domingo, 4 de março de 2012

Batizando Jesus no(s) Judaísmo(s) do Segundo Templo: controvérsia entre dois bibloblogueiros


Eu, Rodrigo (Informadordeopiniao) e o colega biblioblogueiro Francisco Jr. temos mantido um cordial e profícuo debate a respeito do sentido do batismo de Jesus. Muito interessante, porque há este costume na esfera internacional da biblioblogosfera, de interação e debates clássicos, como o de Larry Hurtado com James F. McGrath.

Ele advoga que na ocasião do batismo, Jesus o buscara por se considerar pecador e buscar se arrepender de pecados individuais. Eu advogo, mais próximo a J. P. Méier, que Jesus buscara o batismo se associando cerimonialmente ao arrependimento coletivo da nação para poder inaugurar sua missão. A primeira perspectiva está intimamente associada à concepção de que Jesus fora primeiramente discípulo de João, sem então pretender algo mais; a segunda, que ele se associara ao círculo de João, mas já tinha uma perspectiva escatológica na qual, sua própria obra e pessoa desempenharia importante papel.  Quem quiser ver as postagens do colega, minhas respostas e a tréplica dele podem acompanhar nos links abaixo, para se situar melhor no contexto da controvérsia:

Aqui tomo a liberdade de poder recapitular a resposta a última postagem dele, num espaço mais propício do que o de comentários. As citações do nosso colega virão em destaque. 

Preliminarmente, acompanho Francisco nestas ponderações e aplico-a aqui, muito embora eu esteja epistemologicamente a um meio termo entre o coerentismo e o fundacionismo, adotando o realismo crítico.

Também ressaltamos não ser nosso objetivo esgotar o assunto, nem parecermos os “donos da verdade”: nossa concepção de verdade dentro de um contexto argumentativo é meramente coerentista e não metafísica. O objetivo é alcançar um consenso, o qual poderá ser modificado em qualquer época, inclusive abandonado por completo, através de novas descobertas e da própria evolução do conhecimento. Portanto, as conclusões apresentadas nesse texto longe estão de configurar-se a “verdade última” acerca da questão abordada.

E aqui também buscarei tecer ponderações, sem a preocupação da meticulosidade de um programa de um trabalho acadêmico. Advirto preliminarmente que mantenho em aberto a possibilidade de Jesus ter buscado o batismo para se arrepender de pecados pessoais e se conceber como pecador, na esteira da tradição de Hollenbach, “The Conversion of Jesus: From Jesus theBaptizer to Jesus the Healer". Contudo, creio ter motivos suficientes para conceber que não foca o caso.

Uma correção importante a se fazer no tocante a premissas:

- Pela cristologia tradicional, não se é um obstáculo intransponível a possibilidade de que Jesus tenha se reconhecido como pecador no momento do batismo. Pois ela não exige que ele tenha consciência encarnacionista neste momento. Ele poderia:

a) não ter a princípio, e logo em seguida ter, uma autoconsciência mais elevada, devido a uma epifania. Há que se conceber que havendo ali uma “confissão de pecados”, e “arrependimento”, não necessariamente seria questão de se pesar na balança ações particulares, mas posturas vivenciais; assim, alguém com senso de vocação profética poderia  passar por uma crise de consciência de até então não estar ainda cumprindo e vivendo a vocação na radicalidade que ela exige.

b) uma autoconsciência mais elevada poderia se desenvolver ao longo do ministério. Há fortes indícios de que Jesus foi tomando sobre si uma postura orientada a enfrentar o desafio em uma concepção de uma missão histórica sacerdotal de Israel para a qual este teria falhado, e encarnar essa figura coletiva em si mesmo ( Tom Wright, “Jesus and the Victory of God”, Scot McNight, “A new vision for Israël: the teachings of Jesus in national context").

Eu mesmo digo que minha postura em conceber Jesus tendo procurado o batismo de João, associando-se a um arrependimento coletivo da nação, não tem a ver de forma alguma com ele se conceber como impossível de pecar, mas sim, por minha visão da auto-concepção dele de estar dando início a um ministério em que se incumbiria de uma vocação mista entre sacerdotal e profética, assumindo o que tomava como o encargo missiológico histórico de Israel.

c) a própria concepção encarnacionista poderia ser compreendida pelos discípulos como experiência pós-pascal. E para aqueles que acreditam na ressurreição, poderia ter advindo em Jesus, derivado dela.
De fato, muitos pesquisadores proeminentes creem que o evento pós-pascal foi decisivo para a questão da cristologia elevada; que os discípulos teriam desenvolvido uma compreensão de Jesus ter um status ao lado de YWHW e ser adorado juntamente com ele, após o evento pós-pascal, sendo este um impactante divisor de águas. Com diferenças entre si, poderíamos citar LukeTimothy Johnson, David Capes, Carey C. Newman e Larry Hurtado. Esclarecido isto, podemos tirar qualquer peso de estigma apologético em nossa posição.

Em suma, uma visão que conceba a busca do batismo por Jesus com nuances conspícuas, não sendo advinda de uma consciência de ser pecador e arrependimento de pecados pessoais, não pode necessariamente ser acusada de apego dogmático, tanto quanto uma outra não pode ser necessariamente acusada de ser predisposta a ser anticristã.

Diante disto, examinemos alguns trechos-chave:
a coletividade do perdão era apenas uma possibilidade, não uma regra.

Mas para os fins aqui, não se necessita que fosse uma regra; o mesmo se poderia dizer para a contrição individual.

Estamos falando de indivíduos com sua vida e suas complexidades. Os sistemas sociais são os mais complexos porque são constituídos dos elementos mais complexos, seres humanos. Logo, nesta questão, nunca podemos afirmar com toda certeza algo sobre a consciência do indivíduo, sem ele mesmo se expressar claramente. Muitas pessoas se sentem deslocadas quanto a sua cultura, em todos os tempos.

E aquilo ao qual Stendhal se referia ao criticar a abordagem luterana de Paulo não se reduz meramente a ter consciência de responsabilidade individual. Mas colocar o íntimo individual no centro do palco do drama da existência humana, em detrimento da inserção em uma idéia de meio coletivo. É o eu interior autônomo ante o “nós” exterior.

Desta forma, o que temos de mais materiais sobre a fé hebreia e judaica é de que a preocupação de sua divindade quanto ao plano para o mundo era do coletivo para o individual, não o individual que se somando faz um coletivo composto de partes mônadas. Aplica-se o que Durkheim postulava, “em contraste, as crenças e práticas sociais agem sobre nós a partir de fora; assim, a ascendência exercida pela primeira tal como comparada à segunda é basicamente muito diferente.”

Os próprios textos citados por Francisco, de Paulo e João, se dão em um contexto de responsabilidade do indivíduo, focando a comunidade, e não abstraindo-se dela. Romanos 5.12 enfatiza que “a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”, tratando daí a responsabilidade coletiva.  A consciência individual do pecado em nada invalidava ou desarticulava o caráter coletivo do pecado, porque a formação do pecado no indivíduo se dava na participação do coletivo nele, e não à parte. Romanos 6.23 continua depois falando sobre a imputação coletiva da justiça nos crentes. E I João 1.10 está justamente frisando a responsabilidade comunitária. 

A passagem clássica de Ezequiel, que Francisco citou, se dá contra a perspectiva da maldição hereditária e do condeno aos descendentes, mas não é um texto em que se retira a ideia da responsabilidade coletiva e do indivíduo na coletividade. É importante tratar que não estamos pondo em questão o senso de responsabilidade individual na Antiguidade, mas o senso do indivíduo independente como uma mônada, ante seu coletivo, enfatizando somente o seu “eu”. Decerto, havia uma tensão nas manifestações judaicas daquele tempo do século I.

4 Esdras 7.46-48:

Quem dos que entraram no mundo não pecou? Ou quem dentre os nascentes na terra não transgrediu Tua aliança? Vejo, agora, que a era vindoura a poucos trará alegria, mas tormenta para muitos. Pois cresceu em nós o coração mau que nos afastou do Altíssimo, levou-nos à destruição, fez-nos conhecer os caminhos para longe da vida! E isso não se aplica somente a alguns, mas praticamente a todos os que foram criados!


Conferir melhor em Jacob Neusner, “Comparing Judaisms”, History of Religions 18 [1978-1979], n.14.

Não estamos pondo em julgamento as inferências sobre João quanto:
a) O batismo (o ato)
b) O perdão/remissão dos pecados (o fim)
c) O arrependimento (elemento interno)
d) A confissão (elemento externo)
Embora acrescentemos em b) a concordância em fazer parte de um grupo separado, renovado, pronto para o advento da irrupção final do plano de YWHW para o mundo. E não temos elementos suficientes para saber como se dava d), se particular para João, se para todos, ou se no íntimo para com Deus.

Para se fiar nessas inferências precisa-se depositar uma confiança razoavelmente boa nos evangelhos, porque não é o retrato que Josefo passa.

O que está em questão era o fato de que seria lógico e necessário deduzir que todos os que buscassem seu batismo pensariam apenas no seu “eu” e não na participação no coletivo, no povo, na nação, na condição do povo e nação. E isto se reforça ainda mais se tratando de pessoas que tivessem um senso de que teriam uma missão relacionada e vital para a condição do povo e nação. Isto faria com que ela se identificasse ainda mais com tal. 


Há um grande erro aqui: não se pode afirmar que 
A finalidade é alcançar o perdão/remissão, ou seja, o efeito mágico
, porque não se considerava o batismo por si só como tendo poder, mas esperava-se que ele sinalizaria uma mudança de postura com a qual se estava habilitado e em sintonia com a vontade soberana da divindade, que concederia graciosamente o perdão. O batismo dentre judeus assim não pode ser associado ao rito mágico, por não ser um fator de manipulação de forças sobrenaturais.O ato de remissão de pecados partiria da divindade.

Méier não arroga que seus argumentos sejam conclusivos, e até pondera que eles não necessitam ser. Eles possuem a força de mostrar que não se tem necessidade de inferir que Jesus, por força de lógica, buscou o batismo para se arrepender de seus pecados pessoais – melhor, sua vida pecaminosa passada, pois o batismo focava menos atos particulares do que uma postura que os desencadeava.

o que não foi o caso de João Batista em seu batismo
Sendo o batismo de João voltado para toda nação, e sendo claramente uma alternativa ao serviço do Templo, é natural concluir que possuía sim a dimensão do chamado coletivo de preparação para o eschaton. A indicação de que ele imaginava o advento da irrupção final de Deus na história mediante e, tendo como fenômeno imediato, um agente especial é muito forte.

O batismo na seita de Qumrã mesmo era justamente este, o buscar purificar-se do pecado advindo da participação coletiva para ser o novo povo santificado no eschaton. Na Regra da Comunidade, era o rito de passagem para a verdadeira comunidade da aliança, a separação com o restante impuro. 1QS 5,8.20; 6,15; vejamos 5,13: “Que o ímpio não entre nas águas para participar da ‘pureza’ dos homens de santidade”.

E demais, não há nenhuma necessidade para o argumento de Méier, de que “todo o processo visava o perdão da coletividade”. E de fato, ele não diz isso.

Quando Francisco fala de que a Lei Mosaica visava 
“regular o comportamento individual do israelita/judeu”
, esqueceu-se de frisar que eles concebiam que tal poderia impurificar toda a comunidade, e que a comunidade impura repassava isso para os membros; e que estes se tornavam impuros também diante de Deus e assim perdiam a comunhão com Ele.

Diversas vezes se refere-se na Bíblia Hebraica que “Israel pecou” (como em Josué 7:11-13, dentre muitos outros), e ao “o pecado de Israel”. Logo, é inapropriado dizer que a definição de pecado lá era “atos individuais”. Contempla, mas nãos e restringe nem mesmo se foca neles.

O termo 'hatta'a', tinha o sentido básico de "errar um alvo ou um caminho", e também o termo 'awon', o sentido de "transgressão". Logo, o pecado acarretava quebra de relacionamento. 

Diversos profetas, como Amós, Isaías, Jeremias, denunciavam a opressão da classe dominante sobre o povo. Contudo, costumavam conclamar todo o Israel ao arrependimento, porque o viam como uma nação, não um conjunto de mônadas individuais.

Eu não vi no livro de Méier alguma afirmação de que Jesus buscou “garantir sua salvação” no batismo. Quanto a “mudar de vida”, isso pode indicar a virada para sua missão. Como diversos profetas tiveram sua “mudança de vida”. A dedicação exclusiva, o chamamento de discípulos, a proclamação do Reinado, o efetuar de milagres, o confronto com instituições religiosas, mudanças em sua auto-percepção. De forma alguma uma alternativa a isso seria uma vida com pecados... diversos homens piedosos poderiam sê-lo, ferrenhamente, sem isso.

E o que Jesus poderia buscar garantir ali era justamente a fidelidade a um chamado que creia ter recebido da parte de Deus para uma missão especial.

Reforço a isso: minha concepção de que de fato João anunciava um precursor decisivo para a irrupção final de YWHW na história, e não sua vinda direta e imediada, como Crossan advoga; João ter ficado em dúvidas e mandado questionar Jesus, o que sugere que antes ele nutria altas expectativas quanto a ele (Mt 11,2-6 e Lc 7,18-23); e Jesus ter recrutado para si discípulos de João, que “debandaram” a seguir Jesus tal como o antigo mestre.  

Julgo que, adentrar e aprofundar na questão do caráter da natureza ontológica de Jesus e sua implicação para com se teve cometido pecados ou não, acaba situando-se no campo da apologética, o que não vejo oportuno neste momento.






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    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
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