Em uma postagem no AD CUMMULUS, comento brevemente sobre alguns desdobramentos na
caracterização das matrizes do evangelho de João. O fio condutor é
a crescente “judaização” na concepção do ambientar dos
ideários e expressões do documento.
Atravessara um processo interpretativo em que era concebido como um cristianismo já rompido com seu cerne
judaico e de configuração helenizada, para um exemplo de expressões
cristãs de segmentos marcados pelas religiões esotéricas e de
mistério, mesmo já adiantadamente sincrético, passando por uma
expressão de uma comunidade fortemente arcana, nos moldes da
comunidade de Qumrã, tributária e devedora, ou mesmo emanada de
segmentos desta; desembocando hoje para um panorama geral de um cristianismo
alicerçado em formas judaicas com fortes marcas hierosolimitas tanto
quanto de judaísmos da diáspora em forte polêmica com expressões
religiosas mais ligadas ao Templo, no relativamente recente assentar na pesquisa, do polimorfismo que caracterizava a fé judaica daquele período em
especial [ Eu particularmente não descarto a influência mesma de
grupos samaritanos que ingressaram no cristianismo nos primeiros
anos].
Essa conclusão se
chega com a análise de correspondência de interpretações e
elaborações teológicas do evangelho com documentos
inter-testamentários e mesmo a partir de ambientações
veterotestamentárias, inclusive de termos empregados que se
consideravam antes essencialmente “pagãos”. E como se desdobram
na teologia do evangelho em comum com temas característicos de
expressões, expectativas, motivos, devoções do judaísmo
contemporâneo a ele.
Apresentamos antes no AD CUMMULUS uma
análise da linguagem do ”parto” e funções que adquirem nestas
tônicas. Mencionaremos aqui mais brevemente [visto ser um tópico
que rende extensos volumes no acúmulo da pesquisa], como ilustração
de nossos pontos, o tema do “Logos” na introdução do livro.
Este termo recapitula a
história da caracterização do evangelho como um todo mencionada.
De um exemplo crasso dos motivos helênicos, a apelos de orientações
de correntes cristãs esotéricas dissidentes e afeitas às religiões
de mistério, à comunidades isolacionistas referenciadas nas
comunidades do Mar Morto, para uma ênfase própria da comunidade
arrabalde em motivos que, ainda com realces particulares da
comunidade cristã, estão imersos no judaísmo de forma mais ampla e
permeiam temas indistintos nele.
A princípio, se mostra
a ligação com o estoicismo, que era, dentre as filosofias helênicas
clássicas, talvez a de maior projeção na segunda metade do século
I no império romano, período de transição entre as fases do
estoicismo médio e o estoicismo romano mais desenvolvido [ vide: CHAUÍ,Marilena. Introdução à História da Filosofia. Companhia das
Letras, 2002. Vl II As escolhas helenistas, pg. 289-90]
O estoicismo
promovera uma adaptação ontológica do Logos tal como aparecera antes na
filosofia dinâmica de Heráclito de Éfeso (530-470 a.C.), onde no
pensamento deste aparece realçada tal como: “[...] todas as
coisas estavam em um determinado curso, e [...] nada permanece da
mesma maneira. Entretanto, a ordem e o padrão podem ser percebidos
em meio ao fluxo e ao refluxo eternos e incessantes das coisas
no Logos – o princípio eterno de ordem no universo.” O
Logos é o amálgama que confere unidade a tudo o que existe, que na
representação da natureza por Heráclito em que a essência é a
própria variação, o Logos é o Uno. A filosofia do pensador
então encara a pluralidade no Ser como constituída em essência
segundo uma concepção monista; Heráclito: "homens
são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só"[Hipólito, Refutações, IX, 10,6)].
No estoicismo também o Logos é a integração da totalidade das coisas, racionalidade que impede sua dissipação, embora no modelo estoico o Universo seja menos dinâmico, com o Logos interpenetrando nos seres ao invés de impulsionando a dinamicidade do devir.
No estoicismo também o Logos é a integração da totalidade das coisas, racionalidade que impede sua dissipação, embora no modelo estoico o Universo seja menos dinâmico, com o Logos interpenetrando nos seres ao invés de impulsionando a dinamicidade do devir.
Esta concepção em si,
de um princípio abstrato impessoal e imanente não seria a
apropriada para caracterizar o Logos tal como no prólogo Joanino,
que o representa como transcendente mas volitivamente interatuante
com o mundo, passivo de encarnação.
Criaram-se dificuldades
para apresentar modelos explicativos sobre como se daria o processo de apropriação e ressignificação de fontes por parte de quem produzira o evangelho joanino. Cullmann aponta
(pg. 331) que não se encontrara material, do século I, de suporte
para a tese de Bultmann sobre o mito do Redentor Celestial gnóstico
que baixou à terra análogo à concepção cristã; os indícios é
que o gnosticismo partilhara de muitas fontes em comum com a igreja nascente. Contudo,em
religiões antigas vê-se divindades portadoras da revelação as
quais eram referidas como Logos, tal qual Hermes e o deus egípcio Thot.
Nos textos mandeos, o Logos é associado à uma figura prototípica
do “homem”.
Situação que perdurou
até que convencionou-se propor como resposta, que tal se dera de
forma mediada pelos escritos do erudito judeu-helenizado Fílon de
Alexandria. Ele trabalhara com categorias medioplatônicas e estóicas
no seu pensamento promovendo aportes para uma apresentação
sistemática filosófica do judaísmo ante audiências helenizadas
cultas ou de alto escalão social e político, moldando-as conforme o
que julgava adequado para para apologia de sua fé.
Em Fílon, o Logos que
toma de empréstimo na filosofia helênica é remodelado para tratar
de como se dá a interação da divindade judaica com a criação, e
não a criação com sua racionalidade organizadora inerente. Deus é
o regente do mundo e o Logos é a razão que Deus imprime ao mundo, a
racionalidade em como Deus o rege. É diferenciado de Deus, não uma
“hipóstase” sua; é sua Palavra, instrumento prima facie de sua
ação criadora, primordial assim a todas as outras coisas: “O
que dizemos aproxima-se de um outro texto: 'o Logos divino se
constitui como uma fronteira, voz por assim dizer em meio a elementos
sem voz, a fim de que todo o Universo faça ouvir uma harmonia como
que sob o comando da musa que compõe', pois ele [o Logos] intercede
em meio às ameaças dos adversários pela mediação da persuasão,
e restitui sua arbitragem.”
Não é compartilha
status pleno de Deus, mas é a sua imagem em termos da manifestação
no mundo criado do cumprimento de sua vontade. Assim ele o identifica
com a Torah dada a Moisés (Dufour, 1996, v. I, pg. 31)
É a expressão
da ação de Deus proveniente de seu intelecto. “Separa”, Fílon assinala, “tudo o que é criado, mortal, mutável, profano, de
tua concepção de Deus, o incriado, o imutável, o imortal, o
sagrado e unicamente santo". Não é Deus mas
é distinto do mundo.
Obs. Todas as citações
de Fílon extraídas de: REALE, GIOVANNI. “Filo de Alexandria e a
'filosofia mosaica'” - em “A redescoberta do incorpóreo e da
transcendência – seção I”, de “História da Filosofia
Antiga, vl.IV - As escolas da Era Imperial”. Edições Loyola, pgs. 215- 267.
Em João o Logos é
representado em um papel ainda maior do que o de um intermediário:
tal como antes da existência de qualquer algo mais que não Deus,
remetendo ao prólogo do primeiro livro da Torah, o Logos estava com
Deus e era Deus. No começar do livro do Gênesis, à referência “no princípio” - o primeiro termo das escrituras hebraicas -
segue-se a ação de Deus, e em João, verbo de ligação, condição
de ser. Desde essa singularidade inicial,
“havia” ou “existia” o Logos; desde antes do começo do
mundo o Logos estava lá. Diferentemente da Sabedoria, ele
não é o começo do que apareceu no mundo, como um
primeiro elo entre Deus e o mundo ou o primeiro de uma série
temporal: ele existe no princípio, de forma absoluta. Ele
não pode ser colocado pareado entre as criaturas (Dufour, p. 59).
Concomitante, um passo além do que qualquer coisa passiva de ser
figurada na filosofia religiosa de Fílon consta na teologia joanina:
Que este Logos se fez “carne” no tempo (sarx egeneto) para trazer
a revelação.
A construção joanina
reporta-se a cenas de materiais escriturísticos judaicos que
alimentavam e animavam a fé na amplitude das comunidades cristãs
dos primórdios, com destaque a versão da Septuaginta, em que
o Logos encontra-se congruente ao hebraico dabar, como
“Palavra” (Dufour, ibid).
Assim nos equipamos
para ver também tal associação com a tradição judaica da
Sabedoria: A “Sabedoria” como reflexo da luz eterna - Livro da Sabedoria: 7,26 - e
superior à toda luz criada - 7,29. Confira-se também em Sirácida, capítulo 24, e também Provérbios 8,22-31. Em I Henoque 42,12, a Sabedoria "tomou seu assento entre os anjos".
“Sabedoria
de Salomão (submetida já à influência alexandrina), onde
lemos no capítulo 18:15: ‘Tua Palavra onipotente sai do trono real
como um guerreiro implacável'...” (em Cullmann, p. 335).
Em
targuns aramaicos contemporâneos também vemos tal desenvolvimento:
Menra (Palavra) – usada para nomear a presença de Deus, como
Targum Onqelos sobre Ex. 3,12; e 19,17
Sem embargo, sugiro
que, partilhando de nascentes em comum, das fontes de Fílon e as
joaninas jorram córregos diferentes na formação do fluxo de
emprego da imagem do Logos. Enquanto em Fílon os motivos eram de
ordem ontológica para expressar uma cosmovisão do funcionamento do
mundo e a relação de Deus com isto, em João os motivos eram
eminentemente escatológicos: o destino do mundo, a partir de sua
criação até o momento em que julgava fulcral nesta narrativa com o
advento do Messias e o desembocar da história numa nova criação.
Isto pode parecer em um momento algo muito estranho, dado que
convencionalmente pensamos no evangelho como advogando uma
escatologia realizada em um momento em que já se desvanecia o
fervor escatológico.
Em consonância com o
apresentado no estudo de caso sobre a imagem do parto na literatura
joanina, neste comentário informal vou pontuar que podemos não só
relativizar esta convenção colocando-a sob um prisma maior, como
também pretendo assinalar que, compartilhando com atmosfera mais
ampla da constelação de comunidades cristãs no século I este
tema, podemos conceber que, concordando que nesta altura já não se
tinha mais a mesma frenesi escatológica dos meados da década de 30
às iniciais da década de 50, significa que esta temática da nova criação
é um aspecto crucial da fé do cristianismo nascente. Minha
pretensão aqui neste texto é apenas lançar uma provocação para
algo que pode ser melhor desenvolvido, um ponto de partida dentro de uma concepção de uma das funções na biblioblogosfera como sendo também de instigar
discussões concisas e fecundas.
Considero que o Prólogo
não é carregado prima facie enquanto função poética, mas função
apelativa; mais do que apenas uma abertura solene para suscitar
espírito de devoção ao ler a narrativa, está ali para dar uma
ideia do programa compreensivo e significado da mensagem que se
pretende passar com o evangelho. Desta forma, possui uma estrutura de
código que inclui uma retórica com enunciação e conclusão. O
emprego de “no princípio” vem carregado com a elaboração de
ideias sobre um novo gênesis da parte do poder redentor.
Ele proporciona uma
ponte em que se liga a missão do Messias fundamentando-a numa
teologia da criação. Em controvérsias quanto as questões
religiosas, os evangelhos apresentam – apresentando assim o
entendimento do ambiente de vida nos quais foram produzidos – Jesus
referenciando-se numa teologia da criação, enquanto reforço da
autoridade de sua interpretação ante a outras metodologias de
outros mestres religiosos judaicos.
- Então, lhe perguntaram: Quem és tu? Respondeu-lhes Jesus: Que é que desde o princípio (archēn) vos tenho dito? (Jo 8.25).
- Respondeu-lhes Jesus: Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossa mulher; entretanto, não foi assim desde o principio (archēs) (Mt 19.8).
E na ética do novo
modo de vida apregoado, os evangelhos mostram Jesus fundando-se em
imagens que representariam o relacionamento provedor de Deus com a
criação – Mt 6,25-34; Lc. 12,22-31.
Também círculos
cristãos da Ásia Menor (confira nota [11] do texto do AD CUMMULUS linkado aqui no começo [a imagem do parto...]) vemos a associação do Cristo Exaltado com:
- Ele é o cabeça do corpo, da Igreja. Ele é o princípio (archē), o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia (Cl. 1.18).
- ... Estas coisas diz o Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio (archē) da criação de Deus...(Ap. 3.14).
- ... ele veste um manto embebido de sangue, e o nome com que e chamado é 'Logos' de Deus. (Ap. 19,13)
- ... Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio (archē) e o Fim. Eu, a quem tem sede, darei de graça da fonte da água da vida (Ap. 21.6; 22.13).
*Arche: começo,
ponto de partida, princípio, suprema substância subjacente,
princípio supremo indemonstrável.
Já nos remetemos à
referência do Logos com seu papel na criação, feita à maneira de
Fílon contudo aparentemente dotado de um status ainda maior. Se vê
neste prólogo também o Logos atuando na redenção do mundo.
Nos detendo ainda na
fértil construção joanina do atributo do Logos na criação,
visualizamos a ligação com a redenção e o messias redentor. Se
retomarmos nosso ponto assinalado em que enfatizamos o quanto o
evangelho se remete e buscar sorver primariamente sua teologia no
Antigo Testamento, esta ligação íntima entre o processo Criador
com o Redentor encontra fundamento nele? Vemos que em textos
proféticos especialmente considerados nas expectativas judaicas de
redenção, esta se fundava também, para com YWHW enquanto:
YWHW - Criador dos
Confins da Terra: Is.40,28
Criador de Israel Is.43,18
Criador da Salvação e Justiça Is.45,8
As proezas de salvação
e atos de criação intimamente relacionados 41, 17-20; 45,1-8; 47; 48,6. Em Isaías 41,17-20- o retorno dos exilados é proclamado
como novo ato recriador. Culmina na proclamação dos Novos Céus e
Nova Terra no livro isaiânico posterior, em 65,17.
Ainda em segmentos
judaicos variados contemporâneos, dotados de forte ênfase
escatológica, vemos esta comparticipação, como em I Henoque,
91,15-16, com o vaticínio da purificação da terra e o conseguinte
resplandecer dos “novos Céus e da nova Terra’,
...chegará o tempo
fixado do grande juízo, durante o qual passará o primeiro céu e um
novo céu aparecerá e todos os poderes celestes estarão brilhando
pelos séculos dos séculos.
- 4 Esdras 6,25: E acontecerá que qualquer que sobreviver a todas as coisas que eu te predisse será salvo e verá minha salvação e o fim do mundo.
- Assunção de Moisés 10,1: E então seu reino se manifestará em toda a criação; Satanás já não existirá, e a tristeza irá embora com ele.
- 4Q52,1: Os céus e a terra escutarão o seu Messias, e ninguém se desviará dos mandamentos dos santo
E é digno de atenção
que este ideário encontra-se vinculado a conjuntos cristãos da Ásia
Menor, com abordagens teológicas diversas da joanina,
contemporaneamente ao Evangelho, como visto em Colossenses: Cristo na
Criação 1,15-17; na reconciliação 18-20, 28 e 3,13; Efésios
1,10. E em outro segmento judaico-cristão da diáspora judaica,
Hebreus 1,3.
Em outra oportunidade
poderemos continuar dando um tratamento mais detalhado e amplo para
as asseverações feitas acerca desta questão do evangelho joanino,
que exigem um tratamento de tamanho muito mais condizente
do que este esboço apresentado. Contudo, espero que este comentário tenha servido para
chamar a atenção sobre uma das facetas que considero mais estimulantes nos
estudos das origens cristãs, sobretudo na interface dos estudos
sobre história, literatura, cultura e imaginários: é como na
astronomia, em que algum detalhe acerca de uma luz que chega em um
ângulo ao qual ainda não foi reparada, pode fazer raiar aos nossos
olhos novas constelações; talvez, não só abre uma nova galáxia a
ser explorada como joga novos lampejos sobre o entendimento do cosmo.
Aqui eu tento
apresentar novas cores ao evangelho joanino que podem causar
estranhamento: muito comum e frequentemente bem estabelecido que é
um evangelho numa situação em que buscava-se saber como manter o
fervor devocional diante do desvanecer do ardor escatológico,
professando uma escatologia realizada [confira observação e nota [13] no texto do AD CUMMULUS linkado aqui no começo (A imagem do parto....)] ao mesmo tempo que
supramundana, somo aqui, ao tratamento dado à imagem do parto, esta
abordagem do programa delineado a partir do prólogo: Criação -
Redenção - Consumação no renovar do mundo, compartilhando concepções/expectativas de escopos mais amplos do cristianismo nascente. E que isto não vem à
tona se esperarmos contar com declarações diretas ou quadros
narrativos explícitos, mas com análises da simbologia dentro do
mosaico da matriz judaica, onde podemos ver interconexões na
literatura veterotestamentária, inter-testamentária e a partir daí,
buscarmos ver paralelos em concepções nos legadas em outros
documentos cristãos (aqui não abordamos por questão de espaço,
materiais na literatura cristã não canônica dos finais do século
I e começo do II).
Advogo que o evangelho está embebido e reelabora
a partir da crença de que o Messias já viera na pessoa de Jesus de
Nazaré e o enxergar da sua pessoa e obra no quadro mais amplo da
ação do Deus de Israel. Do que era concebido um evangelho helênico, à proto-gnóstico
ou ocultista, fortalece-se seus alicerces em ideários judaicos
amplamente partilhados, ainda que com sua peculiaridade sociológica
e deixando entrever o quanto é multifacetado quanto a grupos de seu
ambiente (hierosolimitas, judaico-helenistas e samaritanos).
Coloco que mais além
do que os apontamentos particulares, ressoa que a exegese e estudo
histórico das ideias contidas no círculo joanino devem assim buscar
criteriosa e cuidadosamente tratamentos análogos a midráshicos em
pontos que anteriormente não se buscava tal, para desvendar melhor a
cultura e visão de mundo que eles reverberam.
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