terça-feira, 27 de julho de 2010

A compreensão de Jesus como cordeiro de Deus


O texto de Atos 21-24, dentre outras coisas, nos mostra Paulo fazendo sacrifícios no Templo de Jerusalém. O texto em 24:17 assim nos diz:

"Depois de muitos anos, vim trazer esmolas para o meu povo, e também apresentar ofertas"


Paulo se santifica com quatro indivíduos que haviam feito o voto de nazireu. Paulo apresenta ofertas ao Templo. Não sabemos exatamente qual tipo de ofertas Paulo ofereceu. Mas ele acompanhou os 4 Nazireus ao término de seus votos. As ofertas que eles apresentaram foram:

"Um cesto de bolos de flor de farinha, sem fermento, amassada com azeite, e tortas sem fermento untadas com azeite, acompanhadas das suas oblações e libações"


Os sacrifícios estipulados estão descritos em Números 6:13-15. De acordo com o esperado, eles provavelmente sacrificaram cada um cordeiro perfeito, uma ovelha perfeita e um carneiro perfeito.

Tendo sido postas estas questões iniciais, a questão que se nos coloca é — Por que os judeus cristãos permaneceram realizando sacrifícios no Templo se a morte de Jesus foi o sacrifício derradeiro? Por que exatamente aquele grupo de judeus que estiveram ali lado a lado com Jesus continuou por anos praticando os sacrifícios e justamente aqueles que nunca tiveram contato com ele desenvolveram a idéia do sacrifício vicário?

É muito claro que a idéia de Jesus como "cordeiro de Deus" é um dos elementos centrais da pregação cristã. No entanto, ela é incompatível com uma praxis que se atém firmemente à base estrutural que compõe o códice mosaico com seus 613 mitzvot. A idéia do "sacrifício perfeito" eliminaria qualquer necessidade de realização de sacrifícios de animais junto ao Templo. No entanto, quer nos parecer que a comunidade-mãe de Jerusalém se mantinha afeita à Torá. O grupo básico da Igreja de Jerusalém manteve a fidelidade à Torá às suas práticas junto ao Templo, frequentando as orações, fazendo as oblações e fazendo os sacrifícios.


Neste sentido, defendemos a proposição de que as Colunas da Igreja não compreenderam Jesus como cordeiro de Deus e o seu pleno significado expiatório. Aqueles que estiveram com ele lado a lado, dia após dia, não o compreenderam dessa forma nas primeiras décadas do movimento dos nazarenos. É bem provável que essa idéia tenha se desenvolvido na Síria. Isso se reflete no essência do material de Paulo, bem como nas comunidades joaninas que lá se desenvolveram.

Existiria, pois, alguma outra possibilidade de compreendermos a basilar fala de João Batista em João 1:29?

No dia seguinte João viu a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.


Alguns textos intertestamentários tais como 1 Enoque 90:6-19, o Testamento de José19:8-12 e o Testamento de Bejamin 3:8 associavam o cordeiro com o Messias em sua luta contra as forças do mal. Neste sentido, é possível que o termo tenha sido interpretado, tal como no livro do Apocalipse, na sua vertente escatológica. Se admitirmos a possibilidade que João tenha dito de fato tal frase, ele certamente não tinha em mente a idéia de um messias sofredor, mas a idéia do Messias guerreiro davídico. O "fim do pecado" no mundo não seria a morte do messias sofredor, mas a vitória final sobre o mal.

Vamos observar o texto de Enoque:

Enoque 90: 4-10

“Depois observei na visão que corvos sobrevoavam aqueles cordeiros, agarravam-nos, despedaçavam-nos e os engoliam. Vi crescerem chifres nos cordeiros, mas os abutres os abateram. Vi depois um grande chifre crescer em uma daquelas ovelhas; então abriram-se-lhes os olhos.

Aquela ovelha olhava pelas demais e exortava-as; quando os carneiros viram isso, acudiram ao seu redor. Não obstante, as águias, gaviões, os abutres e os milhafres continuavam a dilacerar as ovelhas, voavam livremente sobre elas e as devoravam. As ovelhas no entanto permaneceram inertes; somente os carneiros davam alarme e chamavam.

Então aqueles abutres começaram a agredir aquela ovelha e a lutar com ela, procurando abater seu chifre; mas não o conseguiram. Então eu vi que chegavam os pastores, as águias, os gaviões e os milhafres, e gritavam aos abutres para quebrarem o chifre daquele Carneiro. Então atacaram-no e lutaram com ele; e ele pediu ajuda.

Eu vi quando chegou aquele homem que anotara o nome dos pastores para o Senhor das ovelhas; e ele prestou-lhe tudo. Ele havia descido para auxiliá-lo. Então eu vi como o Senhor das ovelhas irou-se com eles; todos os que o viam escapavam, e diante da sua face todos ficavam impotentes.

Águias, gaviões, milhafres e abutres juntaram-se, trouxeram consigo todas as ovelhas do campo e tentaram quebrar o chifre do Carneiro. E eu vi como aquele homem que escreveu o livro por ordem do Senhor abiu o livro sobre o extermínio que aqueles últimos doze pastores perpetraram e mostrou ao Senhor das ovelhas que eles haviam matado muito mais do que os seus antecessores.

Vi como o Senhor das ovelhas chegou até eles, empunhou o bastão da sua ira e golpeou a terra, e esta fendeu-se. Então todos os animais e os pássaros do céu largaram aquelas ovelhas e desapareceram na terra que se fechou sobre eles. E vi como foi entregue uma grande espada às ovelhas, que então partiram para atacar todos os animais do campo e matá-los. Aí fugiram dela todos os animais e os pássaros do céu.

Eu vi que foi erigido um trono naquela terra adorável, e o Senhor das ovelhas assentou-se sobre ele; e aquele outro homem tomou os livros selados e abriu-os na presença do Senhor das Ovelhas.”


No texto de Enoch, os macabeus são caracterizados como os cordeiros com chifres. Já os pássaros são os selêucidas. O cordeiro com grandes chifres [que na verdade, aí já um carneiro] é a liderança messiânica que vence as tropas inimigas. Já no Testamento de José, o cordeiro é a figura messiânica que vence os animais selvagens (representando os inimigos de Israel).

Não há na literatura judaica uma associação entre o Messias como cordeiro sendo sacrificado. Neste sentido, o cordeiro de Deus é uma figura escatológica que aparece nos últimos tempos (tal como mostrado no Apocalipse de João de Patmos) para aniquilar as forças de Belial.

Devemos anotar assim que se é possível identificar no judaísmo intertestamentário a associação entre o messias guerreiro com o cordeiro, não é possível encontrar a noção de um “cordeiro que tira os pecados do mundo” após ser imolado em sacrifício vicário. A atribuição, pois, do título messiânico de cordeiro se refere ao messias militar que no final dos tempos efetuará a vitória definitiva sobre o mal.

Neste sentido, é possível argumentar que se os seguidores de Jesus o tinham como “Cordeiro de Deus”, eles o tinham não a partir da sua morte como sacrifício vicário, mas a partir da sua volta como liderança escatológica final.


REFERÊNCIAS PARA ESTUDO

No que toca às questões referentes aos sacrifícios de animais e os judeus cristãos, gostaria de indicar a seguinte bibliografia:

PETROPOULOU, Maria-Zoe. Animal Sacrifice in Ancient Greek Religion, Judaism, and Christianity, 100 BC to AD 200.

DUNN, James. Begginning from Jerusalem.

CHILTON, BruceThe brother of Jesus and the interpretation of the scripture.

2 comentários:

informadordeopiniao disse...

Retorno com estilo, hein chefe?!? Maravilha de postagem.

Se a gente for conferir também essas tradições nos círculos cristãos da Ásia Menor, podemos ver esse enfoque sobre o Cordeiro - algumas vezes com tom mais catastrofista, certo - em Ap.5,6,12;7.17;13.8;17.14;19.7,9;21.22,23;22.1-3.

Queria contribuir também na indicação de outras boas reflexões sobre a passagem de João Batista:
Raymond E. Brown: "John I-XII", p. 58-63.

http://books.google.com.br/books?id=PIxKCV62954C&pg=PA11&dq=The+Gospel+According+to+John+I-XII&hl=pt-BR&ei=podPTKerOML58AbzmozIAQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CCgQ6AEwAA#v=onepage&q&f=false


Leon Morris, "The Gospel according to John", p.126-130.

http://books.google.com.br/books?id=II-33dS9esAC&pg=PR16&dq=The+Gospel+According+to+John+I-XII&hl=pt-BR&ei=u4dPTK7SD4P_8AajuLHhDQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CC0Q6AEwAA#v=onepage&q=The%20Gospel%20According%20to%20John%20I-XII&f=false

Abração, chefe!

Flávio Souza disse...

Pois então, Rodrigo!

Depois de um bom tempo no estaleiro, estamos de volta à labuta! E vamos colocar isso aqui pegando fogo!

Por sinal, estou esperando pelos seus textos. Organize este teu comentário na forma de um texto e mande bala!

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