a) David Flusser
David Flusser (1917-2000) foi Professor de Judaismo do Segundo Templo e Cristianismo Antigo do Departamento de Religiões Comparadas da Universidade Hebraica de Jerusalém. Flusser era membro da Academia Israelense de Ciências e Humanidades, e recebeu o Israel Prize em 1980, por sua contribuição ao estudo da História Judaica. Flusser nasceu em Viena (Austria), mas foi criado na atual República Tcheca. Com a crescente ameaça do nazismo, ele emigrou para Israel em 1939, onde continuou sua carreira acadêmica. Seu interesse pelo estudo do cristianismo e da figura de Jesus surgiu com sua amizade com cristãos menonitas na República Tcheca.
Um de seus principais livros foi o Livro Jesus (1965), escrito em alemão, ampliado e revisado em 1998, em uma nova edição, agora em Inglês, "Jesus, The Sage from Galilee". Flusser, que era adepto do judaismo ortodoxo, dedicou seu livro a seus "amigos menonitas". Em sua prefácio da versão revisada, Flusser faz considerações em relação a seu método de trabalho:
"A edição alemã de meu livro foi muito bem recebida na Europa, encontrando somente tênue oposição por parte de alguns círculos cristãos extremamente conservadores. Seus pares americanos devem compreender que, em virtude da minha origem judaica, não posso ser mais cristão que a maioria dos crentes em Jesus. Minha interpretação dos evangelhos, porém é mais conservadora que a de muitos estudiosos do Novo Testamento na atualiadade. Atribuo minha abordagem conservadora a minha formação, que não foi de um teólogo, seja ele judeu ou cristão mais de um classicista. Meu método fundamenta-se nas disciplinas de estudos clássicos, cujo interesse são os textos gregos e latinos. Estou confiante que os três primeiros evangelhos refletem, fidedignamente, o Jesus Histórico. Além disso não gosto da dicotomia feita entre o "Jesus Histórico" e o "Cristo Querigmático". [1]
Talvez alguns dos leitores, e certamente muitos estudiosos, tenham ficado chocados com a afirmação de Flusser, de que os evangelhos sinóticos "refletem fidedignamente o Jesus Histórico". No entanto, essa afirmação não deve ser considerada fora de contexto. Flusser qualifica cuidadosamente seu posicionamento como veremos adiante. (E, além disso, o ponto é que os evangelhos sinóticos foram elaborados a partir de fontes mais antigas compostas pelos discípulos de Jesus e o Igreja de Jerusalém). De qualquer forma, ele ressalta que sua abordagem é, comparativamente, mais conservadora que de muitos estudiosos do novo testamento, justamente por sua formação e vivência como classicista e historiador da antiguidade grego-romana. Ele acrescenta mais detalhes de sua abordagem e método:
"Não estou sugerindo , em absoluto, que a leitura dos textos deva ser isenta de críticas. Isto deve ficar claro apóa a leitura do primeiro capítulo, onde analiso sucintamente meu método crítico.
"Meu enfoque conservador dos evangelhos origina-se também da minha identidade judaica. Como judeu, estudei, tanto quanto possível, as várias tendências dentro do judaismo antigo. Esta direção é deveras útil para a interpretação dos evangelhos, particularmente das palavras e dos feitos de Jesus"[1]
Ou seja, Flusser estabelece dois níveis de comparação para análise dos textos evangélicos. O primeiro é o mundo greco-romano. O segundo é o judaismo do segundo templo, seus escritos e seus grupos variados. Assim, os evangelhos são textos como vários outros textos elaborados no contexto local, do judaismo antigo, quanto global, da Antiguidade romana. Os ditos e feitos de Jesus são então comparados com os de vários outros carismáticos, pregadores e profetas da Antiguidade. Flusser continua, abordando a questão do sabemos e podemos saber sobre Jesus:
"Realmente, possuimos registros mais completos sobre as vidas de imperadores seus contemporâneos e de alguns poetas romanos. Entretanto, a exceção do historiador Flávio Josefo, e possivelmente de São Paulo, Jesus é o judeu, de épocas posteriores ao Antigo Testamento, sobre quem mais sabemos.
Toda biografia tem seus próprios problemas peculiares. Dificilmente esperaríamos encontrar informação de Jesus em documentos não cristãos. Ele compartilha deste destino com Moisés, Buda e Maomé, que, do mesmo modo, tampouco recebem menção alguma de relatos de não crentes (...)" [2]
Flusser observa que mesmo quando fontes externas e contemporâneas existem, as informações mais relevantes sobre um líder carísmático serão obtidas nos seus próprios ensinos e nos documentos produzidos por seus seguidores ("lidos de forma crítica, é claro")[2]. Flusser introduz dois exemplos modernos [2], o primeiro é o do fundador da Igreja de Jesus Cristo dos Ultimos Dias (Mormóns), Joseph Smith, cujas fontes biográficas são, basicamente, seus próprios escritos e documentos elaborados por seus seguidores. O outro é o do líder religioso africano Simon Kimbangu, a qual são creditados milagres de cura realizados entre março e setembro de 1921 no antigo Congo Belga. Kimbangu atraiu multidões com suas pregações e foi considerado suspeito de sedição pelas autoridades coloniais, que o aprisionaram em Leopoldville (Kinshasa) a mais de 1000 km de sua vila. Kimbamgu morreu lá em 1950. Entretanto, sua mensagem inspirou a Igreja Kimbangista. Flusser observa que devido a brevidade de seu ministério, e por ele nada ter escrito, sabemos muito pouco sobre o que Kimbangu pensava sobre si mesmo, e nesse ponto especifífico, "o testemunho das autoridades belgas no Congo, é no seu caso, de tanta valia quanto os arquivos do governador Pilatos, ou os registros de chancelaria do sumo sacerdote no caso de Jesus"[2].
O Professor Flusser expressa seu ponto de vista em relação aos evangelhos como fontes históricas, e qualifica sua observação anterior de que os evangelhos sinóticos refletem fidedignamente o Jesus Histórico:
" (...) Os três primeiros Evangelhos apresentam um retrato razoavelmente fiel de Jesus como um judeu típico de sua época, e também preservam consistentemente seu mode de falar do Salvador em Terceira Pessoa. Uma leitura imparcial dos evangelhos sinóticos resulta num quadro que é mais característico de um fazedor de milagres e pregador judeu do que de redentor da humanidade (...) O Jesus retratado nos Evangelhos Sinóticos é, pois, o Jesus histórico, não o "Cristo Querigmático.
Para a cristandade judaica - mesmo em séculos posteriores, quando a Igreja em geral considerava sua visão herética - o papel de Jesus como fazedor de milagres , mestre, profeta, e messias era mais importante que o Senhor ressurecto do querigma. Já nos primórdios, esta ênfase começou a mudar entre as congregações cristãs helênicas fundadas por judeus gregos e formadas predominante por não-judeus. Nelas, a redenção através do Cristo crucificado e ressurecto tornou-se o cerne da pregação. Não é por acaso que os escritos oriundos destas comunidades - por exemplo, as cartas de São Paulo - mal mencionam a vida e pregação de Jesus. Talvez seja um golpe de sorte, até onde vai nosso conhecimento de Jesus, que os Evangelhos Sinóticos tenham sido escritos relativamente tarde - ao que parece por volta de 70 DC - quando a criatividade dinâmica dentro das congregaçõe paulinas declinara. Na maioria dos casos, este estrato posterior da tradição sinótica encontrou sua primeira expressão na redação, no estilo grego, dos evangelistas separados. Se exarminarmos este material com um espírito sem preconceitos, aprenderemos de seu conteúdo e forma de expressão que ele não esta relacionado com declarações querigmáticas mas com platitudes cristãs. [2]
Ou seja, Flusser observa que a imagem geral, o contorno, da figura de Jesus nos sinóticos é de um realizador de milagres e pregador, que esta em dissonância, em discontinuidade, com o Cristo das epístolas e da pregação cristã posterior. Podemos acrescentar, na linha de nosso post anterior, as observações do Professor GEM de Ste Croix de que o mundo retratado nos evangelhos sinóticos, das pequenas vilas e lugarejos rurais da Galiléia, esta em discontinuidade com os grandes centros helenísticos em que os primeiros cristãos viviam. Também vale a pena recordar as observações do Professor Fergus Millar, de que os evangelhos refletem um mundo que se foi com a primeira guerra judaica.
Flusser pergunta, retoricamente "Seria verossínil sugerir que, quando os Evangelhos Sinóticos são estudados cientificamente, apresentam um retrato fidedigno do Jesus histórico, apesar da pregação da fé querigmática por parte da Igreja?" [2]
Estudiosos como Flusser afirmam que os sinópticos refletem o Jesus Histórico, o sentido é que eles mostram, em muitos de seus aspectos, uma figura que é plausível e verossimilar com o contexto histórico em que viveu (uma vez que, como diz Flusser, "o papel de Jesus como fazedor de milagres , mestre, profeta, e messias era mais importante que o Senhor ressurecto do querigma"). A teoria mais aceita das fontes dos evangelhos sinóticos, é a das duas fontes, Marcos e Q (devemos registrar que Flusser é cético da Teoria das Duas Fontes, preferindo a prioridade lucana). Postula-se que Q seja a fonte comum de material encontrado em Mateus e Lucas, e não presente em Marcos. Q é, basicamente, uma fonte de ditos, reunindo material como ensinos (parte do Sermão do Monte), parábolas, e pregações apocalipticas. É plausível que parte significativa desses ditos fizessem parte da pregação de um galileu do século I, baseado no que encontramos em outras fontes do período como os Manuscritos do Mar Morto. Quanto a Marcos, a grande maioria dos historiadores vai rejeitar milagres de domínio sobre a natureza como Jesus andando sobre o Mar ou acalmando a tempestade, por exemplo. No entanto, o milagre mais comumente encontrado nos evangelhos sinóticos é o exorcismo, pratica atestada na Antiguidade por toda a parte, e na Judeía a torto e a direito. Josefo narra um exorcismo que ele, e o futuro Imperador Vespasiano testemunharam:
"Vi, por exemplo, como um dos nossos, de nome Eliazar, libertou, na presença de seus filhos, de tribunos, e de outros soldados, os possuídos por maus espíritos. A cura se deu da seguinte maneira: ele pôs sob o nariz do possuído um anel que continha uma das raízes prescritas por Salomão, fez o doente cheira-la e então arrancou o mau espírito através do nariz. O possesso veio abaixo imediatamente, e Eliezer adjurou o Espírito a nunca mais retornar ao homem, enquanto proferia o nome de Salomão e os encantamentos compostos por ele" (Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 8:46-47).
E, obviamente, observadores e adversários do cristianismo não usaram como linha principal de argumentação a negação dos milagres de Jesus. O que vemos, repetidamente, são os oponentes atribuindo os supostos milagres a utilização de magia ou feitiçaria. Assim, como já vimos, a parte considerada autêntica do Testemunho Flaviano, fala dos "paradoxa" (feitos controversos ou surpreendentes) de Jesus. Em meados do século II, Justino e Tertuliano defendem Jesus da acusação de ser um mágico (em Dialogo com Trifo, 69:5 e Apologetica, 21:17, respectivamente). Celso, o ferrenho adversário do cristianismo, comparando os feitos de Jesus a atos comuns de feitiçaria "realizados pelos mágicos egípcios que no meio das praças e feiras, por alguns trocados, demonstram conhecimento nas mais venerandas artes, expulsam demônios, curam enfermidades, e invocam a almas de heróis", e Celso pergunta, "Visto, então, que essas pessoas podem realizar tais feitos, teremos que concluir que são "filhos de Deus" ou que procedem de homens iníquos sob a influência de espiritos malignos?(Orígenes, Contra Celso 1:68)
Seja qual forem nossas convicções sobre isso, o fato é que em quase todas as culturas as pessoas acreditam que demônios podem possui-las, que causam enfermidades e que certas pessoas são capazes de expulsar espíritos malignos. Muitas vezes essas manifestações foram atribuidas a quadros psiquiátricos, como o transtorno dissociativo de identidade, ou doenças como a epilepsia. Existe também um grande contingente de pessoas com doenças causadas ou com sintomas agravados por vetores psicosomáticos, bem como transtornos de conversão (que em casos extremos podem levar a parestesia, paralisia ou cegueira), e vários estudos médicos apontem que placebos muitas vezes são eficazes [3]. Alguém pode sair de casa e ir a uma Igreja Universal, ou a um Centro Espírita, ou Terreiros de Umbanda, em que encontrará centenas de pessoas afirmando ter recebido ou sido liberta de Espíritos, sendo curada e falando com seus entes queridos mortos (como as que afirmam ter sido curadas pelo médium que "recebe" o Dr. Fritz).
Então é altamente plausível que Jesus fosse um exorcista. O que não prova, isoladamente, que Jesus exorcisasse pessoas, mas a verossimilhança desses elementos no contexto, a intensidade com que essa característica é ressaltada na tradição cristã, e o fato de que os oponentes ao invés de negar esses feitos, repetidamente os atribuem a ação de poderes demoníacos, indicam fortemente que a imagem geral de Jesus como curandeiro e exorcista é histórica, ainda que a historicidade dos eventos individuais seja bem mais díficil de avaliar.
b) Geza Vermes
Em muitos aspectos a visão de Flusser se aproxima de outro peso pesado dos estudos do cristianismo primitivo, com origem e historia de vida semelhante, o Professor Geza Vermes. Vermes também nasceu no leste Europeu, em Mako, Hungria, em 1924, em família de ascendência judaica. Aos sete anos, ele e seus pais foram batizados como catolicos-romanos. Vermes viveu a atmosfera tensa dos anos anteriores a II Guerra Mundial, e passou a sofrer os horrores do nazismo quando, em março 1944, as tropas alemãs ocuparam a Hungria. Seus pais e a maior parte de seus familiares foram presos e assassinados. Vermes, que estava cursando o seminário, conseguiu escapar refugiando-se em várias cidades [4].
Com o fim da Guerra, ele chegou a ser ordenado padre, e iniciou sua carreira acadêmica, imigrando para Louvain, na Bélgica. Em 1953, conclui seu doutorado, elaborando uma das primeiras dissertações sobre os recém descobertos Manuscritos do Mar Morto. Em 1957, Vermes abandonou o sacerdócio e a Igreja Católica, e voltou ao seio do Judaismo, se afiliando em 1970 a Jewish Liberal Synagogue, de Londres, para onde havia se mudado, ligada ao Judaismo Reformista. Na Inglaterra, ele foi Professor da Universidade de Newcastle upon Tyne, e a partir de 1965, do Wolfson College e da Faculty of Oriental Studies, da Universidade de Oxford, onde se tornou Professor Emérito de Estudos Judaícos, sendo também escolhido como membro da British Academy, por sua contribuição ao estudo dos manuscritos do mar morto, e da historia do cristianismo primitivo, e do judaismo do segundo templo [4].
Em seu livro "As Várias Faces de Jesus", o Professor Vermes analisa historicamente, e em separado, a forma como Jesus é apresentado no evangelho e nas cartas de João, nos esritos paulinos, em Atos dos Apóstolos e nos Evangelhos Sinóticos. A partir da análise desses quatro perfis principais, a luz do contexto histórico do judaísmo do sec I DC, ele elabora um quinto, o do Jesus histórico, presente nos estagios mais primitivos da tradição. Ele observa que:
"(...) o retrato de Jesus nos Evangelhos Sinópticos toma a forma de um esboço biográfico. Marcos, Mateus e Lucas não eram, admitidamente, historiadores profissionais em busca de objetividade crítica; não obstante atuaram como narradores da vida, das idéias, das atividades, do magistério e da morte de um homem santo de carne e sangue que viveu poucas décadas antes deles decidirem registrar as tradições construidas em volta dele. Finalmente e, sucintamente, os evangelistas testemunharam sua crença na ressureição de Jesus" [5].
"os traços mais notáveis do retrato de Jesus nos Sinópticos, o de um curandeiro e exorcista carismático, mestre e campeão do Reino de Deus, são essencialmente dependentes da figura histórica que outros escritores do Novo Testamento progressivamente mascararam." [5]
E acrescenta com base na análise das narrativas, títulos e ensinamentos de Jesus nas fontes em comparação ao contexto cultural, religiosos e político da Palestina do século I.
"Nossa abordagem tripartida - com base em histórias, títulos e ensinamentos - do Jesus de Marcos, Mateus e Lucas produziu um quadro coerente, o retrato de Jesus pretendido pelos Sinópticos. Ele espelha de algum modo, sem ser idêntico a ele, o Jesus da História. Infelizmente, devido a natureza do material do Evangelho, a precisão histórica estrita irá fatalmente esquivar-se, mas é possivel fazer um esforço denodado - que será tentado presentemente - para autenticar essa imagem o máximo possível, integrando-a ao contexto cultural e religioso do judaísmo palestino contemporâneo. Para começarmos com uma observação negativa, mas fundamentalmente importante, o Jesus dos sinópticos, como aquele dos Atós dos Apóstolos, não é uma figura sobrenatural, mas alguém firmemente plantado em nosso universo de homens. Sua apoteose não foi súbita, foi alcançada passo a passo. Começou com o nascimento milagroso registrado em Mateus e Lucas, e continuou, através de Paulo e João, pelos patriarcas e concílios da Igreja gentílica. A deificação formal, embora avultando-se no horizonte a partir do século II, não foi concluida até o Concílio de Nicéia em 325 DC. " (...) [6]
Em seguida, Vermes observa que na visão de judeus palestinos do século I, nenhum ser humano, mesmo alguém celebrado como "Filho de Deus", poderia, concebivelmente, partilhar a natureza do Todo-Poderoso. Ele especifica então, suas conclusões em relação a crença dos primeiros cristãos sobre Jesus.
"O Jesus de Marcos, Mateus e Lucas (e o de Atos) entra em cena como pregador galileu itinerante, curandeiro e exorcista, admirado e seguido por muitos, mas também objeto de suspeição por outros tantos, especialmente o Establisment religioso central, responsável pela manutenção da Lei e da Ordem na Jerusalém sob ameaça de rebelião. Segundo o testemunho comum dos sinópticos, contudo, onde quer ele fosse, Jesus era reconhecidocomo o porta-voz de Deus, pela gente simples da Galiléia. Sabemos que viam nele um profeta. De fato, os Evangelhos nos dão todas as razões para acreditarmos que Jesus considerava pessoalmente como tal, e que esta também foi a primeira quase definição aplicada a ele no começo da pregação cristã: "Jesus, o Nazareno, foi por Deus aprovado diante de vós com milagres, prodígios e sinais". [6]
Vermes destaca os termos "homem sábio" e "realizador de feitos extraordinários" como elementos centrados na memória popular judaica no século I, que levaram a interpretações diferentes pelos cristãos, por Josefo, e pelos inimigos de Jesus. (Inclusive, já analisamos aqui, no final de 2009, a tese de Geza Vermes [7] que a descrição de Jesus como "homem sábio" e "realizador de feitos maravilhosos (milagrosos) espelha a imagem de Jesus que circulava na Palestina como uma tradição popular, interpretada de forma neutra por Josefo, e como testemunho sobre um mago e enaganador, na polêmica judaica do século II, em Celso e nos rabinos do Talmude. Inclusive, Celso, até onde sabemos, usou a mesma palavra que Josefo para descrever os feitos de Jesus, "paradoxa" (Contra Celso 1:6;17-18), um termo ambiguo (maravilhoso, surpreendente, mas também controverso) [8].
"ao descrever Jesus com a ajuda dessas duas expressões basicamente positivas "homem sábio" e "realizador de obras extraordinárias", Josefo logrou formular um julgamento distanciado sobre Jesus. Seu esboço, embora frio, coincide fundamentalmente com o retrato, pintado em cores mais quentes, de Jesus que descobrimos oculto sob os Evangelhos Sinóticos" [8].
Ou seja, tanto para observadores neutros, como para amigos e adversários a memória de Jesus entre os judeus do século I é a de um mestre carismático e realizador de feitos extraordinários, que morreu em confronto com as autoridades, políticas e/ou religiosas. Os adversários alegavam que as multidões eram seduzidas por um impostor e mago, em conluio com forças demoníacas. Os cristãos diziam que os ensinos, os milagres e a morte (aparentemente) desonrosa, eram o cumprimento das escrituras, e, assim, Jesus era o Cristo (o Messias).
No entanto, a tese de Vermes vai além. Como dito acima, ele acredita que ao longo dos séculos, a imagem de Jesus "poderoso em palavras e atos", , que "espelha de certa forma o Jesus da história, sem ser identico a ele", foi sendo substituida por reflexões teológicas sobre o relacionamento de Jesus e Deus, e sua natureza, pré-existência e relacão entre o elemento divino e humano na pessoa de Jesus. Isso pode ser ilustrado na pregação inicial da igreja primitiva, em Atos dos Apóstolos. No discurso atribuido a Pedro no Dia de Pentecostes, temos o que parece ser uma das primeiras confissões da Igreja "Varões Israelitas: escutai estas palavras: Jesus, o nazareno, varão aprovado por Deus entre vós com milagres, prodígios e sinais, que Deus por ele fez no meio de vós, como vós mesmos bem sabeis; a este, que foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, vós matastes, crucificando-o pelas mãos de iníquos; ao qual Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte, pois não era possível que fosse retido por ela" (Atos 2:22-24, ver também Lucas 24:19). Ou seja, Jesus é apresentado como um homem de Deus, que realizava feitos poderosos, foi executado como mártir e justificado pela Resssureição, o que, como vimos acima, é quase um sumário dos evangelho sinóticos.
Cerca de 150 depois, com a Igreja já firmemente estabelecida no contexto gentio, Tertuliano (200 DC), apresenta em seu livro "Prescrição contra os Hereges", uma regra ou (Confissão) da Fé recebida dos apóstolos "(...)Sua Palavra enviou, e esta Palavra é chamada de Seu Filho, e, sob o nome de Deus, foi visto "de diversas maneiras" pelos patriarcas, ouvido em todos os momentos nos profetas, e finalmente desceu pelo Espírito e Poder do Pai para a Virgem Maria, se fez carne em seu ventre, e, nascendo dela, foi conhecido como Jesus Cristo, então, doravante, Ele pregou a nova lei e a nova promessa do reino dos céus, operou milagres, e tendo sido crucificado, ressuscitou ao terceiro dia; e tendo ascendido aos céus, Ele se sentou à direita do Pai"[9]. Ou seja, ao núcleo sumarizando o ministério de Jesus, sua morte, ressureição e glorificação (como nos sinóticos), são acrescentados elementos joaninos, paulinos e dos evangelhos de infância de Mateus e Lucas ("o Verbo que se faz carne", pré-existente, participante da substância divina, nascido virginalmente).
Mas no mesmo Tertuliano, "Em Contra Praxeas" e "Do Véu das Virgens"[10], encontramos versões variantes (e mais curtas) da confissão , em que a frase "pregação da nova Lei, nova promessa, e do Reino, bem como aos milagres operados por Jesus" esta ausente. De fato, com a omissão dessa frase, a confissão é, no que se refere ao Filho, quase identica ao Simbolo de Fé Romano, a versão mais antiga do Credo dos Apóstolos afirma "Creio em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor,que foi concebido pelo poder do Espírito Santo;nasceu da Virgem Maria;padeceu sob Pôncio Pilatos,foi crucificado, morto e sepultado; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos Céus,onde está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso,de onde há-de vir a julgar os vivos e os mortos". Isto indica, já no início do século III, o crescimento do elemento teológico em detrimento do histórico; a fé vai se definindo mais em torno da natureza de Jesus do que relativamente a seus feitos.
Esse processo se aprofunda ainda mais no IV Século, quando, por exemplo, no Credo de Niceia (325 DC), os bispos confessam a Fé "em um só Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Luz da Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não criado, de uma só substância com o Pai, pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne pelo Espírito Santo e da Virgem Maria, e tornou-se homem, e foi crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, e padeceu e foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus e assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e o seu reino não terá fim". Também no século IV, o Patriarca Atanásio de Alexandria, ao sintetizar a Fé necessária a salvação em 40 artigos, a grande maioria referente a Jesus na condição de 2ª Pessoa da Trindade, dedica apenas três (em parte) ao Jesus terreno ao afirmar " (27) que se creia fielmente na encarnação do nosso Senhor Jesus Cristo" que "(29) homem porque nasceu, no tempo, da substância da sua Mãe" e que "36. (...) sofreu e morreu por nossa salvação, desceu ao Hades, ressuscitou dos mortos ao terceiro dia".
Por fim, os bispos reunidos no Concílio de Calcedônia, em 451 DC, ao elaborarem o famoso Credo afirmam que "se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, e perfeito quanto à humanidade;verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo,consubstancial com o Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; em tudo semelhante a nós, excetuando o pecado;gerado segundo a divindade pelo Pai antes de todos os séculos, e nestes últimos dias, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria, mãe de Deus; um e só mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis;a distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união, antes é preservada a propriedade de cada natureza, concorrendo para formar uma só pessoa e em uma subsistência;não separado nem dividido em duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho, o Unigênito, Verbo de Deus, o Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas desde o princípio acerca dele testemunharam, e o mesmo Senhor Jesus nos ensinou, e o Credo dos santos Pais nos transmitiu.
Esse processo pode ser explicado, em parte, pela natureza das controvérsias que levaram a redação dos credos. O objetivo de cada um desses credos era identificar hereges. As controvérsias Ariana, Nestoriana e Monofisista, dos séculos IV e V, não versavam sobre os evangelhos ou novo testamento, já estabelecidos como autoritativos, antes, cada lado buscava demonstrar que biblica e filosoficamente que sua visão da relação do Deus Pai e Filho, e do elemento humano e divino na pessoa de Cristo era a correta.
No contexto dos séculos II e III, até onde se sabe, os grupos proto-ortodoxos e seus adversários não discutiam os feitos de Jesus, mas a natureza de sua manifestação e sua relação com os poderes celestiais. Por exemplo, adversários como o arqui-herege Marcião, subscreviam uma cristologia docética. Yahweh criara um mundo mau e corrupto, e, assim, Jesus, como salvador, não poderia participar de criação corrupta. Assim, para Marcião, Jesus é um ser celestial que vem ao mundo em semelhança de carne, em forma humana. A concepção docética utiliza um conceito semelhante aos dos anjos que apareceram a Abraão (Genesis 18), que conversam com ele, sentam em sua mesa, comem e bebem em sua presença; o deixam, vão até Sodoma, resgatam a família de Ló, e quase são molestados pelos sodomitas; ou então com o anjo que lutou com Jacó no Vau do Jaboque e, no fim da luta, acerta o pobre patriarca no nervo ciático, que fica lá com a coxa deslocada. (Crenças docéticas podem ser estranhas, mas eram disseminadas na antiguidade, tanto na forma de anjos e deuses em forma humana, quanto em figuras como Pitágoras e Mani como seres celestiais com aparência humana para transmitir conhecimentos superiores [11]. Essas crença possui paralelos modernos bizarros, como seitas como o Raelianos, que acreditam que Jesus, Buda, Maomé e Joseph Smith eram extraterrestes em forma humana, ou dos seguidores de David Icke, que acreditam que o ex-Presidente Bush e a Família Real Britanica, e varios outros líderes mundiais são humanoides reptilianos cuja real identidade é encoberta por uma grande conspiração).
Os marcionitas utilizavam o Evangelho do Senhor, uma versão do evangelho de Lucas (ou de um hipotético proto-evangelho de Lucas), sem as narrativas de infância e as citações do Velho Testamento que apresenta Jesus ensinando em Cafarnaum, escolhendo díscipulos, pregando as multidões, curando pessoas, sendo ungido pela mulher do vaso de alabastro, participando da ultima ceia, sendo entregue as autoridades, interrogado, torturado, crucificado, e seu corpo, chega a ser enterrado. No clima filosófico da época, uma opinião comum era que a matéria era uma forma corrompida da existência, e o corpo uma prisão do espirito, nossa parte divina. Muitos diziam que o mundo material era resultado da ação de um deus inferior, o Demiurgo, mau, ou ignorante e/ou apenas limitado. Os gnósticos, em geral, adotavam essa concepção. Se a matéria é maligna, Cristo, o espírito redentor divino não poderia possuir carne verdadeira. Não obstante, eles aceitavam que Cristo veio ao mundo, pregou, ensinou o verdadeiro conhecimento, realizou maravilhas, e foi eventualmente crucificado. As crenças parecem contraditórias, mas os gnósticos encontraram duas maneiras de conciliar seus conceitos teológicos com a tradição evangélica. A maioria dos gnósticos adotava uma cristologia separacionista[12], emprestando conceitos ebionitas que afirmavam que Jesus era um homem comum, que foi escolhido para receber o poder do Espírito. Assim, Jesus Nazareno recebeu em seu corpo o Aeon Cristo, e assim realizou atos poderosos e pregou a palavra do Senhor. Assim, eles conciliavam a pureza de um ser Divino, que se associava transitoriamente a um ser humano, sem se encarnar efetivamente, mas apenas "enchendo" ou"possuindo" um corpo. Diferentemente dos ebionitas, porém, esses gnósticos mantinham que, quando Jesus foi preso e executado, Cristo deixou seu corpo, deixando-o sofrer sozinho, enquanto nosso Aeon via de longe, intocado pelo sofrimento [12]. Já os docéticos conciliaram suas concepções filosóficas com as tradições evangélicas, desenvolvendo a crença que Cristo era um ser divino, que vem ao mundo com "roupa", aparência, disfarce humano, vivendo como um rabi galileu chamado Jesus Nazareno. Na concepção deles ele vive uma vida como um homem (mais ou menos) comum, como pregador e profeta itinerante, exorcista e curandeiro, como os evangelhos descrevem, mas sua verdadeira natureza de ser celestial com "roupa humana" só é conhecida por alguns, para todos os que viam ou conheciam, le seria "Jesus de Nazaré, carpinteiro e pregador", com CPF e Carteira de Identidade.
Assim, como nos diz o Professor Maurice Goguel, mesmo os "docéticos não contestavam a história evangélica. Eles eram cristãos idealistas, agarrados acima de tudo a noção da divindade de Cristo e o caráter celestial de sua pessoa, e que tentavam dar uma interpretação harmonizadora com suas idéias (...) Os docéticos tornam-se assim testemunhas da tradição evangélica"[13]. A questão não era sobre os feitos de Jesus, sua pregação e milagres, de que tinha sido enviado por Deus. O ponto era a natureza da sua manifestação. O grosso da tradição evangélica não opôs doceticos, separacionistas e proto-ortodoxos. Bart Erhmann acredita que o verso em que Jesus está em agonia no Getsemane, suando sangue, foi adicionado a Lucas, para frear o uso do do texto pelos docéticos [14], que também utilizaram os eventos narrados na tradição, como a escolha dos díscipulos, as grandes mensagens, e a crucificação. É a interpretação dessa tradição, e conceitos filosóficos particulares dos docéticos, que os levam a uma opinião teológica diferenciada da narrativa comum. Assim, proto-ortodoxos, marcionitas, gnósticos docéticos e marcionitas, bem como os ebioniotas, compartilhavam uma tradição evangélica comum e antiga, apostólica, um verdadeiro "elo perdido", sobre "Jesus Nazareno, varão aprovado por Deus com milagres, prodígios e sinais, que foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, e crucificado; e a qual Deus ressuscitou. Esses fatos comuns geraram interpretações teológicas e filosóficas diferentes por parte desses grupos.
c) John M Roberts
John M Roberts nasceu na cidade de Bath, Inglaterra. Se graduou em Oxford, e iniciou sua carreira acadêmica, em 1953, como professor visitante nos EUA, como membro do Institute for Advanced Study, em Princeton, e posteriormente nas Universidades da Carolina do Sul e de Colúmbia. Retornando ao Reino Unido, voltou para Oxford e ministrou também na Universidade de Southampton.
Roberts não era especialista em cristianismo primitivo, judaísmo do segundo templo, ou antiguidade clássica, seu campo de atuação foi a história moderna, temas como a revolução francesa. No entanto, ao escrever uma "história do mundo", com objetivo de situar o leitor leigo "das origens nas savanas africanas a 2007", Roberts situa as origens e desenvolvimento do cristianismo no seio do Império Romano, e apresenta algumas questões importantíssimas sobre a compreensão de nossas fontes, com grande poder de sintese e objetivamente, o que nos permite uma perspectiva mais global, em relação a uma abordagem mais aprofundada e pontual de um historiador especialista. Além disso, incluo Roberts em nossa lista, por apresentar a visão de um historiador de um outro período, que pode (e traz) alguns "insights" em relação aos desafios de nossas fontes sobre o cristianismo primitivo, em particular, e da Antiguidade em geral:
"Into this electric atmosphere Jesus was born in about 6 BC, into a world in which thousands of his countrymen awaited the coming of the Messiah, a leader who would lead them to military or symbolic victory and inaugurate the last and greatest days of Jerusalem. The evidence for the facts of his life is contained in the records written down after his death in the gospels, the assertions and traditions which the early Church based on the testimony of those who had actually known Jesus.(tradução) Nesta atmosfera carregada, por volta de 6 AC, Jesus nasceu, em um mundo em que milhares de seus compatriotas esperavam o advento do Messias, um lider que levaria a vitória militar ou simbólica e inauguraria os últimos e mais gloriosos dias de Jerusalém. A evidência para os fatos da sua vida está contida nos registros escritos após sua morte nos evangelhos, afirmações e tradições nas quais a Igreja Primitiva se baseava no testemunho daqueles que haviam conhecido Jesus[15].
Assim, Roberts posiciona o nascimento de Jesus no contexto amplo das expectativas messiânicas do Judaismo de seu Tempo, e passa a analisar os evangelhos, e principalmente, as tradições que teriam sido baseadas na memória oral dos seguidores de Jesus.
The gospels are not by themselves satisfactory evidence but their inadequacies can be exagerated. They were no doubt written to demonstrate the supernatural authority of Jesus and the confirmation provided by the events of his life for the prophecies which had long announced the coming of Messiah. This interested and hagiographical origen does not demand sceptism about all the facts asserted; many have inherent plausibility in that they are what might be expected of a jewish religious leader of the period. They need not be rejected ; much more inadequate evidence about far more intractable subjects has often to be employed. There is no reason to be more austere or rigorous in our canons of acceptability for early christians records than for, say, the evidence in Homer which illuminates Mycanae. Nevertheless, it is very hard to find corroborative evidence of the facts stated in the Golspels in other records.[15] (tradução) "Os evangelhos, isoladamente, não são evidência \satisfatória, mas seus problemas podem ser as vezes exagerados. Sem dúvida, foram escritos para demonstrar a autoridade sobrenatural de Jesus e que os eventos de sua vida eram confirmações das antigas profecias da vinda do Messias. Sua origem hagiográfica e por partes interessadas, não exige, contudo, ceticismo em relação a todos os fatos que narram. Muitos são inerentemente plausíveis com base no que se esperaria para um líder religioso judeu do período. Não é necessária sua rejeição; emprega-se frequentemente evidência muito mais problemática sobre assuntos bem mais intratáveis. Não há razão para sermos mais austeros ou rigorosos em nossos canons de aceitabilidade para os registros da igreja primitiva do que, por exemplo, as evidências em Homero que iluminam o periodo Micênico. Dito isto, e muito difícil encontrar elementos corroborativos dos fatos narrados nos evangelhos em fontes externas.[15]
Roberts apresenta assim as dificuldades e os desafios envolvidos no uso dos evangelhos como fonte histórica. Ele começa observando que não são o tipo de material com o qual os historiadores sonham, por terem sido elaborados com um viés, com o objetivo de trazer pessoas a nova fé (João 20:31) e confirmar os já evangelizados ou convertidos (Lc 1:4), buscando vigorosamente demonstrar que os eventos da vida de Jesus cumpriam as escrituras, e não "historiadores profissionais em busca da objetividade crítica"(como diria Geza Vermes). No entanto, como observa Roberts, esses problemas não nos devem levar a jogar o bebê com as águas do banho, levando-nos ao ceticismo total sobre os fatos narrados. Apesar das dificuldades e possível utilizar o método histórico-crítico nos evangelhos.
Em primeiro lugar, Roberts observa que muitos elementos dos evangelhos "inerentemente plausíveis com o que se esperaria de um líder religioso judeu da período", ou seja, são altamente plausíveis no contexto. Podemos acrescentar já visto no post anterior, há muitas evidências de uma tradição oral vibrante anterior aos evangelhos (L Michael White), que tem seu valor reconhecido como fonte histórica, junto com Josefo, para o mundo judaico do periodo anterior a destruição de Jerusalém (Fergus Millar), que várias tradições individuais (e complexos de tradição) contém tanto "colorido local" e tantos "indicios de familiaridade" que devem ter surgido na Palestina, no periodo em que Jesus exerceu seu ministério (Gerd Thiessen), os evangelistas apresentam Jesus consistentemente pregando nas pequenas vilas e aldeias da Galiléia, um mundo distinto dos cristãos primitivos nos grandes centros urbanos da civilização greco-romana, ainda que fosse interessante para esse cristãos ver Jesus discutindo filosofia com os filósofos em Séforis ou Tiberiades, indicando fortemente que nesse aspecto os evangelistas reproduziram o que encontraram em suas fontes (Geofrey M de Ste Croix). Acima já refletimos sobre como os evangelhos sinóticos apresentam um contorno geral de Jesus poderoso em palavras e atos, nas pequenas vilas e aldeias da Galíleia, em dissonância com a pregação do Cristo querigmático posterior; proto-ortodoxos, ebionitas, marcionitas, gnosticos docéticos e separacionistas conservam o esqueleto básico dessa narrativa, quase como um ancestral comum, mesmo que não o enfatizem (David Flusser e Geza Vermes).
A identificação de elementos que plausivelmente podem ser organizados em uma narrativa comum coerente com o contexto histórico em que teriam se originado, e que são mantidos em várias tradições cristãs concorrentes e rivais, em alguns casos indo contra as tendências de desenvolvimento dessas tradições, formam a base do critério de plausibilidade histórica.
Como observa um colega e contemporâneo de John M Roberts, Louis Gottschalk, que foi Professor da Universidade de Chicago, em seu Manual, "Understanding History", na análise de um documento, o historiador deve se ater mais a cada parte relevante do documento, do que ao documento como um todo. Em relação a cada um desses elementos relevantes e particulares, ele deve se perguntar: "Isso é crível ? Por crível não se entende "o que realmente ocorreu", mas sim o "que é mais proximo do que realmente pode ter acontecido com base no exame crítico das melhores fontes disponíveis"[16]. Ou seja, os elementos com alto grau de verossemelhança, o que, enfatiza Gottschalk, é bem mais do que não ser falso, e ainda acima do que meramente plausível[16]. Em outras palavras, o historiador tem condições de estabelecer verossemelhança, ao invés de verdade objetiva[16]. Foi justamente isso que os estudiosos já citados fizeram com os evagelhos. A partir da analise dos elementos relevantes das fontes, estabeleceram a partir de vários elementos plausíveis, um retrato verossimilar de Jesus, tendo em vista o contexto em que viveu, e o impacto que causou. É semelhante a montagem de um quebra-cabeça, onde as peças são arranjadas de forma a formarem um figura, reconhecendo que muitas peças podem estar faltando, e as vezes seja possivel apenas esboçar, ou nem isso, a figura original.
Roberts observa ainda que fontes com problemas similares ou maiores que os evangelhos são utilizados pelos historiadores em outros campos. Ele cita o caso dos escritos homéricos em relação ao período micênico, mas temos ainda as narrativas de Tito Lívio (século I AC) em relação a República Romana primitiva (séculos V e IV AC); a biografia de Apolonio de Tiana (sec I DC) por Filostrato de Quios (século III DC); os livros históricos do Velho Testamento e as tradições orais de povos africanos na reconstrução do passado pré-colonial. Também a atestação de Jesus em fontes externas semi-contemporâneas é consistente com a de outros pretendentes messiânicos como Simão de Peréia, Judas Galileu e o Profeta Egípcio. Por fim, Roberts reconhece que ainda se terá o problema de que as narrativas evangélicas, salvo em alguns pontos específicos (existência, crucificação, atividade como mestre e realizador de curas e exorcismos), não encontram paralelo em fontes não-cristãs, o que permite um ampla variação nos detalhes específicos do ministério de Jesus. Tais situações são relativamente comuns na História Antiga e Medieval, e os historiadores tem que viver com isso, e podemos concluir com as observaçoes dos Professores Martha Howell, da Univ. de Columbia e Walter Prevenier, da Univ. de Ghent:
“Historians never have just what they want or need. At one extreme is the historian limited to one source. Einhard’s Life of Charlemagne is, for example, the only source scholars have about the private life of Europe’s first emperor. Like many of the political biographies written today, this one is more hagiography than critical biography, and in the best of worlds historians might refuse to use it as evidence about Charlemagne’s life and his character. But historians, although conscious they are prisoners of the unique source and bear all the risks that this involves, use it because it is all they have.” (tradução) Os historiadores nunca tem exatamente o que eles querem ou precisam. Em um extremo está o historiador limitado a uma única fonte. Vida de Carlos Magno, de Einhard, é, por exemplo, a única fonte disponível para os estudiosos sobre a vida privada do primeiro imperador da Europa. Como muitas das biografias políticas escrito hoje, é mais uma hagiografia do que biografia crítica, e no melhor dos mundos ,historiadores poderiam se recusar a usá-lo como evidência sobre a vida de Carlos Magno e seu caráter. Mas os historiadores, embora conscientes que são prisioneiros de uma única fonte e todos os riscos que isso envolve, a utilizam porque é tudo que eles têm. "
Referências Bibliográficas
[1] David Flusser (1998), Jesus, fl. XVIII (Prefácio)
[2] David Flusser (1998), Jesus, fl. 1-3; A biografia de referência de Joseph Smith foi escrita por Fawn McKay Brodie (1945): No Man Knows My History: The Life of Joseph Smith, por ter sido a primeira obra escrita sobre uma perspectiva não hagiográfica (ou polêmica) sobre o fundador do mormonismo. Os escritos de Joseph Smith podem ser consultados no site http://josephsmithpapers.org/ . Sobre Simon Kimbangu, o site "Dicionário de Biografias Cristãs da Africa" , relata "Além de fontes de arquivos (Archives Africains, Brussels; BMS archives, Oxford), a principal documentação sobre a vida e o ministério de Kimbangu é de Paul Raymaekers, ed., "L'Histoire de Simon Kimbangu prophète d'après les écrivains Nfinangani et Nzungu," Archives de sociologie des religions 31 (1971): 7 - 49 and Paul Raymaekers and Henri Desroche, ed., L'Administration et le sacre. Discours religieux et parcours politiques en Afrique Centrale (1921 - 1957) (1983). A história oral foi coletada em W. MacGaffey, "The Beloved City: Commentary on a Kimbanguist Text," JRA 2 (1969): 129-147, e em Kuntima Diangienda, L'Histoire du Kimbanguisme (1984), escrita pelo filho mais jovem de Kimbangu, o último dirigente da Igreja de Kimbangu. M.-L. Martin, Kimbangu: An African Prophet and His Church (1975); Werner Ustorf, Afrikanische Initiative (1975)".
[3] Para uma análise histórica sucinta e objetiva dos milagres de Jesus numa perspectiva naturalista, ver John Dominic Crossan (1995), Jesus uma Biografia Revolucionária, fls. 104/106; para uma outra mais detalhada e aprofundada, ver John P Meier (1999) Um Judeu Marginal, Livro 2, Volume III,; Professor Raymond Van Dam elaborou uma excelente análise histórica dos relatos de milagres de santos do século V, em seu livro "Saints and their miracles and Late Antique Gaul"(1993) no que se refere a placebos, doenças psicosomática e cura pela fé, um trabalho de referência é o de Arthur e Erica Shapiro "The Powerful Placebo: From Ancient Priest to Modern Physician" ver também Erney Plesmann de Camargo e Mônica Teixeira (2002) Sobre Placebo e Efeito Placebo, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., V, 2, 118-125; Monica Teixeira (2008) Placebo, um Mal Estar para a Medicina, Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 653-660, dezembro 2008; Armando Favazza (1982) Modern Christian Healing of Mental Illness , Am J Psychiatry 139:6, June 1982, 728-736. Nicholas Humphrey (2002) Great expectations: the evolutionary psychology of faith-healing and the placebo effect In Nicholas Humphrey (2003) The Mind Made Flesh: Essays from the Frontiers of Evolution and Psychology, Ch. 19, 255-85, Oxford University Press.
[4] Informações biográficas de Geza Vermes constantes em seu livro "As Varias Faces de Jesus", fl. 369 (contracapa). Especificamente no que se refere ao período da ameaça nazista ver sua autobiografia, "Providential accidents: an autobiography (1998)", fls. 32-39;
[5] Geza Vermes (1998) As Varias Faces de Jesus, fls. 177 e 263, respectivamente
[6] Geza Vermes (1998) As Varias Faces de Jesus, fl. 246
[7] Geza Vermes (1987) The Jesus Notice of Josephus Re-Examined, Journal of Jewish Studies 38, 1- 10;
[8] Geza Vermes (1998) As Varias Faces de Jesus, fl. 306-307
[9] Tertuliano de Cartago, Prescrição contra os Hereges, capítulo 13.
[10] Tertuliano, Contra Praxeas 2, e do "Véu das Virgens 1".
[11] Sobre Pitagoras, segundo Diogenes Laércio (cerca de 200 DC, Vida e Doutrinas de Filosofos Eminentes, Vida de Pitágoras, IX) e Porfírio de Tiro (280 DC, Vida de Pitágoras, 28-29), havia a crença que Pitagoras era o deus Apolo em forma humana, vindo das paradisíacas regiões hiperboreas. Sobre Mani (seculo III DC), O Professor Werner Sundermann, da Universidade Livre de Berlim, em seu artigo na Encyclopaedia Iranica observa "Mani vita preserved in the Cologne Mani Codex (abbrev. CMC), namely Peri tēs gennēs tou sōmatos autou “About the genesis/procreation of his body,” may presuppose the transcendental precedence of his spiritual nature, as does the Parthian fragment M 6032, which states that Mani “through mercy put on the earthly garment,” that is, his material body.(tradução) "A biografia de Mani preservada no Código Mani de Colônia (abrev. CMC), chamada Peri tes gennes tou somatos autou "Da gênese/procreação de seu corpo" possivelmente presupõe a precedência transcendental de sua natureza espiritual, como faz o Fragmento parto M 6032, que afirma que Mani, "por compaixão pôs vestes terrenas", ou seja, um corpo material. http://www.iranicaonline.org/articles/mani-founder-manicheism, acessado 28.12.2011.
[12] Para uma bom "overview" a respeito dos docéticos e sepacionistas no gnosticismo cristão primitivo ver Bart Erhmam, "Evangelhos Perdidos", diferenciação entre doceticos e separacionistas fls 36-37; No que se refere a predominância dos separacionistas sobre os doceticos entre os gnósticos, fl. 188; quanto as crenças comuns gnósticas ver fls.171-201. Entre os rivais dos proto-ortodoxos pelas mentes e corações dos cristãos primitivos. Cerinto, segundo Hipolito de Roma, " afirma que Jesus não nasceu de uma virgem, mas da união natural de José e Maria, como o resto da humanidade; mas que ele excedia em justiça, prudência e compreensão todos os outros homens. E Cerinto afirma também que após o batismo de Jesus, Cristo veio a terra em forma de pomba e desceu sobre ele, vindo da parte da Soberania que habita acima do circulo da existência, e depois disso ele passou a pregar o Pai, que não era conhecido, e realizar milagres. E ele declara que no fim de sua paixão, Cristo o deixou, uma vez que era incapaz de sofre, sendo um Espírito da parte do Senhor" (Hipolito, Refutação de todas as Heresias, Livro X, Capítulo 17). Também Basilides pregava que "o Pai não nascido e sem nome, (...) enviou seu próprio primogênito Nous (aquele que é chamado Cristo) para libertar, aqueles que acreditam nele, do Demiurgo criador do mundo. Ele apareceu então, na Terra em forma humana, para nações representadas por aquelas potestades, e realizou milagres. No entanto ele mesmo não sofreu a morte, mas Simão, um home de Cirene, sendo chamado, levou a cruz em seu lugar; e foi transfigurado para parecer com ele, para que acreditassem que ele era Jesus, e o crucificassem, por ignorância e error, enquanto Jesus recebeu a forma de Simão, e estando de longe, ria deles" (Irineu de Lion, Contra as Heresias, Livro I, Capitulo 24, seção 4.
[14] Maurice Goguel (1926), Jesus the Nazarene: Myth or History?, fl. 79
[16] Louis Gottschalk (1969) "Understanding History, A Primer of Historical Method, fls. 139-140.
[17] Martha Howell e Walter Prevenier (2001) From Reliable Sources, fl. 81
1 comentários:
Novamente nos brindando com uma contribuição valiosíssima, Nehemias!
Muito interessante este recorte com estudiosos de confissão judaica. Lembro-me que me aproximei das obras do Flusser por indicação sua!
E oportuno que andei lendo uns artigos do Jacob Neusner sobre judaísmo daquele período, e tenho lido algumas coisas que escreveu sobre Jesus. Ele seria tão "conservador" quanto o Flusser...
E você me deu uma ideia muito boa no final do seu texto. Vou me debruçar sobre alguns insights e "gestaults" que tive ao ler "Jesus e os Evangelhos", de Terry Eagleton, que é um olhar de um dos maiores críticos cultural, literário do mundo, além de analista político. Pegar um gancho quando coloca sobre focar as narrativas de Jesus sob um olhar mais amplo na preocupação da história geral.
Abraços!
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