuando? I Co.1.18; ICo10.11; é algo para o futuro? Rm.5.9-10.

Essas ambigüidades ou mesmo paradoxos permeam diversos pontos importantes e cruciais do Novo Testamento. A grande questão do Reinado de Deus.
Ele estava próximo: Mc.1.15
Já chegara: Mt.12.28
Vem no futuro: Mt.6.10
No porvir? Mc.14.25.

Penso que um das grandes problemas em lidarmos com essas dificuldades é a falta de cuidado em buscar compreender a linha de pensamento daquele ambiente cultural; aplicamos anacronicamente categorias analíticas ocidentais abstratas e dedutivas a uma forma de pensar dotada de outras nuances. C.H. Dodd, no livro 'Segundo as Escrituras. Estrutura fundamental do Novo Testamento' [ 1979, Ed. Paulinas, 144p.], já advertia-nos para levarmos em conta a linguagem do povo daquele contexto. Afirma ele que não veriam nada demais em justapor duas frases que apresentam aparentes contradições diretas, pois as inseriam numa perspectiva de um plano maior. Sendo assim, não estavam ignorando 'o terceiro excluído'.

De fato,cada sistema de linguagem em seu contexto histórico-social oferece a estrutura lingüística necessária para descrições e expressões que não necessariamente se enquadram em outros esquemas de pensamento.

O psicólogo Erich Fromm, no livro 'Meu Encontro com Marx e Freud' coloca e ilustra isso de forma perfeita: Em hebraico o princípio básico da conjugação é determinar se uma atividade é completa (perfeita) ou incompleta (imperfeita), ao passo que o tempo em que ocorre - passado, presente, futuro – é expresso de forma secundária. Em latim, os dois princípios (tempo e dimensão-perfeição) são empregados simultaneamente, enquanto no inglês predomina o sentido do tempo. Quando o texto hebraico do Velho Testamento emprega o tempo perfeito para uma experiência emocional, como p.ex. amar, com o sentido 'eu amo plenamente', o tradutor se equivoca e diz 'eu amei'.

Assim, temos que considerar os diferentes sentidos dos termos no contexto maior que aquele que os emprega os situa, para podemos assim não eliminarmos as tensões inerentes apresentada no pensamento examinado, mesmo que no caso não fosse a nossa própria maneira de expor as idéias, se estivessem a nosso encargo.

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    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
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