“Muitos estudiosos observaram que o termo ‘judeus’ aparece com muito maior freqüência no evangelho de João do que nos outros, e que este emprego da palavra indica que o autor do texto e seus companheiros de crença estavam ainda mais distantes da maioria judaica do que de outros evangelistas.”
De fato, uma leitura superficial do evangelho tende a nos mostrar o(s) autor(es) do evangelho como que alienado(s) do universo judaico, configurando-o(s) como gentio(s). Mas seria realmente esta a mais apropriada análise sobre a autoria deste texto? Com efeito, dada a agressividade que a autoria se utiliza no tratamento destes “judeus”, somos conduzidos a uma certa sensação de que a mesma se encontrava em um patamar de “estranhamento”, de um “não-pertencimento”, para com o mundo do judaísmo. De acordo com Kummel (1982:315), a forma linguística do evangelho de João "faz pensar em um autor de língua grega num ambiente semita. Além disso, o universo conceptual mostra relação com os grupos gnósticos próximos do judaísmo." Para Kummel, a melhor conjectura sobre a origem do texto seria a Síria. Da mesma forma, Koester (2005:194) situa a comunidade joanina na Síria, mas em um contexto de certa independência de outras comunidades cristãs siríacas, apesar de um intercâmbio com comunidades petrinas.
Como mencionado, neste artigo, procuraremos elaborar algumas ilações sobre a comunidade joanina e a forma pela qual ela se refere aos “judeus” em sua abordagem evangelística. Antes que prossigamos, no entanto, devemos pontuar rapidamente sobre o aproach que iremos utilizar para a consecução de nossa proposta. Uma estratégia muito profícua, porém extremamente delicada, é a de ler os evangelhos a partir de duas óticas distintas: a) a do efetivo relato sobre as atividades de Jesus e b) a da transposição para os supostos relatos de Jesus de efetivos eventos e problemas vivenciados pelas comunidades cristãs. Neste sentido, a partir da segunda ótica, teríamos na verdade um texto que reflete nos ditos e ações de Jesus a vivência das comunidades que produziram o texto. Tal proposição hermenêutica é extremamente válida para uma sofisticação do entendimento das escrituras. No entanto, conduz o pesquisador ao intrincado labirinto de informações nos quais tais transposições se encontram. Eu, particularmente, sou muito cético quanto à determinadas linhas que pensam poder reconstruir satisfatoriamente a história das comunidades a partir dos textos neotestamentários. De fato, é possível encontrarmos pistas e algumas chaves interpretativas, mas tais procedimentos levados ao extremo, podem muito mais nublar do que esclarecer. Em suma, é muito difícil separar aquilo que de fato foram memórias e registros das concretas ações de Jesus destas transposições.
O texto de João, em particular, no entanto, nos fornece uma base melhor de trabalho. Sua formulação através de longos discursos pode ser dissecada com uma certa segurança. Temos alguns correlatos entre temas desenvolvidos por João e os sinóticos, bem como perícopes cuja base primitiva pode ser encontrada nos ditos coletados pelo Evangelho de Tomé (Koester, 2005:196). Nestes casos, é possível analisar como a comunidade joanina trabalhou estes ditos primitivos através de discursos mais longos. Além disso, é possível argumentar também a possibilidade de eventos históricos da vida de Jesus terem sido ajustados a partir de uma agenda apologética. A linha na qual procuro trabalhar é a de que o Novo Testamento, na verdade, se nos apresenta como um intrincado campo de batalha entre diferentes forças. No caso específico dos textos joaninos este jogo se manifesta claramente através de pares opositores do formato morte/vida, luz/trevas, céu/terra, etc. Com o descobrimento dos Manuscritos de Qunram, descobriu-se que essa estratégia literária de pares opositores tinha neste círculo um congênere semelhante. Não faz parte do escopo deste trabalho investigar sobre estes padrões de similitude. No entanto, é importante a apresentação de que estes modelos possuíam uma tradição manifesta dentro de outras correntes judaicas do século I d.C.
João 5:16
“Por isso os judeus perseguiam Jesus: porque fazia tais coisas no sábado. Mas Jesus lhes respondeu: ‘Meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho’. Então os judeus, com mais empenho, procuravam matá-lo, pois, além de violar o sábado, ele dizia ser Deus seu próprio pai, fazendo-se assim igual a Deus.”
João 8:41-44
“...Disseram-lhe então: ‘Não nascemos da prostituição; temos só um pai: Deus’. Disse-lhes Jesus: se Deus fosse vosso pai, vós me amaríeis, porque saí de Deus e dele venho; não venho por mim mesmo, mas foi ele que me enviou. Por que não reconhecei minha linguagem? É porque não podeis escutar a minha palavra. Vós sois do diabo, vosso pai. [...] Mas porque digo a verdade, não credes em mim.”
João 9:22
“Seus pais assim disseram por medo dos judeus, pois os judeus já tinham combinado que, se alguém reconhecesse Jesus como Cristo, seria expulso da Sinagoga.”
João 9:31-34
“Sabemos que Deus não ouve os pecadores; mas se alguém é religioso e faz a sua vontade, a este ele escuta. Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos de cego de nascença. Se este homem não viesse de Deus, nada poderia fazer’. Responderam-lhe: ‘Tu nasceste todo em pecados e nos ensinas?’ E o expulsaram”
Birkat ha-minim (“Benção dos Hereges”)
Vamos observar as duas versões a partir da citação de E. Stegemann e W. Stegemann (2004: 268)
Versão do Talmude Babilônico
“Para os caluniadores não haja esperança, e todos os que agem perversamente sejam destruídos num piscar de olhos, que em breve sejam todos exterminados. Os insolentes, arranca-os logo pela raiz, esmaga-os, faz com que caiam e os humilha até nossos dias. Louvado seja tu, Senhor, qu e despedaças os inimigos e humilhas os insolentes.”
Versão do Talmude Palestino
“Para os caluniadores, porém, não haja esperança, e o governo perverso seja logo eliminado em nossos dias, e [os nozrim (nazarenos) e] os minim (hereges) sejam destruídos num piscar de olhos, apagados do livro da vida e não sejam relacionados juntamente com os justos. Louvado sejas tu, Senhor, que humilhas os inocentes.”
Flusser (2002:187) comenta que essa menção específica aos cristãos no rito palestino é encontrada em apenas dois manuscritos. A seu ver, este acréscimo seria posterior a um texto inicial que se referia tão somente aos “hereges” (minim). Além disso, defende Flusser que a inclusão do termo (nozrim) nunca poderia ter vindo de uma fonte oficial, dada a ausência da mesma na maioria dos demais manuscritos.
Tradicionalmente se relaciona a implementação da “benção dos hereges” à figura de Gamaliel II em Jabne em 90 d.C. Flusser (2002:188) defende, no entanto, que a primeira versão da mesma fosse anterior ao próprio cristianismo, tendo se originado no período macabeu tardio. A versão feita por Shmuel ha-Katan a pedido de Gamaliel teria fundido duas preces anteriores, uma direcionada a um inimigo externo e outra direcionada “paradoxalmente” aos parushim “aqueles que se afastaram” (termo usado como referência aos fariseus). Steggemann e Steggemann (2004) argumentam que a birkat-há-minim teria no máximo conduzido a uma auto-exclusão das comunidades messiânicas da sinagoga e não poderia se relacionar aos textos neotestamentários referentes à exclusão direta dos crentes em Jesus do convívio sinagogal. Ou seja, tal recitação seria apenas um elemento de dissuasão para a entrada de judeus cristãos, mas não uma expulsão oficial e diretamente imposta. Com relação aos hereges, Flusser (2002:190-1) acrescenta:
“Mas é verdade que, pela equiparação deles com o inimigo de fora, o iníquo Império Romano, pela sua inclusão na mesma benção, eles, os hereges – dos quais o grupo mais notável era o dos judeus-cristãos – foram condenados no mesmo grau. De qualquer modo, o ato de Gamaliel não foi um passo tão decisivo no afastamento do cristianismo do judaísmo como em geral é sugerido. Mesmo sem nenhuma alteração na bênção da parte da Sinagoga no período após a destruição do Templo, os judeus compreenderam a palavra ‘hereges’ como direcionada sobretudo contra os judeu-cristãos, e os próprios cristãos puderam presumir que a bênção era direcionada contra eles.”
Dadas as análises anteriores, gostaria de estabelecer algumas considerações:
1 – Teriam todas as comunidades cristãs se identificado inicialmente com a condição de “hereges”? Certamente aquele grupo de judeus-cristãos, fiéis seguidores da Lei Mosaica, tal como os remanescentes da Igreja-Mãe em Jerusalém que foram para Péla, não devem ter se sentido tão excluídos como os da comunidade joanina. De fato, encontramos uma disputa entre grupos semelhantes e os da comunidade de João.
“Aos judeus inquietados pelas tentativas dos cristãos de convertê-los, volta a pergunta cristã, que pode ser formulada com as palavras de João 9, 22: Por que eles decidiram que qualquer pessoa que reconheça Jesus como Messias não pode mais fazer parte da Sinagoga? Os cristãos cederam a esta decisão convertendo os judeus, afastando-os da sinagoga. Ambas as partes, as de então como as de hoje, têm que ver-se a braços com a questão de crer em Jesus e permanecer judeu praticante – questão essa que em última análise se reflete sobre a compatibilidade do cristianismo e do judaísmo” (BROWN, 2006:71)
O problema central para a comunidade joanina, como vimos, não é a defesa de Jesus como o messias, mas a defesa de Jesus como o filho de Deus, através de uma alta cristologia. É neste contexto que vemos a principal tensão entre os dois grupos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROWN, R. E. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulus, 2006.
FLUSSER, David. O judaísmo e as origens do cristianismo primitivo: volume III. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
KOESTER, Helmut. Introdução ao novo testamento, volume 2: história e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005.
KUMMEL, Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1982.
PAGELS, Elaine. As origens de satanás: um estudo sobre o poder que as forças irracionais exercem na sociedade moderna. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
STEGEMANN, Ekkehard W. & STEGGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Paulo: Paulus, 2004.
4 comentários:
Olá Flávio,
até um ano e meio atrás eu tinha um ângulo muito assentado em analisar o ambiente joanino a partir da "birkat". Eu fui ficando com o pé atrás a partir de umas polêmicas textuais e históricas, e hoje tenho visto uma tendência mais a partir de muitas obras publicadas no séc. XXI, numa tendência de minimizar bastante o efeito dela no texto de João. Dá muito pano pra manga.
Deixo uma discussão aqui que pode ilustrar bem essa situação:
http://www.biblicalfoundations.org/pdf/pdfarticles/destruction_temple_4th.pdf
O site em si é meio esquisito, essa "sociedade", mas encontrei-o a partir da referência que li em um e-book de John Lierman, "Challenging Perspectives on the Gospel of John" em que se encontra o artigo do Andreas J. Köstenberger, “The Destruction of the Second Temple and the Composition of the Fourth Gospel,” nas pgs, 72–76, pesquisando para uns assuntos a partir dum livro do Bauckham. Aí pelo menos para constar o artigo que acho que faz um bom release, prestou.
Esse tema dos estudos bíblicos, com todos os labirintos - é justamente o que nos enche de tesão para escarafuçar, rsrs.
Até mais, chefe
Oi
Tudo bem
Gostaria de fazer um comentário conforme o seu texto, com relação ao Judeus, os evangelhos foram escritos para pessoas diferentes: Mateus escreve para os Judeus, Marcos escreve aos crentes da grécia e de Roma, Lucas escreve aos gentios,e finalmente João escreve para a Igreja.
segunda-feira, 2 de maio de 2011 23h24min00s BRT
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