domingo, 29 de setembro de 2013

Anotações AD CUMMULUS 04 - A escatologia no programa do evangelho joanino e no ideário de seu ambiente - revisado em 30/09

Em uma postagem no AD CUMMULUS, comento brevemente sobre alguns desdobramentos na caracterização das matrizes do evangelho de João. O fio condutor é a crescente “judaização” na concepção do ambientar dos ideários e expressões do documento.

Atravessara um processo interpretativo em que era concebido como um cristianismo já rompido com seu cerne judaico e de configuração helenizada, para um exemplo de expressões cristãs de segmentos marcados pelas religiões esotéricas e de mistério, mesmo já adiantadamente sincrético, passando por uma expressão de uma comunidade fortemente arcana, nos moldes da comunidade de Qumrã, tributária e devedora, ou mesmo emanada de segmentos desta; desembocando hoje para um panorama geral de um cristianismo alicerçado em formas judaicas com fortes marcas hierosolimitas tanto quanto de judaísmos da diáspora em forte polêmica com expressões religiosas mais ligadas ao Templo, no relativamente recente assentar na pesquisa, do polimorfismo que caracterizava a fé judaica daquele período em especial [ Eu particularmente não descarto a influência mesma de grupos samaritanos que ingressaram no cristianismo nos primeiros anos].

Essa conclusão se chega com a análise de correspondência de interpretações e elaborações teológicas do evangelho com documentos inter-testamentários e mesmo a partir de ambientações veterotestamentárias, inclusive de termos empregados que se consideravam antes essencialmente “pagãos”. E como se desdobram na teologia do evangelho em comum com temas característicos de expressões, expectativas, motivos, devoções do judaísmo contemporâneo a ele.

Apresentamos antes no AD CUMMULUS uma análise da linguagem do ”parto” e funções que adquirem nestas tônicas. Mencionaremos aqui mais brevemente [visto ser um tópico que rende extensos volumes no acúmulo da pesquisa], como ilustração de nossos pontos, o tema do “Logos” na introdução do livro.

Este termo recapitula a história da caracterização do evangelho como um todo mencionada. De um exemplo crasso dos motivos helênicos, a apelos de orientações de correntes cristãs esotéricas dissidentes e afeitas às religiões de mistério, à comunidades isolacionistas referenciadas nas comunidades do Mar Morto, para uma ênfase própria da comunidade arrabalde em motivos que, ainda com realces particulares da comunidade cristã, estão imersos no judaísmo de forma mais ampla e permeiam temas indistintos nele.

A princípio, se mostra a ligação com o estoicismo, que era, dentre as filosofias helênicas clássicas, talvez a de maior projeção na segunda metade do século I no império romano, período de transição entre as fases do estoicismo médio e o estoicismo romano mais desenvolvido [ vide: CHAUÍ,Marilena. Introdução à História da Filosofia. Companhia das Letras, 2002. Vl II As escolhas helenistas, pg. 289-90]

O estoicismo promovera uma adaptação ontológica do Logos tal como aparecera antes na filosofia dinâmica de Heráclito de Éfeso (530-470 a.C.), onde no pensamento deste aparece realçada tal como:  “[...] todas as coisas estavam em um determinado curso, e [...] nada permanece da mesma maneira. Entretanto, a ordem e o padrão podem ser percebidos em meio ao fluxo e ao refluxo eternos e incessantes das coisas no Logos – o princípio eterno de ordem no universo.” O Logos é o amálgama que confere unidade a tudo o que existe, que na representação da natureza por Heráclito em que a essência é a própria variação, o Logos é o Uno.  A filosofia do pensador então encara a pluralidade no Ser como constituída em essência segundo uma concepção monista; Heráclito: "homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só"[Hipólito, Refutações, IX, 10,6)].

No estoicismo também o Logos é a integração da totalidade das coisas, racionalidade que impede sua dissipação, embora no modelo estoico o Universo seja menos dinâmico, com o Logos interpenetrando nos seres ao invés de impulsionando a dinamicidade do devir.

Esta concepção em si, de um princípio abstrato impessoal e imanente não seria a apropriada para caracterizar o Logos tal como no prólogo Joanino, que o representa como transcendente mas volitivamente interatuante com o mundo, passivo de encarnação.

Criaram-se dificuldades para apresentar modelos explicativos sobre como se daria o processo de apropriação e ressignificação de fontes por parte de quem produzira o evangelho joanino. Cullmann aponta (pg. 331) que não se encontrara material, do século I, de suporte para a tese de Bultmann sobre o mito do Redentor Celestial gnóstico que baixou à terra análogo à concepção cristã; os indícios é que o gnosticismo partilhara de muitas fontes em comum com a igreja nascente. Contudo,em religiões antigas vê-se divindades portadoras da revelação as quais eram referidas como Logos, tal qual Hermes e o deus egípcio Thot. Nos textos mandeos, o Logos é associado à uma figura prototípica do “homem”.

Situação que perdurou até que convencionou-se propor como resposta, que tal se dera de forma mediada pelos escritos do erudito judeu-helenizado Fílon de Alexandria. Ele trabalhara com categorias medioplatônicas e estóicas no seu pensamento promovendo aportes para uma apresentação sistemática filosófica do judaísmo ante audiências helenizadas cultas ou de alto escalão social e político, moldando-as conforme o que julgava adequado para para apologia de sua fé.

Em Fílon, o Logos que toma de empréstimo na filosofia helênica é remodelado para tratar de como se dá a interação da divindade judaica com a criação, e não a criação com sua racionalidade organizadora inerente. Deus é o regente do mundo e o Logos é a razão que Deus imprime ao mundo, a racionalidade em como Deus o rege. É diferenciado de Deus, não uma “hipóstase” sua; é sua Palavra, instrumento prima facie de sua ação criadora, primordial assim a todas as outras coisas: “O que dizemos aproxima-se de um outro texto: 'o Logos divino se constitui como uma fronteira, voz por assim dizer em meio a elementos sem voz, a fim de que todo o Universo faça ouvir uma harmonia como que sob o comando da musa que compõe', pois ele [o Logos] intercede em meio às ameaças dos adversários pela mediação da persuasão, e restitui sua arbitragem.

Não é compartilha status pleno de Deus, mas é a sua imagem em termos da manifestação no mundo criado do cumprimento de sua vontade. Assim ele o identifica com a Torah dada a Moisés (Dufour, 1996, v. I, pg. 31)

 É a expressão da ação de Deus proveniente de seu intelecto. “Separa”, Fílon assinala, “tudo o que é criado, mortal, mutável, profano, de tua concepção de Deus, o incriado, o imutável, o imortal, o sagrado e unicamente santo". Não é Deus mas é distinto do mundo.

Obs. Todas as citações de Fílon extraídas de: REALE, GIOVANNI. “Filo de Alexandria e a 'filosofia mosaica'” - em “A redescoberta do incorpóreo e da transcendência – seção I”, de “História da Filosofia Antiga, vl.IV - As escolas da Era Imperial”. Edições Loyola, pgs. 215- 267.

Em João o Logos é representado em um papel ainda maior do que o de um intermediário: tal como antes da existência de qualquer algo mais que não Deus, remetendo ao prólogo do primeiro livro da Torah, o Logos estava com Deus e era Deus. No começar do livro do Gênesis, à referência “no princípio” - o primeiro termo das escrituras hebraicas - segue-se a ação de Deus, e em João, verbo de ligação, condição de ser. Desde essa singularidade inicial, “havia” ou “existia” o Logos; desde antes do começo do mundo o Logos estava lá. Diferentemente da Sabedoria, ele não é o começo do que apareceu no mundo, como um primeiro elo entre Deus e o mundo ou o primeiro de uma série temporal: ele existe no princípio, de forma absoluta. Ele não pode ser colocado pareado entre as criaturas (Dufour, p. 59). Concomitante, um passo além do que qualquer coisa passiva de ser figurada na filosofia religiosa de Fílon consta na teologia joanina: Que este Logos se fez “carne” no tempo (sarx egeneto) para trazer a revelação.

A construção joanina reporta-se a cenas de materiais escriturísticos judaicos que alimentavam e animavam a fé na amplitude das comunidades cristãs dos primórdios, com destaque a versão da Septuaginta, em que o Logos encontra-se congruente ao hebraico dabar,  como “Palavra” (Dufour, ibid). 

Assim nos equipamos para ver também tal associação com a tradição judaica da Sabedoria: A “Sabedoria” como reflexo da luz eterna - Livro da Sabedoria: 7,26 - e superior à toda luz criada - 7,29. Confira-se também em Sirácida, capítulo 24, e também Provérbios 8,22-31. Em I Henoque 42,12, a Sabedoria "tomou seu assento entre os anjos".

 “Sabedoria de Salomão (submetida já à influência alexandrina), onde lemos no capítulo 18:15: ‘Tua Palavra onipotente sai do trono real como um guerreiro implacável'...” (em Cullmann, p. 335). 

Em targuns aramaicos contemporâneos também vemos tal desenvolvimento: Menra (Palavra) – usada para nomear a presença de Deus, como Targum Onqelos sobre Ex. 3,12; e 19,17

Sem embargo, sugiro que, partilhando de nascentes em comum, das fontes de Fílon e as joaninas jorram córregos diferentes na formação do fluxo de emprego da imagem do Logos. Enquanto em Fílon os motivos eram de ordem ontológica para expressar uma cosmovisão do funcionamento do mundo e a relação de Deus com isto, em João os motivos eram eminentemente escatológicos: o destino do mundo, a partir de sua criação até o momento em que julgava fulcral nesta narrativa com o advento do Messias e o desembocar da história numa nova criação. Isto pode parecer em um momento algo muito estranho, dado que convencionalmente pensamos no evangelho como advogando uma escatologia realizada em um momento em que já se desvanecia o fervor escatológico.

Em consonância com o apresentado no estudo de caso sobre a imagem do parto na literatura joanina, neste comentário informal vou pontuar que podemos não só relativizar esta convenção colocando-a sob um prisma maior, como também pretendo assinalar que, compartilhando com atmosfera mais ampla da constelação de comunidades cristãs no século I este tema, podemos conceber que, concordando que nesta altura já não se tinha mais a mesma frenesi escatológica dos meados da década de 30 às iniciais da década de 50, significa que esta temática da nova criação é um aspecto crucial da fé do cristianismo nascente. Minha pretensão aqui neste texto é apenas lançar uma provocação para algo que pode ser melhor desenvolvido, um ponto de partida dentro de uma concepção de uma das funções na biblioblogosfera como sendo também de  instigar discussões concisas e fecundas.

Considero que o Prólogo não é carregado prima facie enquanto função poética, mas função apelativa; mais do que apenas uma abertura solene para suscitar espírito de devoção ao ler a narrativa, está ali para dar uma ideia do programa compreensivo e significado da mensagem que se pretende passar com o evangelho. Desta forma, possui uma estrutura de código que inclui uma retórica com enunciação e conclusão. O emprego de “no princípio” vem carregado com a elaboração de ideias sobre um novo gênesis da parte do poder redentor.

Ele proporciona uma ponte em que se liga a missão do Messias fundamentando-a numa teologia da criação. Em controvérsias quanto as questões religiosas, os evangelhos apresentam – apresentando assim o entendimento do ambiente de vida nos quais foram produzidos – Jesus referenciando-se numa teologia da criação, enquanto reforço da autoridade de sua interpretação ante a outras metodologias de outros mestres religiosos judaicos.
  • Então, lhe perguntaram: Quem és tu? Respondeu-lhes Jesus: Que é que desde o princípio (archēn) vos tenho dito? (Jo 8.25).
  • Respondeu-lhes Jesus: Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossa mulher; entretanto, não foi assim desde o principio (archēs) (Mt 19.8).

E na ética do novo modo de vida apregoado, os evangelhos mostram Jesus fundando-se em imagens que representariam o relacionamento provedor de Deus com a criação – Mt 6,25-34; Lc. 12,22-31.

Também círculos cristãos da Ásia Menor (confira nota [11] do texto do AD CUMMULUS linkado aqui no começo [a imagem do parto...]) vemos a associação do Cristo Exaltado com:
  • Ele é o cabeça do corpo, da Igreja. Ele é o princípio (archē), o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia (Cl. 1.18).
  • ... Estas coisas diz o Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio (archē) da criação de Deus...(Ap. 3.14).
  • ... ele veste um manto embebido de sangue, e o nome com que e chamado é 'Logos' de Deus. (Ap. 19,13)
  • ... Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio (archē) e o Fim. Eu, a quem tem sede, darei de graça da fonte da água da vida (Ap. 21.6; 22.13).

*Arche: começo, ponto de partida, princípio, suprema substância subjacente, princípio supremo indemonstrável.

Já nos remetemos à referência do Logos com seu papel na criação, feita à maneira de Fílon contudo aparentemente dotado de um status ainda maior. Se vê neste prólogo também o Logos atuando na redenção do mundo.

Nos detendo ainda na fértil construção joanina do atributo do Logos na criação, visualizamos a ligação com a redenção e o messias redentor. Se retomarmos nosso ponto assinalado em que enfatizamos o quanto o evangelho se remete e buscar sorver primariamente sua teologia no Antigo Testamento, esta ligação íntima entre o processo Criador com o Redentor encontra fundamento nele? Vemos que em textos proféticos especialmente considerados nas expectativas judaicas de redenção, esta se fundava também, para com YWHW enquanto:
YWHW - Criador dos Confins da Terra: Is.40,28
             Criador de Israel Is.43,18
             Criador da Salvação e Justiça Is.45,8

As proezas de salvação e atos de criação intimamente relacionados 41, 17-20; 45,1-8; 47; 48,6. Em Isaías 41,17-20- o retorno dos exilados é proclamado como novo ato recriador. Culmina na proclamação dos Novos Céus e Nova Terra no livro isaiânico posterior, em 65,17.

Ainda em segmentos judaicos variados contemporâneos, dotados de forte ênfase escatológica, vemos esta comparticipação, como em I Henoque, 91,15-16, com o vaticínio da purificação da terra e o conseguinte resplandecer dos “novos Céus e da nova Terra’, 
...chegará o tempo fixado do grande juízo, durante o qual passará o primeiro céu e um novo céu aparecerá e todos os poderes celestes estarão brilhando pelos séculos dos séculos.
  • 4 Esdras 6,25: E acontecerá que qualquer que sobreviver a todas as coisas que eu te predisse será salvo e verá minha salvação e o fim do mundo.
  • Assunção de Moisés 10,1: E então seu reino se manifestará em toda a criação; Satanás já não existirá, e a tristeza irá embora com ele.
  • 4Q52,1: Os céus e a terra escutarão o seu Messias, e ninguém se desviará dos mandamentos dos santo

E é digno de atenção que este ideário encontra-se vinculado a conjuntos cristãos da Ásia Menor, com abordagens teológicas diversas da joanina, contemporaneamente ao Evangelho, como visto em Colossenses: Cristo na Criação 1,15-17; na reconciliação 18-20, 28 e 3,13; Efésios 1,10. E em outro segmento judaico-cristão da diáspora judaica, Hebreus 1,3.

Em outra oportunidade poderemos continuar dando um tratamento mais detalhado e amplo para as asseverações feitas acerca desta questão do evangelho joanino, que exigem um tratamento de tamanho muito mais condizente do que este esboço apresentado. Contudo, espero que este comentário tenha servido para chamar a atenção sobre uma das facetas que considero mais estimulantes nos estudos das origens cristãs, sobretudo na interface dos estudos sobre história, literatura, cultura e imaginários: é como na astronomia, em que algum detalhe acerca de uma luz que chega em um ângulo ao qual ainda não foi reparada, pode fazer raiar aos nossos olhos novas constelações; talvez, não só abre uma nova galáxia a ser explorada como joga novos lampejos sobre o entendimento do cosmo.

Aqui eu tento apresentar novas cores ao evangelho joanino que podem causar estranhamento: muito comum e frequentemente bem estabelecido que é um evangelho numa situação em que buscava-se saber como manter o fervor devocional diante do desvanecer do ardor escatológico, professando uma escatologia realizada [confira observação e nota [13] no texto do AD CUMMULUS linkado aqui no começo (A imagem do parto....)]  ao mesmo tempo que supramundana, somo aqui, ao tratamento dado à imagem do parto, esta abordagem do programa delineado a partir do prólogo: Criação - Redenção - Consumação no renovar do mundo, compartilhando concepções/expectativas de escopos mais amplos do cristianismo nascente. E que isto não vem à tona se esperarmos contar com declarações diretas ou quadros narrativos explícitos, mas com análises da simbologia dentro do mosaico da matriz judaica, onde podemos ver interconexões na literatura veterotestamentária, inter-testamentária e a partir daí, buscarmos ver paralelos em concepções nos legadas em outros documentos cristãos (aqui não abordamos por questão de espaço, materiais na literatura cristã não canônica dos finais do século I e começo do II). 

Advogo que o evangelho está embebido e reelabora a partir da crença de que o Messias já viera na pessoa de Jesus de Nazaré e o enxergar da sua pessoa e obra no quadro mais amplo da ação do Deus de Israel. Do que era concebido um evangelho helênico, à proto-gnóstico ou ocultista, fortalece-se seus alicerces em ideários judaicos amplamente partilhados, ainda que com sua peculiaridade sociológica e deixando entrever o quanto é multifacetado quanto a grupos de seu ambiente (hierosolimitas, judaico-helenistas e samaritanos). 

Coloco que mais além do que os apontamentos particulares, ressoa que a exegese e estudo histórico das ideias contidas no círculo joanino devem assim buscar criteriosa e cuidadosamente tratamentos análogos a midráshicos em pontos que anteriormente não se buscava tal, para desvendar melhor a cultura e visão de mundo que eles reverberam.

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