segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Seio de Abraão e o post mortem

Lucas 16:19-31

Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e cada dia se banqueteava com requinte. Um pobre chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto de úlceras. Desejava saciar-se do que caía da mesa do rico... E até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu que o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado.

Lázaro no Seio de Abraão
Na mansão dos mortos, em meio a tormentos, levantou os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro em seu seio. Então exclamou: 'Pai Abraão, tem piedade de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua pois estou atormentado nessta chama'. Abraão respondeu: 'Filho, lembra-te de que recebeste teus bens durante tua vida, e Lázaro por sua vez os males; agora porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E além do mais, entre nós e vós existe um grande abismo, a fim de que aqueles que quiserem passar daqui para junto de vós não o possam, nem tampouco atravessem de lá até nós'

Ele replicou: 'Pai, eu te suplico, envia então Lázaro até a casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos; que leve a eles seu testemunho, para que não venham ele também para este lugar de tormento.

Abraão, porém, respondeu: 'Eles têm Moisés e os Profetas: ouçam-nos. Disse ele: 'Não, pai Abraão, mas se alguém dentre os mortos for procurá-los, eles se arrependerão'. Mas Abraão lhe disse: 'Se não escutam nem a Moisés nem aos profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão'


Este texto se encontra na forma de uma estória, cujo gênero pode ser classificado como um exemplum. Não se trata propriamente de uma parábola. Como pontua John S. Kloppenborg,

a diferença entre uma parábola e uma estória-exemplo é a forma como se chega ao ponto: a parábola é uma metáfora: a parábola afirma que A (o desconhecido) é B (o conhecido) e apresente uma correspondência (analogia) entre os dois . Uma estória-exemplo fornece uma instância ou exemplum ou de um determinado tipo de comportamento ou pessoa ou ato, etc. [3]


Este exemplum se insere em uma recorrente linha de pregação na qual Jesus busca estabelecer os contrastes entre a existência dos ricos e dos pobres. No entanto, se em diversas oportunidades, Jesus trata de uma inversão de papéis a partir de uma perspectiva terrena de implantação do "reino de Deus", essa passagem nos mostra uma espécie de retribuição invertida das bençãos para a vida na Terra e o além.

De acordo com Jacques Le Goff, "O Seio de Abraão foi a primeira encarnação cristã do purgatório."[4] De fato, tal passagem foi utilizada posteriormente como um dos elementos que deram estrutura ao construto teórico do purgatório. No entanto, devemos procurar observar como tal conceito poderia ser compreendido no estrato histórico no qual Jesus o postulou. Neste sentido, devemos compreendê-lo como uma estória que reflete as concepções judaicas sobre o post mortem.

O Seio de Abraão é na verdade uma metáfora para o Paraíso. No chamado Testamento de Abraão(capítulo 11), é Adão quem fica na região entre o Éden e o Hades, se alegrando com os poucos justos que passam para o paraíso e sofrendo com os que vão para o Inferno. Posteriormente a figura de Adão foi abandonada para dar lugar a Abraão e outros patriarcas. No livro 4 dos Macabeus 13:17 encontramos a seguinte passagem:

"se nós então morrermos, Abraão, Isaac e Jacó irão nos receber e todos os patriarcas irão nos exaltar"


Era hábito no judaismo antigo os discípulos se reclinarem no peito de seus mestres tal como é visto entre os apóstolos e Jesus. Estar, pois, no "seio de Abraão" é estar em um lugar de conforto e benção. Em Qiddu-shin 72b é dito que o rabi Adda bar Ahaba se sentou no Seio de Abraão. A interpretação é a de que ele "entrou no Paraíso".

Um elemento importante a ser ressaltado é o fato de que tanto na passagem do Novo Testamento, quanto no Testamento de Abraão e em 4 Macabeus, encontramos a idéia de consciência no post mortem. Estas formulações entram em choque com as concepções relacioanadas "dormição dos mortos". O quadro que podemos vislumbrar a partir dos textos em tela é de indivíduos sofrendo no Hades e outros se confortando no seio do Patriarca Abraão (ou como visto no livro dos Macabeus - sendo exaltados pelos patriarcas).


REFERÊNCIAS PARA ESTUDO:

1 - Seio de Abraão - verbete da Jewish Encyclopedia

2 - Studies in pharisaism and the gospels

3 - KLOPPENBORG, John S. Form Criticism and the Parables of Jesus

4 - LE GOFF, Jacques. O Nascimento do purgatório. p.61.

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