segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Josefo, Jesus, os Cristãos, Messianismo e Apocaliptismo no Judaismo do Primeiro Século: Tudo Junto e Misturado

Faz algum tempo, em nossa série sobre Jesus na Escala Richter de Impacto Histórico, abordamos algumas das principais objeções a autenticidade (parcial) do Testemunho Flaviano. No entanto, "por falta de espaço", duas ficaram faltando i) A de que Jesus e os cristãos não são citados por Josefo quando ele descreve os grupos religiosos tradicionais (ou peculiares) aos judeus ii) Jesus e os cristãos terem crenças messiânicas e apocalípticas, e portanto Josefo os abominaria.

Refletindo sobre essas questões, e já que falamos de seitas judaicas, messianismo, apocaliptismo, acho interessante aumentar o escopo da discussão. A questão das objeções ao Testemunho Flaviano servirá então como ponto de partida, para uma discussão mais ampla de como Jesus e os cristãos se inserem na "panela de pressão" da Palestina do Século I.

Os cristãos no Judaísmo: Josefo afirma que os judeus por muito tempo tiveram três filosofias peculiares. Os essênios, os saduceus e os fariseus. O esboço abaixo é baseado nas descrições de Josefo em várias partes da sua obra, sintetizadas pelos Professores Gerd Thiessen, da Universidade de Heildelberg, e Annete Merz , da Universidade de Utrecht [1]

Os saduceus, segundo Josefo, não acreditavam na imortalidade da alma e negavam penas ou recompesas depois da morte. Em sua visão, o homem é responsável pelo seu próprio destino. Seguiam apenas aLei Mosaica e rejeitavam a tradição dos pais. Debatiam entre si frequente e calorosamente, mesmo com seus mestres. No entanto, sua doutrina era aceita por poucos, ainda que esses poucos fossem influentes e poderosos. Por causa disso, quando assumiam o poder, "emprestavam" idéias e conceitos farisaicos, pois, de outra forma, não teriam suporte popular.

Os fariseus acreditavam na imortalidade da alma, que Deus puniria dos ímpios e recompensaria os justos, na ressureição dos mortos, que ressuscitariam. Eram sinergistas, istoé, acreditavam que os acontecimentos decorriam vontade divina em cooepração/conflito com os atos humanos. Seguiam a escritura e a tradição oral, acrescentando mandamentos as leis dos pais. Os mestres mais experientes entre eles eram muito honrados, e, diferentemente dos saduceus, apreciavam a harmonia entre si. Eram próximos do povo, que aceitava amplamente seus preceitos e estaria mais inclinado a seguir sua liderança do que os outros grupos.

Os essênios acreditavam na imortalidade da alma, no castigo dos maus e que os justos seriam recompensados com uma vida de alegrias, fora do corpo. Eram deterministas, o destino dos homens dependia da vontade de Deus. Viviam em comunidades separadas, eram celibatários, dividiam seus bens entre si, não possuiam servos, e se abstiveram do serviço do Templo de Jerusalém. Tinham livros e ensinos secretos.

Josefo descreve ainda uma quarta escola ou filosofia, aquela inspirada por Judas Galileu, que seguiam em tudo as doutrinas e concepções farisaicas, "mas possuiam um vinculo inquebrantável com a liberdade, e diziam que Deus era o seu único Senhor e Rei". Sua valentia era tanta que não davam valor a suas vidas, nem dos seus parentes e amigos. Não aceitavam ser súditos de homem algum. A ação e influência desses agitores e a inépcia dos goverdores romanos foi a causa dos tumultos e da Guerra, conforme Josefo.

Quanto ao Testemunho Flaviano, a implicação deste fato é pouco relevante para a questão da autenticidade. Um dos motivos é que Josefo descreve os fariseus, saduceus e essênios, sem citar as origens, os fundadores ou principais líderes destes grupos. Portanto, não haveria porque, necessariamente, citar a origem, fundador e lideres dos cristãos. O único dos quatro grupos que Josefo menciona o fundador, foi o dos revolucionários que seguiam a filosofia de Judas Galileu. Mas esses eram uma facção do grupo farisaico no aspecto religioso, tendo porém concepções políticas diferenciadas. E mesmo assim, é questionavel que figuras tão diferentes como Teudas, o profeta egípcio, e Menahem possam ser postos no mesmo bolo. O mais provável é que Josefo, convenientemente, classifica esses "renegados" como um nova escola, os isolando de outros grupos, mais antigos e venerandos. Assim, foi uma filosofia nova, recente, e não os preceitos tradicionais, combinado a governadores romanos ineptos (e não o domínio romano em si) que incitou a nação e a levou a revolta. Judas Galileu é importante também não só por seu ensino mas porque muitos de seus descendentes estiveram envolvidos em momentos decisivos de agitação revolucionária. Em 47 DC, os Tiago e Simão, filhos de Judas, foram executados pelo Procurador Tibério Alexandre (Ant. 20.100-103), em um momento em que o país passava por uma grande fome (o que pode ter sido utilizado por eles para fomentar a rebelião). Durante a Guerra Judaica, Menaem, descendente de Judas, proclamou-se Rei. Quando Jerusalem caiu, Eleazar ben Jair, primo de Menahem (e portanto parente de Judas), foi um dos líderes da resistência em Massada. A menção a Judas Galileu e sua família são essenciais para as finalidades apologéticas da narrativa de Josefo junto a seus leitores da aristocracia romana. As inovações de Judas teriam iludido e desencaminhado a nação, pois seus ensinos "alteraram o modo de vida de nossos pais, de tal maneira, que pesaram decisivamente para trazer tudo para a destruição" (Ant. 18:9), o legado de sua loucura foi de agitação, fome, destruição das cidades e do Templo de Deus (18:7-8). Judas Galileu e sua escola são o bode expiatório perfeito para Josefo, e caem como uma luva para sua narrativa.

Mas se a menção da seita por Josefo não implica, necessariamente, em citar seus fundadores, - e a excessão no caso de Judas Galileu e sua escola é explicada pela seu papel relevante nos tumultos do seculo I DC e na Guerra Judaica, e consequente destruição de Jerusalém e do Templo - porque Josefo não relaciona os cristãos entre as seitas judaicas? Essenios, Fariseus e Saduceus eram grupos antigos e tradicionais que existiam desde meados do II seculo AC, e os revolucionários são importantes por sua função na narrativa de serem a razão da ruína da nação, assim os outros grupos e facções podem não ter sido citados simplesmente por não serem importantes e/ou tradicionais o suficiente. Seu eu digo que os britânicos estão divididos entre conservadores, trabalhistas e liberais democratas, ou os americanos entre Democratas e Republicanos, isso não quer dizer que não existam partidos menores, ou subgrupos e movimentos relevantes cuja influência se estende tanto fora como dentro desses partidos. O mesmo pode ser dito ao mencionar PT, PSDB, PMDB, DEM e PP como as forças políticas tradicionais no Brasil, sem citar os inúmeros partidos e movimentos parlamentares menores. De fato, em uma passagem do Talmude de Jerusalem, o Rabi Yehoanam (século III DC) afirma que existiam 24 seitas entre os judeus [2]. Isoladamente, a confiabilidade desta tradição é duvidosa, porém varios textos e materiais datáveis dos séculos I AC e sec I DC indicam a existência de outros grupos. Em geral, os estudiosos concordam que existiam mais grupos religiosos além de essênios, fariseus e saduceus nos anos anteriores a destruição do Templo (70 DC) [3]. Existe também um consenso de que esta esquematização, é anacrônica e exclui importantes grupos como os samaritanos, zelotes, sicários, grupos batistas, enoquianos, judeus seguidores de magia, betusianos, escribas, milagreiros galileus, simpatizantes romanos, e muitos outros que reivindicavam ser judeus seguidores da Lei, e obviamente, os seguidores de Jesus na Judeia. [3]

Assim, independente da autenticidade do Testemunho Flaviano, o fato é que os cristãos existiam na Judéia como demonstram o complexo relacionamento entre Paulo e a Igreja de Jerusalém (Gl. 1:18-22 e 2:1-5; Rom. 15:26; I Tes. 2:14-16; I Cor. 16:1-4), e o fato de ser de conhecimento público entre os leitores de Josefo de que os cristãos - perseguidos em Roma desde o tempo do Imperador Nero (Tacito, Anais 15:44; Suetonio, De Vita Nero, 16:2) - eram originários da Judéia. Isso é consistente com o fato de Josefo não oferecer uma descrição dos cristãos entre os grupos tradicionais entre os judeus - existentes a mais de 250 anos e atores principais dos acontecimentos - e os cita (provavelmente) brevemente como uma seita sem muita importância que, surpreendentemente, ainda não se extinguira 60 anos após a morte de seu fundador.

Apocaliptismo, Messianismo, os Cristãos, Jesus e Josefo: Deve ser observado que as seitas judaícas, de modo geral, eram messiânicas. Inclusive os fariseus, grupo a qual Josefo se identificava. Além disso, as crenças messiânicas e apocalipticas estavam no auge entre o povo, e somadas a condições econômicas, sociais e políticas bastante específicas, exerceram grande pressão na palestina no período. Entre a morte de Herodes (4 AC) e a derrota de Simão Bar Kokhba (135 DC) a Judéia foi envolvida por três grandes rebeliões e vários tumultos, enquanto que nos séculos anteriores de domínio persa, helenista e herodianos so há registro de uma única grande rebelião (a dos macabeus). Portanto, para entender essas tensões vamos analisar agora as crenças desses grupos.

Josefo descreve os essênios em sua obra, com palavras de admiração e louvor:
"Merece nossa admiração quanto aos essênios que superaram todos os outros homens que se dedicavam a virtude , e o faziam com retidão e de tal forma que jamais aconteceu entre outros homens, nem gregos, nem judeus". (Antiguidades Judaicas 18:21)
"Há mesmo entre eles os que se tornam capazes de prever o futuro, exercitados que são no estudo dos livros santos, dos escritos sagrados e das sentenças dos profetas; e é raro que aconteça de se enganarem em suas predições" (Guerras Judaicas 2:159)

Filo também faz observações semelhantes em Hipotética 11:14-17.
Mas o que sabemos sobre os essênios, e suas crenças?

Professor David Flusser, da Universidade Hebraica:
"Ja os essênios eram de outra espécie. Originalmente, formavam um movimento revolucionário apocaliptico, que desenvolveu uma amálgama ideológica de pobreza e predestinação dupla. Eram os verdadeiros filhos da luz, os pobres divinamente eleitos. No iminente fim dos dias, pelo poder das armas e assistência das hostes celestiais herdariam a terra e conquistariam o mundo. Os filhos das trevas - o resto de Israel, os gentios e os poderes demoníacos que governam o universo - seriam aniquilados" [4]

Surpresa!!! Os essênios também eram messiânicos e apocalípticos. O que pode ser demonstrado analisando os Manuscitos do Mar Morto. Na opinião da grande maioria dos estudiosos, a maior parte desses textos seriam de autoria de uma comunidade de essênios, radicados em Quram, atual Jordânia [5]. De fato, os autores dos manuscritos do Mar Morto tem uma concepção apocaliptica muito agressiva. Professor Geza Vermes , da Universidade de Oxford, observa:

"A oração conhecida como a benção do Príncipe da Congregação, o futuro chefe militar da Comunidade de Qumrã, concebe uma figura guerreira semelhante dotada com características de sabedoria divina:
O Mestre abençoará o Principe da Congregação
Que há de Estabelecer o seu reino para sempre
Que o Senhor o erga a alturas perpétuas como uma torre fortificada
[Que derrotes os povos] com o poder de tua mão e devastes a terra com seu cetro
Que tragas a morte para o incréu com o hálito dos teus lábios
[Que ele derrame sobre ti o espirito do conselho] e o poder eterno do Espirito do conhecimento e o temor de Deus (1 QS 5:20-25)


Admitidamente, essa oração não contém o termo "Messias" propriamente, mas outras passagens do Mar Morto vêm em nosso socorro e esclarecem a questão. Eles fazem referência, por exemplo, ao "Messias dos Justos" a descendência de Davi (4 Q252 6 sobre Genêsis 49:10) ou descrevem o último Príncipe da Congregação como "Descendência de Davi e que derrotará os Cetim - Romanos (4Q285). [6].

O texto é radicalmente apocalíptico. Mas, como já dissemos, o apocaliptismo e o messianismo não são uma característica apenas dos sectários essênios. Na verdade, esses traços permeavam em maior ou menor grau todo o judaísmo, antes e depois da 1ª Guerra Judaico Romana (66-73 DC).

"Eis que o machado esta posto sobre a raiz das árvores" - O apocaliptismo e messianismo no Judaismo do Segundo Templo: O Professor Vermes também analisou as crenças apocalipticas e messiânicas dos essênios em contexto mais amplo, a luz das crenças comuns do judaismo do tempo de Jesus, tendo em vista das orações do povo judeu.

"As orações são provavelmente a melhor fonte a consultar para tentarmos descobrir que tipo de libertador a gente comum esperava. Os Salmos de Salomão (17 e 18), do século I AC, bem como a maior parte dos textos messiânicos entre os manuscristos do Mar Morto de data semelhante, juntamente com a famosa oração sinagogal das dezoito bençãos, em substância atribuiveis ao século I DC, transmitem-nos um quadro vivo do esperado Messias real. Eis o governante ungido dos Salmos de Salomão (17:23-24), poderoso justo e sagrado

Vê Senhor, e erige-lhes o seu rei, o Filho de Davi...
E cinge-o de força para que possa abalar os regentes injustos
E ele congregará um povo santo...
E servirá as nações pagãs sob seu jugo...
E será o Rei justo ensinado por Deus...
E não haverá injustiça nenhuma em seu meio no seus dias
Pois todos serão santos e seu Rei o ungido [do] Senhor"
[6]

As dezoito bençãos, como veremos adiante, eram recitadas diariamente nas sinagogas judaicas, não só em Israel, mas em todo Império. Os Salmos de Salomão também refletem também uma concepção judaica tradicional e popular do Messias.

Vermes observa também:
"Finalmente, talvez a mais influente de todas as orações judaicas, as dezoito bençãos, aqui citada a partir de sua versão palestina, também dá testemunho da esperança central da vinda de um rei ungido justo.
"Sejas bondoso, ó Senhor, Nosso Deus, conforme as tuas grandes mercês.
Para com Israel, o teu povo, e Jerusalém, a tua cidade, e a Sião, a residência da sua glória
e para com teu Templo e altar
e o reino da casa de Davi, o teu virtuoso Messias""
[6]

Professor Jona Lendering [7], observa que a literatura acadêmica distinguiu quatro tipos messiânicos no I século DC: o Messias Militar, um Rei Guerreiro, na semelhança e descendência de Davi, que derrotará as nações impías; o Messias Sábio, um mestre capaz de interpretar as escrituras de maneira correta, curar os enfermos e predizer o futuro (que também era chamado Filho de Davi); o Messias Sacerdotal, que derrota os inimigos de Israel (em um sentido mais afeito as forças malignas, demoniácas), traz boas novas de salvação, seria sacerdote para sempre, restabeleceria o culto verdadeiro e julgaria as nações; e o Messias "profeta como Moisés", que apareceria para guiar o povo e seria investido da autoridade que Moisés teve. A maioria das pessoas acreditava que o Messias combinaria todos os pelo menos alguns desses aspectos. Por exemplo, João Batista pode ter sido visto como um "profeta como Moisés" e Jesus de Nazaré é descrito nos evangelhos principalmente como um "messias sábio" (alguém que traz novas leis, cura, e profetiza), mas também como um Messias sacerdotal e um "profeta como Moisés". A idéia de um Messias Militar é claramente rejeitada nos evangelhos.

O professor Louis Feldman , da Yeshiva University, levanta mais alguns pontos, observando a prevalência das crenças messiânicas entre fariseus e rabinos posteriores
"Zeitlin observa que tanto na obra de Filo, quanto na de Josefo, não há qualquer menção ao Messias ou a expectativas messiânicas (Zeitlin não aceita a afirmação de que Jesus era o Messias em Antiguidades 18:63 como autêntica), e que essa omissão não se deve ao temor de seus benfeitores [de Josefo], os flavianos, mas ao fato dele não compartilhar essa crença. Nos podemos, entretanto, observar que, uma vez que Josefo se declara um fariseu (Vita, 12) é díficil acreditar que ele não aceitasse uma crença tão crucial entre os fariseus. Rivkin, deve ser dito, com base em Josefo, conclui que nem os fariseus, nem a maioria do povo judeu estava esperando o Messias; mas essa opinião esta em desacordo com o sentimento generalizado e esmagador do Talmude, e o fato de que, com excessão de Hilel II, no quarto século, nenhum outro rabino é citado como sendo cético da vinda do Messias" [8]

Desta forma, mesmo que se rejeite a autoria essênia dos manuscritos do Mar Morto, o fato é que o judaismo do I Século esta permeado dessas concepções, pedindo a Deus todos os dias pelo "reino da casa de Davi seu servo" e o "teu virtuoso Messias". E seus rabinos, nos séculos posteriores, discutiriam sobre o Messias e seu advento, como pode ser visto no Talmude. Desta forma, podemos dizer que os cristãos partilhavam uma crença judaica comum generalizada no apocalipse e no Messias. Essas crenças estavam firmemente enraizadas no judaismo em geral, e fazia parte do imaginário do povo e das elites, de uma ou de outra forma, com maior ou menor intensidade. Não se discutia se haveria ou não um Messias, mas sim como seria o seu advento, e a natureza de sua manifestação (se sacerdotal, ou militar, sabio/filosofo/milagreiro ou profética) .
É relevante que ainda que a identificação dos manuscritos do Mar Morto com os essênios seja equivocada, o ponto de vista da prevalência de crenças messiânicas entre os judeus do I século não é prejudicado, em vista das hipóteses concorrentes a posição dominante. Professor James Vanderkam, da Universidade Notre Dame, cita duas teorias alternativas a hipótese essênia dignas de alguma consideração [9]. O Prof. Norman Golb, da Universidade de Chicago, propõe que os manuscritos não foram compostos em Quram, mas em Jerusalém - por judeus de várias correntes religiosas, bem como sacerdotes do Templo - e que foram escondidos lá por refugiados da Guerra Judaico-Romana, Quram seia na verdade uma fortaleza. Já a segunda hipótese alternativa, é a do Professor Lawrence Schiffman (New York University), que o grupo de Quram e os textos escritos lá eram de origem saducaica. O termo saduceu, na teoria de Schiffman, merece algumas qualificações. Para ele tanto os saduceus da elite do Templo (mencionados no Novo Testamento e Josefo), quanto os essênios, tiveram uma origem comum, um grupo de sacerdotes do Templo do século II A.C, que se auto-denominava Filhos de Zadoque, ou Zadoqueus. Mas que, nos séculos seguintes, os dois grupos tomaram caminhos bastante distintos (e, certo sentido, como nas crenças de anjos e predestinação, seu oposto). Mas, como observa Vanderkam, a teoria de Schiffman não é, na verdade, uma negação da identificação com essênios, mas uma tese sobre uma origem comum deles com os saduceus [9]. E ainda que aceitemos a teoria de Golb, se torna ainda mais claro que o messianismo e apocaliptismo estavam entranhados no imaginário e convicções judaicas (até mesmo entre sacerdotes da elite do templo da classe saduceia dominante).

Flusser observa que "seitas radicais podem, com frequência, ser bastante afáveis"[10]. Ao longo de sua história o fervor apocalíptico dos essênios foi se amainando, e isso talvez explique o retrato como "monges" tranquilos, serenos, contudo arredios que fascinou Josefo, Filo e mesmo o romano Plinio, o Velho. De fato, apesar dos vários escritos apocalípticos, messiânicos, que previam a derrota dos impíos e a destruição de seu poder, que, obviamente, implicava na derrocada dos romanos, não há registro de envolvimento dos essênios nos numerosos tumultos e rebeliões ocorridos, excetuando-se a Guerra Judaica-Romana de 66-73 DC, quando os país inteiro se levantou contra os romanos.

Bandidos, Profetas e Messias: Josefo também descreve João Batista com algumas similaridades com os essênios (um profeta, que vivia no deserto, se dedicava a virtude, fazia banhos de purificação...). João Batista atrai multidões e causa alvoroço. Herodes Antipas fica alarmados, e tentam (e, efetivamente conseguem), silencia-lo. A acusação ou motivo da execução é a possibilidade de que as massas, excitadas pela pregação de João, fossem induzidas a rebelião (contra os Herodianos, e, em todo caso, contra Roma).

Falando sobre os efeitos da pregação de João sobre as massas, Professor John Dominic Crossan observa:
"De repente, tudo muda, mas sem qualquer explicação. Quem são esses outros, porque são tão incitados, qual é o conteúdo desses sermãos , onde João levaria aqueles que o obedecem em tudo o que faziam e como poderia tudo isso levar a alguma forma de sedição ou mesmo a uma sublevação? Depois de ler esta segunda parte, não surpreende que Antipas tenha rapidamente decidido eliminar João" [11]

A possibilidade, ainda que remota, de que João Batista se torne o líder de uma revolta (para se tornar rei?), leva a sua execução. Como diz Crossan, é possível que Josefo não tenha contado toda a história em relação a João Batista, deliberadamente relatando menos que sabia, para que os detalhes não ferissem suscetibilidades de seus leitores da elite greco-romana . É concebível que em seus sermões pudessem ser interpretados de forma revolucionárias.É pouco provável que multidões se deslocassem de seus lares apenas para ouvir homílias abstratas sobre a virtude, e mesmo se o fizessem, é inverossímil que tais sermões os deixassem "excitados" a tal ponto que uma raposa como Herodes Antipas viesse a temer uma rebelião. A pregação de João era certamente virtuosa, mas, com toda probabilidade, revolucionária. Provavelmente não da forma de um Judas Galileu, mas algo como um dos profetas do Velho Testamento. Josefo sabia mais sobre João do que ele conta. É bem provável que isso também se aplique aos essênios. No seu afã de tentar provar a seus leitores romanos e gregos que existiam grupos e profetas judeus que pregavam a virtude e não seguiam a quarta filosofia, ele torce os fatos. Nem João era um simples pregador da virtude, nem os essênios eram monges inofensivos (o que é um elemento que reforça a tese de que na parte josefana do Testemunho Flaviano, ele chamou Jesus de "homem sábio" e "realizador de feitos maravilhosos", ocultando o conhecido fato de que Jesus foi executado como "Rei dos Judeus").

E no que se refere aos cristãos, o único caso de sedição atribuído a eles, o incêndio de Roma em 64 DC, relatado por Tácito, que claramente afirma que eles foram utilizados como bode expiatório por um governante insano, Nero. Diferentemente do que a maioria dos pretendentes messiânicos a qual Josefo menciona - como Atronges, Judas Galileu, o profeta egípcio, Menaem e Simão Bar Giora - que invariavelmente se envolviam em rebeliões, e, conforme Josefo, "agiam pretensamente a título do bem público, mas na realidade com esperança de ganho pessoal, fomentando a sedição, e causando mortícinios". [Ant. 18: capítulo 1, seção 1 (§ 7-9)]

Mas mesmo a respeito desses messianistas revolucionários, Josefo reflete alguma ambiguidade. A passagem citada acima é de Antiguidades Judaicas (cf Ant. 18:4-9 e 23), e basicamente reitera, nesta parte do texto, o que ele havia escrito 15 anos antes em Guerras Judaicas. Contudo, segundo o Professor Giorgio Jossa, da Universidade Federico Napolitano (Itália), em Antiguidades, Josefo também parece indicar uma mudança de julgamento em relação a Judas Galileu, o inspirador desses rebeldes, e seus seguidores [12]. Jossa observa que em Guerras, Judas Galileu é mestre de uma escola "peculiar, e totalmente estranha as outras" (Guerras 2:118). Já em Antiguidades, Judas (junto com o fariseu Zadoque) é referido como fundador de uma nova filosofia - junto com as tradicionais dos saduceus, essênios e fariseus - similar em suas concepções a dos fariseus (Ant. 18:23), grupo a qual Josefo diz pertencer, e difere deste grupo apenas em seu apaixonado amor pela liberdade e por não admitir nenhum outro Senhor, se não Deus [12]. Prof. Jossa aponta também o fato de que Josefo agora admite que Judas e seu grupo conquistaram a admiração da população (Ant. 18:6) - e não apenas de um grupo de fanáticos, como em Guerras Judaicas [12]. Em suma, Josefo chega perto de elogiar Judas Galileu (Geza Vermes usa o termo bajular) [13]. Agora ele não é apenas um bandido disposto a insuflar as massas para o ganho pessoal, mas também um mestre tão apegado a liberdade, e tão cioso da devoção exclusiva de Deus sobre o povo judeu, que não aceita o domínio romano. Josefo reitera sua palavras de reprovação a esse grupo, mas a descrição muda significativamente.

Ou seja, mesmo em Antiguidades, até os "bad boys", os messianistas fanáticos, tem sua avaliação melhorada. Desta forma, se Josefo diz que um perigosos revolucionário - cujos os ensinos levaram a nação a catástrofe - era também um filosofo fundador de um escola, um amante inveterado da liberdade, que acreditava que o único Senhor era Deus, porque não pode chamar Jesus de homem sábio e realizador de feitos surpreendentes?

Assim, como os essênios (e o judaismo do I seculo em geral) os cristãos eram messiânicos. Tinham crenças apocalipticas. E seus textos evidenciam isso. Entretanto, apesar dessas crenças, Josefo pode apresentar um retrato extremamente favorável dos essênios, ainda que ele mesmo fosse fariseu. De fato, ele não poderia ignorar as crenças igualmente messiânicas e apocalipticas de seus companheiros fariseus. Provavelmente, as crenças apocaliptícas cristãs não destoavam tanto assim do que o restante dos judeus acreditava, e possivelmente fossem até bastante moderadas, se considerarmos o sucesso que as idéias de messianismo radical do fariseu Zadoque e Judas Galileu tiveram entre a população, como admite Josefo. Em suma, é razoavel que Josefo tivesse uma opinião neutra ou ligeiramente favoravél de Jesus, a despeito das crenças messiânicas e apocaliptícas de seus seguidores, pois mesmo quando descreve os perigosos messianistas radicais, ele tem algumas coisas boas a dizer. Além disso, o messianismo cristão não era o único, fariseus e essênios também criam no advento do "reino da casa de Davi, o teu virtuoso Messias".

Referência Bibliográficas
[1] Descrição baseada em Gerd Thiesen e Annete Merz (1996), O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 159 que esquematiza também em Antiguidades Judaicas 18: capitulo 1, (§ 11-25), Antiguidades Judaicas 13, capítulo 5, seção 9 e capítulo 10, seção 5 (§ 171-173 e 297), Guerras Judaicas 2, capítulo 8 (§ 118-166)
[2] Talmude de Jerusalem, Tratado Sinédrio 10.6.29.c. Ver também Louis Feldman (1996) Jewish life and thought among Greeks and Romans: primary readings
[3] James H. Charlesworth (2006), "The Dead Sea Scrolls: Their Discovery and Challenge to Biblical Studies," in The Bible and the Dead Sea Scrolls: Vol 1: Scripture and the Scrolls ed. J.H. Charlesworth, p.7
[4] David Flusser (1998), "Jesus", fls. 70-71
[5] James Tabor, "Getting all the facts wrong: Time Magazine on the Dead Sea Scrolls", em http://jamestabor.com/2009/03/17/getting-all-the-facts-wrong-time-magazine-on-the-dead-sea-scrolls/, acessado em 17.03.2009
[6] Geza Vermes (2000), "As Várias Faces de Jesus", fls 213-214
[7] Jona Lendering, "Messiah, From 'anointed one' to 'eschatological king'", artigos 7, 8, 9 e 10,
http://www.livius.org/men-mh/messiah/messiah00.html#overview, acessado em 17.01.2011
[8] Louis Feldman (1984), Flavius Josephus Revisited, In Wolfgang Haase & Temporini; Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, fl. 828
[9] David Flusser (1998), "Jesus", fls. 70-71
[10] James Vanderkam (2010), The Dead Sea Scroll Today, fls. 119 a 124
[11] John D. Crossan (1994), Jesus uma Biografia Revolucionária, fl. 50
[12] Giorgio Jossa (2005), Jews, Romans and Christians, from the Bellum Judaicum to Antiquities In Joseph Sievers & Gaia Lembi (2005): Josephus and Jewish History in Flavian Rome and Beyond, fls. 335-337
[13] Geza Vermes (2005), Quem e Quem na época de Jesus, fls 192-193

2 comentários:

informadordeopiniao disse...

Grande amigo Nehemias!!1

Cara, muito bacana e pertinente seu texto; como sempre, meu caro, valiosissimo!

Muitíssimo oportuno também, porque você sempre tem me recomendado me aprofundar mais nos trabalhos do Flusser, e eu estou lendo meu segundo livro dele, "Judaísmo e as origens do cristianismo, vl. II", que tem um foco amplo na expectativa escatológica, bem de acordo como você trata!

Há apenas uma ressalva que tenho feito nas leituras dele, e se deve a algo também que julgo ter corrigido numa postura minha também.

Creio que a comunidade de Qumrã era de essênios sim, mas tenho mais reservas do que ele, hoje - nem sempre foi assim - em falar deles dizendo "os essênios". Porque acredito que eles foram um grupo indisiocrático dentre os essênios, mas sectários e contra-culturais do que em geral os essênios eram; assim, eu acho q eles podem dar indicativos, mas não são representativos dos essênios em geral.

Bem, nada disso vai contra ou compromente em nada o vislumbramento com o que tenho lido do Flusser, tampouco com sua discussão problematizada.

Parabéns!

Nehemias disse...

Grande Rodrigo,

Fico feliz de ter gostado, e sim o Flusser é muito bom (só que esse livro que vc falou eu nunca li, embora minhas mãos tenham coçado para compra-lo muitas vezes).

Quanto os essênios, uma questão importante é se os caras que escreveram os Manuscritos do Mar Morto eram realmente essênios, seja de que corrente for. A maioria dos estudiosos ainda entende que sim, logo eu segui essa posição (até porque me parece mais convincente), explicitando algumas vezes no texto cenários com as teorias alternativas.

Quanto a se a seita dos manuscritos era representativa do que os essênios pensavam, eu concordo com vc que eles poderiam ser um ramo mais radical, tipo uma versão "Deus é Amor" ou "Assembléia de Deus dos Últimos Dias" dos essênios.

Mas, por outro lado, a identificação de Quram com essênios baseia-se em boa parte no comentário de Plinio, o Velho que localizava naquela região o centro da seita,e também descrevia os essenios como monges tranquilões, meio zen... Então mesmo a facção mais radical pode ter sido vista com simpatia.

Pessoalmente, me parece que Josefo ao mesmo tempo que ataca pretendentes messiânicos tenta "pausterizar" algumas figuras para o consumo de seus leitores. A parte sobre o João Batista não me convence, os evangelhos são muito mais plausíveis. Da mesma forma, entendo que os essênios de Quram pode até ter sido mais radicais que seus patrícios em outros lugares, devemos levar em conta que o "War Scroll" e coisas do tipo não eram para gente de fora, mais para os iniciados, de que o fervor apocaliptico do grupo deve ter reduzido ao longo do tempo... etc, etc, etc,...

Mas no fim das contas, o sujeito respira mesmo a esperança que o Senhor e seu ungido interviriam na historia, livraria o Templo e a Cidade Santa dos sacerdotes e autoridades religiosas corruptas, e restabeleceria o serviço do Templo e o ensino da Torah como deveria ser, e, principalmente, daria um grande chute cosmico no traseiro dos romanos.

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    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
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