sábado, 31 de julho de 2010

A prisão de Jesus em João 18:1-14;19-24.

Busquemos uma breve aproximação sobre o relato joanino da prisão de Jesus. Devido ao espaço não pretendemos de forma alguma dar uma resposta cabal a controvérsias nem chegar perto de esgotar o tema, mas apenas traçar um panorama.

Primeiramente, como se deu a prisão? Quem prendeu Jesus, segundo o testemunho joanino?

Nessa noite especial, nos tempos das celebrações pascais, Jesus e seus discípulos permaneceram em imediações hierosolimitas, conforme Deuteronômio 16.4-5. Assim, havia um foco de lugar em que os que conspiravam para prendê-lo teriam em mente. Estavam sendo escoltados por Judas. Poderia ser uma cilada? Bem provável...

Passaram pelo Vale do Cedrom, cujo termo literal significa “Cedrom em cheia pelo inverno”[1]; no período que se presume ter acontecido o episódio, março-abril, estaria então raso e fácil de atravessar. Lucas 22.9 sugere que não seria a primeira vez que Jesus e seus discípulos se reuniam lá.

E a tropa destacada?

Há uma grande dificuldade com esta passagem. O Termo que João emprega para “destacamento”, peira, era um termo que comumente se referiria a décima parte de uma legião romana, assim, 600 homens!! Em demais passagens no Novo Testamento, reporta-se a coortes sob o comando de um tribuno – chiliarchos. Ainda que na província romana da Judéia houvessem cinco coortes romanas, como a da famosa fortaleza Antonia, seria plausível o cenário de uma tropa romana deste contingente em uma operação de prisão de um sujeito que até então era desconhecido de Pilatos, e ainda por cima terem levado à casa de Anás – que não era o sumo-sacerdote daquele período, tendo sido deposto por Roma em 15 a.C.???

E como é uma hipótese muito provável que João conheça, de forma independente, tradições antigas relacionadas nos Sinópticos [2], como somente ele destacaria a coorte romana, e nas outras tradições não?

Provavelmente, ele não empregara o termo num sentido “tecnicamente” preciso e unívoco. Poderia de forma mais presumível se remeter a uma guarnição dentre a coorte - que não iria sair totalmente ali para prender um indivíduo num período tão conspícuo e perigoso como aquele da Páscoa – em que advinham tropas de Cesaréia. Seria um "manípulo" – 200 pessoas ou menos. Tanto que os soldados não foram liderados por um Centurião, mas por um funcionário de menor escalão, que pode ser entendido como chefe de um subgrupo da coorte – confira também Jo18.12. Ainda um contingente impressionante.

Marcos comenta que fora uma grande multidão armadas de espadas e varas, enviadas pelos chefes dos sacerdotes e demais lideranças religiosas. Lucas fala somente de chefes dos sacerdotes e da guarda do Templo. Craig Keener apresenta uma discussão aprofundada sobre o termo mostrando que a linguagem geral também fora usada igualmente para unidades judaicas [3].

Realmente teria havido uma queda dos soldados simplesmente ao ouvir Jesus pronunciar uma associação com a auto-revelação divina a Moisés na Sarça Ardente: “Eu Sou” – Êxodo 3.14? Craig Keener também aponta que nessa época, acreditava-se que os feiticeiros usavam a pronúncia do nome divino para disparar conjuras [4]. Dada a busca de imputar ao ministério de milagres de Jesus o agir dos demônios através dele ou sendo mesmo um feiticeiro, um mágico, é altamente sugestivo.

Mas também há outro cenário. O que se apresenta é que Jesus esperava ser entregue, e estava de prontidão. Os soldados ao se depararem com esse inesperado - ele assim, de peito aberto [no relato eles respondem “a Jesus, o Nazoreu” de uma forma que ressalta que eles nunca esperariam uma situação como aquela, mas um ataque de surpresa], então poderiam ter imaginado uma emboscada e uma luta violenta naquele lugar inóspito, por parte de guerrilheiros escondidos, ferozes e armados. O escritor destaca “e Judas estava com eles” não teria sido à toa. Dessa forma, se visualiza melhor a impressão neles de ter sido uma cilada. “Fomos pegos”. De fato, já era em um contexto em que finalizara a missão dos discípulos na qual estavam incubidos de não levar armas, e os relatos mostram que pelo menos um deles (Pedro?) reagira disposta a um combate armado. Possivelmente, o discípulo pode ter aproveitado para conferir uma associação de peso teológico.

A cena de um encontro irregular informal dos líderes religiosos, numa tonalidade de intriga destacada em João, ante a audiência formal que é a que mais parece nos Sinóticos antes do Conselho Judaico, possui uma plausibilidade maior [5]. Não seria uma audição central tal qual diante do conselho presidido pelo verdadeiro sumo-sacerdote daquele ano, Caifás, mais à frente mencionado em João. O termo “primeiramente”, no versículo 13, dá a entender que o escritor trata de um quadro maior em que mais audiências viriam. Se encaixa com o pano de fundo mais ampliado, com a trama política envolvendo o poder no Templo. Cinco dos filhos de Anás foram sumo sacerdotes, a despeito da deposição, e Caifás, seu genro, o fora nomeado por peso de seu poder e influência, sob seu auspício[6]. E muitas vezes Anás exercia o poder de fato. Nada excepcional ser referido e tratado ainda então como sumo-sacerdote, havendo precedente no judaísmo: se podendo ver no “Guerras Judaicas”, de Josefo, 2.12.#243, e no material Horayot 3.1,2,4, um tratado presente no Talmud que fala sobre precedentes antigos assim [7].

Assim, podemos ver Anás jogando com o fato de que o cargo era vitalício e, apelando para o nacionalismo e o rancor pela dominação romana, invalidar sua deposição para legitimar seu poder de fato. Que ele exercia seu poder, também através de sua riqueza [Josefo, Antiguidades 18.2.2#34; 20.9.1#243] [8], é atestado pela literatura judaica em que seus sucessores o desancam. A imagem que eles passam dele referenda o abuso de se sobrepor ao costume de submeter processos que remetia a penas capitais a uma coorte de juízes – acima de 23 – [9] e atuar como juiz, ainda mais que o costume remetia à tradição farisaica, e assim submeter Jesus a um interrogatório, procedimentos e uma condução de julgamento arbitrários. Os fios da trama começam a se entrelaçar em uma rede, levando a, ou montando o quadro coerente para a crucificação.

Referências/Indicações:
[1]  Joel B. Green – Gethsemane. Em : Joel B. Green, Scot McKnight, Howard I. Marshall – orgs. “Dictionary of Jesus and the Gospels”.
[2]  Raymond Brown, John XIII-XXI  p.787-791 
[3]  Craig Keener - The Gospel of John: A Commentary  p.1078;
[4]  Keener, op.cit., p. 1081
[5]  Ed Parish Sanders, Historical Figure of Jesus, p. 72
[6]  Bruce M. Metzger e Michael David Coogan (Editores) The Oxford Companion to the Bible p. 97
[7]  Raymond E. Brown, The Death of the Messiah p. 398-428
[8]  Donald P. Senior, “The Passion of Jesus in the Gospel of John”. p. 46-64
[9]  Keener, op. cit., p. 1089                 

3 comentários:

Flávio Souza disse...

Muito bom texto, Rodrigo.

Este confronto entre o grupo de Jesus e as tropas armadas sempre me intrigou.

No mais seria importante você citar os textos referentes a Anás para corroborar a sua hipótese.

Por fim, gostaria de te pedir uma coisa para o padrão gráfico do blog. Aquela imagem no meio está "flutuando". Coloque-a em um dos lados no meio do texto, please.

Abração!

informadordeopiniao disse...

Obrigado, chefe!

Reposicionei a imagem lá, Flávio. Para as referências aos textos de Josefo, explicitei a obra do Brown.

Para a Horayot, mudei o link lá, e esse direciona para as citações dos capítulos comentadas, e mais à frente também outro para um e-book que trata delas mais exaustivamente.

Até

Flávio Souza disse...

Valeu por reorganizar a foto. Isso é herança da época que trabalhava com design. É só para ficar no padrão.

:)

Quanto às referências, creio que seria legal se você pudesse inseri-las junto ao seu texto.

  • Recent Posts

  • Text Widget

    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
  • Blogger Templates