sábado, 24 de outubro de 2015

Divisando matérias-primas do ideário cristão nas narrativas da vinda de Jesus ao mundo


Matthias Grünewald: Isenheim Altar - opened, 1
Altar de Isenheim - Matthias Grünewald

As famosas narrativas de episódios que cercam a anunciação e o nascimento de Jesus movimentam o imaginário de gerações até os dias de hoje. Na arte e literatura, na academia, igrejas, mídias, festas populares, se escreveu, tratados, muito se poetizou, cantou, encenou e pesquisou.

Historiadores e outros estudiosos especializados produziram miríades de volumes abrangendo vários aspectos. Dentre estes, algo que sempre gerou profusas controvérsias é a discrepância geral das narrativas produzidas dentro da mesma geração. Nota-se variações desde o começo e a apresentação, passando pelas genealogias, circunstâncias históricas imediatas, e outras de caráter geográfico e político.

Sobretudo, para a possibilidade de um mínimo fio sincronizado, forçoso é considerar que boa parte das cenas do evangelho da tradição de Mateus se passa em cerca de dois anos após o nascimento narrado em Lucas. Muitas outras dificuldades, tanto em particular de cada um, quanto mais ainda tomadas em conjunto, surgem, mesmo considerando variados graus de liberdade para imaginação literária e emprego de simbologia. O que suscitou outro grande debate relacionado às hipóteses de composições dos evangelhos... o escritor do evangelho segundo Mateus conhecia o material de Lucas? O de Lucas conhecia o de Mateus? Se uma resposta é positiva, porque produziu outro relato, e com tantas diferenças? Ou não conheciam um ao outro? Sendo assim, havia várias versões circulando ou se contavam muitos relatos e cada um dos escritores trabalhou com alguns - para uma deliberada ênfase no plano geral de seu propósito para todo o evangelho escrito?

Por outro lado, temos também elementos centrais para a tradição que se dão em comum com as duas narrativas, sugerindo fortemente que compartilhavam de tradições amplas e antigas dentre os cristãos de então.

Como também ponderou John.P. Méier [1]:
(...)Quaisquer concordâncias entre os dois [Mateus e Lucas] nessas narrativas se tornam historicamente significativas, em especial quando o critério da múltipla confirmação é invocado. Essas concordâncias em duas narrativas independentes e profundamente contrastantes representariam, no mínimo, um recurso a uma tradição mais antiga, e não a criação dos evangelistas.

Pelo menos doze pontos nos chamam muito a atenção:

1 – O nascimento de Jesus é contextualizado ainda durante o governo de Herodes Magno (Mt. 2.1; Lc. 1.27-34).
2 – Maria não se relacionara sexualmente com José antes de se engravidar (Mt.1.18; Lc 1.27-34)
3 – José não participa da concepção de Jesus (Mt. 1.18-25; Lc. 1.34)
4 – José é da linhagem de Davi (Mt. 1.16-20; Lc. 1.27; 2.4).
5 – A concepção e nascimento de Jesus é anunciada por um anjo ( Mt. 1.20-21; Lc. 1.28-30)
6 – Mesmo assim põe em relevo que Jesus é descendente de Davi (Mt.1.1; Lc.1.32)
7 – O nome “Jesus” é designado antes do seu nascimento (Mt. 1.21; Lc. 1.31)
8 - Jesus veio ao mundo concebido por ação miraculosa do Espírito Santo (Mt. 1.18- 20; Lc 1.35)
9 – Jesus é vocacionado pelo Deus de Israel como o ‘Salvador’ ( Mt.1.24-25; Lc. 2.11)
10 – José e Maria se casam antes do nascimento de Jesus (Mt. 1.24-25; Lc. 2. 4-7)
11 – O nascimento de Jesus se dá em Belém (Mt. 2.1; Lc. 2.4-7)
12 – Nazaré passa ser a residência da família de Jesus e onde ele cresce (Mt. 2.22-23; Lc. 2.39-51)

Mas o interesse histórico está longe de encerrar em exames quanto a factualidade de eventos particulares, apesar de ser o que mais concentra o interesse dos leigos. Há vários campos que a investigação trabalha. Aqui nos propomos num breve esboço, nos debruçar sobre o que este material nos pode desvelar sobre as matérias-primas e estruturas da formação da fé das primeiras gerações de cristãos.

Um exemplo propício a se começar é com as genealogias; enquanto muito se discutiu acerca de diferenças, particularidades e artifícios simbólicos nas genealogias mateanas e lucanas, muitas vezes se deixou escapar a indagação relativa a terem apresentado a pessoa de Jesus com genealogias. Mas, na Bíblia Hebraica, genealogias costumam funcionar elos de unificação entre figuras principais da história do povo de Israel, como Abraão-Noé-Adão. Logo, ambos evangelistas trabalham por encaixar a figura de Jesus num horizonte histórico maior no qual se opera a ação divina de acordo com seu plano, Jesus fazendo parte do mesmo em um ápice juntamente com figuras especiais para a memória devocional do povo.

Albrecht Dürer: Seven Sorrows: The Flight into Egypt
A Fuga para o Egito - Albrecht Dürer

Em Mateus, o quadro maior da saga da família de Jesus e sua emigração – sim, refugiados políticos – e retorno para a terra é algo muito mais íntimo do que uma mera alusão evocativa à tradição do chamado do povo para fora do Egito, tal como consta em tradições proféticas como em Oseias 11,1.

Os judeus reavivavam estas tradições em formatos devocionais, e um deles que temos registro hoje é o chamado Hagadah da Páscoa, de cerca dos finais do século I a.C. [2].

Jerome Murphy O'Connor [3] nos produziu uma valiosa tabela em que lhes coloca em paralelo:

História da Fuga e Regresso
Agadah da Páscoa
1) Perigo (v. 13d) “Herodes procura a criança para destruí-la
1) Perigo (I,1) “O arameu procurou destruir o meu pai”
2) Mandamento divino (v.13b) “Toma a criança de sua mãe e foge para o Egito”
2) Mandamento divino (II,1) “Desceu ao Egito impelido pela palavra do Senhor”
3) Estadia temporária (v. 13c) “Permanece lá até que eu te avise”
3) Estadia temporária (II,2) “Não desceu ao Egito para lá se instalar, mas apenas para ficar algum tempo
4) Regresso (v.20) “Toma a criança e vá para a terra de Israel”
4) Regresso (VII,1) “O Senhor trouxe-nos do Egito, não por meio de um anjo, nem por meio de um mensageiro, mas pelo próprio Altíssimo, que Ele seja louvado”


Já vimos aí que da parte de um evangelista, a apresentação de Jesus coloca-lhe invocando importantíssimas rememorações e anelos da fé judaica.

No material do evangelista lucano, temos uma fartura tão grande de recortes que aqui poderemos tratar de um dos mais de mais forte apelo: sua coleção de poemas presentes nos dois primeiros capítulos. Estes foram cantados e declamados ao longo dos séculos e são presença altissonante em liturgias de várias igrejas e comunidades religiosas. Podemos somente imaginar a força simbólica e apelativa que teriam ao serem lidas ou entoadas pelos cristãos antigos.

Sugiro aos leitores que, se possível, leiam cada um mas afastando um pouco a ligação com todos os evangelhos, como se fossem salmos independentes dos livros em que foram inseridos.

Com essa sugestão, fica mais fácil compreender aquilo que James D.G.Dunn [4] enunciou algo que foi pontuado com destaque na academia em períodos recentes:
Qualquer que seja a sua origem e derivação final, Lucas possivelmente as extraiu da adoração das congregações primitivas (antes que das memórias retrospectivas de oitenta anos atrás). Em outras palavras, são os salmos das comunidades palestinenses antigas, que atingiram sua forma atual em um período quando não havia quaisquer cristãos, somente judeus que acreditavam que o Messias havia chegado (p. 230).

Teria o célebre pesquisador ido muito longe com esta colocação?

Comecemos com o mais aclamado e presente dos hinos, o amplamente conhecido como “Magnificat” de Maria, devido à tradução latina da abertura do mesmo.

Na Bíblia Hebraica, uma mulher ter um filho anunciado por Deus numa situação inusitada sempre indicava um plano especial para o povo na história, como com Isaque, Sansão e Samuel – Gn 18,11; Jz 13,2-5; ISm 1-2.

Os termos do anúncio do anjo a Maria “grande aos olhos do Senhor”, o reino sobre a casa de Israel, que “não terá fim” faz eco a movimentos nacionalistas contemporâneos que produziram literatura que também expressava estes termos, como os “Salmos de Salomão 1-2”. Novamente, materiais culturais judaicos que aspiravam uma libertação nacional, reconfigurados para se centrarem em Jesus.

O Magnificat está estruturado na forma da canção de Ana em I Sm 2,1-10. Alude a diversas passagens da Bíblia Hebraica relacionadas à libertação nacional e figura régia:

Verso 48: I Sm 1,11
Vs 49: Sl 111,9
Vs 50: Sl 103,13-17
Vs51: Sl 89,10; 2Sm 22,28
Vs52: Jó 12,19; 5,11;
Vs 53: I Sm 2,5; Sl 107,9
Vs 54: Is 41,8
Vs55: Mq 7,20;Gn 17,7; 22,17;2Sm 22,51

Dunn assinala ainda que “É notável que não haja nenhuma ideia especificamente cristã nele; é tipicamente hebraico no caráter e no conteúdo. Mas igualmente notável que nos primeiros dias da nova fé, cristãos fossem capazes de tomá-lo como expressão de seu próprio louvor” (p.299)

Assim também se passa com o “Benedictus”, segundo Darrel L. Bock [5], um louvor do sacerdote Zacarias em que profetiza acerca do seu filho João que vai nascer com uma missão especial; segundo o pesquisador mencionado, o hino tem ecos principalmente do agradecimento de Salomão (notar especialmente o vs 69), em 1Reis 8,15, por ter sido agente do cumprimento da promessa de Deus de lhe construir um Templo. Também é articulado numa linguagem que lembra salmos como 89,24; 106,10, 45-46; 105,8-9. A descrição do “Chifre da Salvação” ecoa a descrição de Davi em ICr 17,4.

A sublime menção ao “profeta do Altíssimo” atribuída ao menino no vs. 76 faz lembrar a passagem do livro de Isaías 40,35 ( posteriormente, a menção ao “mensageiro” em Malaquias 3,1) com acentuada conotação de esperança de redenção coletiva; o evangelista vai retomar essa linguagem em 3,4-6. Ainda na bênção de Zacarias, a importante ênfase no termo “redimiu” faz alusão à libertação do cativeiro egípcio, onde se amarra à evocação de Deus visitando seu povo para redenção.

Dunn também ponderou sobre este hino: 
Uma das figuras ou dos títulos da esperança messiânica judaica era 'o profeta' (Dt 18,18s; Is61,1ss; Ml.4,5; Testamento de Levi 8,15;Testamento de Benjamin 9,2 [?]; IQS9,11; 4Qtest. 5-8); e a palavra grega usada no v. 78 para nascente (anatolë) pode ser uma alusão à LXX de Jeremias 23,5; Zacarias 3,8; 6,12) onde ela traduz a metáfora messiânica 'ramo'.

Outra bela peça exposta na narrativa lucana é o hino tradicionalmente conhecido como “Gloria in Excelsius” (Lc.2,14), que já foi matéria-prima para belíssimas composições de Bach e Vivaldi; Dunn ainda foi mais enfático sobre o mesmo: “Não contém nada especificamente cristã em si, isto é, fora de seu contexto”.

O hino conta com uma expressão importante, “povo de quem ele se agrada” que apresenta paralelos de aspirações de libertação nacional em um trecho dos rolos da comunidade de Qumrã, 1QH 4,32-33 e no texto protorrabínico Shemoneh Esrei, benção de gratidão 17, a “Avodah”. 

Ainda outras referências importantes embutidas no segundo capítulo de Lucas são auspiciosas: em 2,13-14 ele joga com uma contraposição entre as anunciações de arautos imperiais sobre a “pax augusta”, a “paz universal” reivindicada pelo imperador romano Augusto. Prepara o terreno para mais à frente (Lc 2,25-26) fazer menção à “Consolação”, expressão da intervenção de Deus a favor de Israel (Is. 49,13; 51,3; 52,9; 66,13).

Há ainda algo notável relacionado ao Magnificat que deixamos para o final destas nossas constações. O cântico anuncia um título real atribuído ao Jesus que estaria para vir ao mundo, o “Filho do Altíssimo” [6]. Coisa de poucas décadas atrás importantes estudiosos consideravam que esta expressão fora tomada de empréstimo do meio cultural helenístico, não fazendo parte dos primórdios da tradição cristã e assim sendo, uma atribuição que fora incorporada mais tarde através de um processo evolutivo gradual.

Mas após um trabalho com um fragmento dos Manuscritos do Mar Morto, constatou-se o uso desta expressão por parte do imaginário messiânico e escatológico. Mais do que isso, este fragmento de Qunram inteiro tem fortes ecos em comum com a linguagem do Magnificat. Na tradução e reconstrução de Hershell Shanks, “[X]será grande sobre a terra. [Oh Rei, todos (povos) haverão de] fazer [paz], e todos haverão de servi-[lo. Ele será chamado o filho] do [G]rande [Deus], e por este nome será aclamado (como) o Filho de Deus, e o chamarão Filho do Altíssimo” [7].


Combinando este mosaico temos uma tela em que se retrata algo que bate de frente com algumas inferências vulgarmente encontradas, que dizem que a fé cristã despontou em uma clivagem aguda com uma expressão do judaísmo com fortes preocupações messiânicas de cunho político e comunal, aspirando a uma subversão das estruturas de poder do Império e uma libertação nacional. Estas falas que lemos ou ouvimos contrapõem com isso uma fé cristã que nasceu com um caráter mais “espiritual” (sic), intimista e individualista, cuja aspiração seria o gozo da libertação da alma para as regiões celestes despregando-se das preocupações com o destino do povo como um todo e do mundo.

O quadro apresentado vai em um sentido em que esta clivagem alegada é significativamente nuançada. A matéria-prima e os materiais que engendravam a fé cristã nascente compartilhavam, mesmo bebiam das fontes de aspirações coletivas judaicas, com acentos de anelos para subversão das estruturas de poder pela ação de Deus na história, partindo desse mesmo Deus das tradições de Israel, reconfiguradas de forma em que a figura do messias Jesus fosse central e o sujeito consumador vital, com as ênfases próprias de seus ethos comunitário e com uma força propulsora centrífuga.

Ficamos aqui por esta vez, brindando com a belíssima abertura da composição do “Magnificat” por Johann Sebastian Bach. 




[ 1] MÉIER, J.P. Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico. Volume Um: As Raízes do Problema e da Pessoa. Rio de Janeiro: Imago, 1993, pp. 213-214.

[ 2 ] FILKENSTEIN, L. The Oldest Midrash, Pré-Rabbinic Ideals and Teaching in the Passover Haggadah. Harvard Theological Review,Vl; 31. 1938, pp 291-317

[ 3 ] MURPHY O'CONNOR, J. Jesus e Paulo: Vidas Paralelas. São Paulo: Paulinas. 2008. pp.22

[ 4 ] DUNN, J. Unidade e Diversidade no Novo Testamento. Santo André: Editora Academia Cristã, 2009.

[ 5 ]. BOCK, D.L. Jesus segundo as escrituras. São Paulo: Shedd Publicações, 2006, pp.56-57.

[ 6 ] FITZMYER, J. A. 4Q246 The "Son of God" Document from Qumran. Biblica: 1993, pp.153-174

[ 7 ] SHANKS, H. (org). Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto; uma coletânea de ensaios da Biblical Archaeology Review. Rio de Janeiro: Imago, 1993, pp. 212-214



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