quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Cristologia e Messianologia Centrífuga e Centrípeta no livro de Hebreus


Em uma postagem, “Transculturalismo e retórica nocristianismo nascente”, fiz umas asserções polêmicas em relação a questão da evolução da cristologia e do ideário em torno da figura de Jesus ao longo do período inicial de desenvolvimento do cristianismo.

Ela bate de frente com a perspectiva da formação paulatina através do sincretismo e assimilação de idéias alheias as quais não encontravam fundamento ou ressonância em períodos anteriores, emergindo assim destas incorporações, uma configuração completamente nova em relação à matiz judaica da igreja nascente.

Nesta postagem, trabalhei primeiramente com pontos de retórica paulina, argumentando que ela adotava estratégias e pontes que consistiam em “em reapresentar e/ou confrontar termos e formulações de doutrinas ou pensamentos alternativos e/ou divergentes de maneira a usa-los como apoio ao seu evangelho, como instrumento de demonstração do papel de Jesus num quadro de pensamento mais amplo numa atividade fagocitária.” E mais adiante afirmei que (...)”O autor de Efésios, na linha do ambiente de Paulo, utiliza a mesma estratégia”.

Para poder ter uma visualização mais próxima, nesta postagem agora debruçaremos especificamente em um documento importante no Novo Testamento, emanado de e para um ambiente judaico helenizado. Já fora mencionada na postagem sobre a qual comentara, que “Perspectivas, crenças e expectativas judaicas que eram polêmicas para com o cristianismo poderiam ser sujeitas do mesmo recurso tal como mencionamos em relação às outras linhas de pensamento ou visões de mundo. O livro de Hebreus ilustraria isso através das diversas drashs - 'interpretação; descobrir o significado através da midrash, por comparação palavras e formas e também por ocorrências semelhantes noutros locais'- desenvolvidas envolvendo a figura de Melquisedeque, Moisés, os serviços rituais do Templo...”

Este livro possui datação controversa, variando entre os especialistas de ser dos meados dos anos 60 a última década do século I. Eu me inclino a considerar ser de pouco após a destruição do Templo de Jerusalém. O autor é ainda mais controverso, para o qual temos menos dados aproximativos ainda e o grau especulativo é bem maior. É notório que se trata de algum judeu helenizado e bastante culto, conhecedor de técnicas rabínicas de exegese e exposição.

foi apresentado aqui no blog um importante autor e pesquisador, David Flusser, com um ímpar conhecimento de fontes judaicas do século I a.C., e dos sécs. I e II. Em um importantíssimo trabalho [1],  ele se debruça sobre a retórica e matiz hermenêutica do autor de Hebreus.

Flusser apresenta uma série de discussões presentes em Midrashs (sobretudo de Salmos como o 8, 22, 68, 84, 110), targuns aramaicos (sobretudo do livro de Isaías e Zacarias), comentários presentes nos manuscritos do Mar Morto, Documento de Damasco, Pergaminho de Ação de Graças, debates entre rabinos e escolas rabínicas, em que se debate o papel e o grau do status do Messias; em que são justapostas as figuras do Messias Sacerdotal, de descendência levita e referenciando-se a Aarão, com o Messias de Realeza, referenciando-se em Davi, com escolas diferentes exaltando um a mais do que outro. Discussões envolvendo traduções e interpretações bíblicas, incluindo a versão da Septuaginta, sobre interpretações diferentes dos status dos anjos, ante à figuras importantes no imaginário judaico, como Moisés, Abraão, Davi, Zorobabel, e o Messias, com diversas apontando o status superior deste. Também com Melkizedeque, que é visto como uma figura de expressão de Deus, até mesmo com um ser arquetípico da realeza davídica (Malkhi-Zedek = Rei de Justiça). Essas figuras apareciam em diversas expressões, como mais exaltadas ontologicamente do que qualquer outro ser humano, a nível acima do humano.

O autor de Hebreus teria se engajado então em toda essa matiz, em que haviam debates contemporâneos a ele, que permaneceram por tempos, mas também diversos textos atestando controvérsias anteriores, como os Salmos de Salomão, que permaneciam fortes em seu tempo. Ele teria usado um método de argumentação semelhante às discussões rabínicas, pegando o gancho para trazer para discussões internas nas igrejas cristãs judaico-helênicas, com uma noção nova, em que imagens e artes retóricas são tomadas de empréstimo de forma útil para apresentar a superioridade de Jesus Cristo e seu papel elevado exaltado ao lado de Deus. Combinaria já na glorificação de sua missão terrena o papel presente do Mais Alto Sacerdote, junto com Deus, com sua obra presente, ainda a ser consumada, de Grande Juiz e Rei sobre o cosmo. Sua eternidade com a ressurreição, sua preexistência na hipóstase da “Sabedoria” de Deus, seu papel de Filho ante aos ministradores e servos, o testemunho direto de Deus, são motivos invocados ligados com passagens-chave dos debates.

Segundo Flusser (pg 38, 39), 

Por um lado, o tema principal de Hebreus é a tentativa de provar, a partir das Escrituras, que a nova dispensação é superior à antiga e que, para esse propósito, o autor tenta persuadir seus leitores da vantagem de Cristo como Filho de Deus sobre várias personalidades, instituições e criaturas celestiais do Velho Testamento. Por outro lado, a justaposição não se origina de uma luta espiritual entre a nova comunidade cristã e a velha comunidade de Israel, ou um de seus grupos. Pelo contrário, o autor cristão toma, para sua polêmica, material literário do judaísmo de seu tempo. Os próprios judeus, em debates internos ou num esforço comum, estavam então discutindo o grau mais alto ou mais baixo de personalidades bíblicas e criaturas celestiais.(...)
A fusão de idéias e motivos judaicos com a nova perspectiva cristã é típica não apenas da Epístola aos Hebreus, mas também de todos os escritos do segundo estrato do cristianismo.
(...)Temos de lembrar que nem todos os motivos usados no cristianismo do Novo Testamento a fim de descrever o caráter divino de Cristo e sua tarefa cósmica são especificamente cristãos. Muitos deles se originaram de especulações judaicas sobre a pessoa e grau do Messias e figuras bíblicas, bem como de outros theologoumena judaicos.

Outros pesquisadores de formação diversa detêm-se em pontos específicos que ampliam nossa percepção a respeito deste trabalho no livro.

Christopher Richardson [2], PhD pelo Covenant Theological Seminary, argúi a respeito da discussão do autor de Hebreus circundando a figura enigmática de Melquisedeque, que sua discussão visa ao ponto de que “(...)Como Melquisedeque , a quem 'não tem fim de dias' mas 'para sempre permanece sacerdote',  o sacerdócio de Jesus também 'é dependente da....qualidade de vida' que ele possui (78). No caso de Jesus , é vida ressurreta que é decisiva , já que ele se 'tornou-se um sacerdote ... através do poder de uma vida indestrutível' (7:16 , ver também 7:24-25)" .


Tratando da arte argumentativa do autor, Herbert W. Bateman, professor de Novo Testamento no Southwestern Baptist Theological Seminary em Fort Worth, Texas, faz [3] uma contribuição colocando as abordagens das Escrituras pelo autor de Hebreus em paralelo com documentos de Qumrã e as sete regrasexegéticas atribuídas a Hillel, no que frisa a questão messiânica da realeza davídica.

Pamela Eisebaum [4] professora Associada de Estudos Bíblicos e Origens Cristãs,no Center for Judaic Studies da Universidade de Denver, escreveu uma importantíssima dissertação em que ela expõe sobre Hebreus 11, traçando paralelos com listas de heróis da Bíblia Hebraica, da literatura judaica do século I e listas greco-romanas de heróis. Ela entrevê alusões com retóricas em Aristóteles, Quitiliano, Isócrates e Cícero, deixando evidente, contudo, a proximidade bem maior com as listas judaicas, ainda que em sua complexidade, não fica nada a perder com a retórica helênica, que oferece uma caracterização considerável, em sua multidimensionalidade, para o estudo do capítulo, na estratégia de legitimação da comunidade cristã à qual o livro é endereçado.

Análises de pequenas partes-chave do livro servem para assentar de maneira mais opaca este vislumbre.  Craig Keener, Ph.D. na Universidade de Duke, professor de Novo Testamento no  Asbury Theological Seminary, discorre sobre 2.10 [4]:
O termo archçgos, traduzido “autor”, ou “príncipe”, significa “pioneiro”, “líder” ou “campeão”. O termo era usado para heróis humanos e divinos, fundadores de escolas ou aqueles que cortavam um caminho adiante para os seus seguidores.

Sobre 1.5, uma passagem-chave, Keener explica:
O autor cita o Salmo 2.7 e 2 Samuel 7.14, textos que já haviam sido ligados a especulações sobre a vinda do Messias (nos Manuscritos do Mar Morto). Os intérpretes judeus frequentemente ligavam os textos por meio de uma palavra-chave comum; a palavra aqui é “Filho”. Como muitos outros textos messiânicos, o Salmo 2 originalmente celebrava a promessa para a linha davídica em 2 Samuel 7; a “geração” se refere à coração real – no caso de Jesus, sua exaltação (cf. similarmente a At. 13,33).

Como ressaltado na postagem “Transculturalismo e retórica”, esta estratégia abre campos de pesquisa ampliados sobre a retórica e apologética no cristianismo nascente, com imensa demanda de pesquisadores e trabalhos.

Há um amplo campo sob o escopo do que se mostra como um espectro de tentativas de pensar o divino e sua relação com o mundo à medida que se busca comunicar as convicções do cristianismo nascente acerca do papel de Jesus para com o a história e com o culto e seu papel redentor, de acordo com as matizes culturais do ambiente de vida da igreja nascente. Um marco em amplitude de abordagem e que abre diversos caminhos a serem explorados, dentro do que trabalhamos nesta postagem espeficicamente, relacionando com um ângulo alternativo, o impacto e reação dos rabinos e os reflexos e reações nos movimentos gnósticos,  é a obra de Alan F. Segal, "Two Powers in Heaven: Early Rabbinic Reports about Christianity and Gnosticism".


[1] Flusser, David. “Messianologia e Cristologia na Epístola dos Hebreus”, captulo II de “O Judaísmo e as Origens do Cristianismo”, volume 2. Rio de Janeiro, Imago, 2001. 

[2] Richardson, Christopher; “The Passion: Reconsidering Hebrews 5.7–8” , em Bauckham, Richard; Hart, Trevor; MacDonald, Nathan; Driver, Daniel. eds. “A Cloud of Witnesses: The Theology of Hebrews in its AncientContexts". Library of New Testament. Studies 387

[3] Bateman, Herbert W. “Early Jewish Hermeneutics andHebrews 1:5-13: The Impact of Early Jewish Exegesis on the Interpretation of aSignificant New Testament Passage”.  American University Studies, Series 7: Theology and Religion 193. New York: Peter Lang, 1997.

 [4] Eisenbaum, Pamela Michelle. “The Jewish Heroes ofChristian History: Hebrews 11 in Literary Context”. SBL Dissertation Series 156. Atlanta: Scholars Press, 1997.

 [5] Keener, Craig S. “Comentário Bíblico Atos – NovoTestamento”. Belo Horizonte. Ed. Atos, 2004. “Hebreus” PPS 669-707.


3 comentários:

Nehemias disse...

Eu acho interessante que um "problema" que o autor de Hebreus tinha para apresentar Jesus como "Sumo-Sacerdote" era o fato, conhecido, que "Nosso Senhor nasceu da tribo de Judá, tribo a qual Moisés nada encarregou ao falar de sacerdócio" (Hb 7:14). A comparação com Melquisedeque, além do link já explorado com os manuscritos do mar morto e pseudigrafos, oferece uma figura bíblica que, praticamente, "pula de para-quedas", "sem pai, sem mãe, sem genealiogia..." para abençoar Abraão, o Pai dos Crentes. Um tipo perfeito.

Muito bom,
Abs,
Nehemias

informadordeopiniao disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
informadordeopiniao disse...

Chefe Nehemias! Feliz ano novo!

Que bom que você gostou da postagem!

Eu fiquei fascinado com o que se descortinou enquanto eu estudava isso. Na verdade, acabei deixando muito resumidinho, mas daria para desmembrar muito a postagem. Eu vi que havia uma certa controvérsia que tomava a figura de Melquisedek naquele período. Havia uma atmosfera da linha à Qumrã, como na Regra XI e no Enoque eslavo, que tomava-lhe como uma figura de um Sacerdote Aarânico messiânico, enfatizando escatologicamente seu papel preponderante no juízo final; e outra, na atmosfera da linhagem rabínica, como no tratado Avot de Rabbi Natan, é tipológico do Messias Davídico, enfatizando-o escatologicamente no papel de Rei da Justiça (Malkhi-Zedek). Interessante é que em ambas ele é desenvolvido como preexistente e imortal.
Assim, é fascinante vermos o quanto alguns dos documentos muitas vezes referidos como os mais helenizados do NT, Hebreus, e tb João, se mostram profundamente arraigados e matizados na cultura judaica.

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