Eu, Rodrigo (Informadordeopiniao) e o colega biblioblogueiro
Francisco Jr. temos mantido um cordial e profícuo debate a respeito do sentido
do batismo de Jesus. Muito interessante, porque há este costume na esfera
internacional da biblioblogosfera, de interação e debates clássicos, como o de
Larry Hurtado com James F. McGrath.
Ele advoga que na ocasião do batismo, Jesus o buscara por se considerar
pecador e buscar se arrepender de pecados individuais. Eu advogo, mais próximo
a J. P. Méier, que Jesus buscara o batismo se associando cerimonialmente ao
arrependimento coletivo da nação para poder inaugurar sua missão. A primeira
perspectiva está intimamente associada à concepção de que Jesus fora primeiramente
discípulo de João, sem então pretender algo mais; a segunda, que ele se
associara ao círculo de João, mas já tinha uma perspectiva escatológica na qual,
sua própria obra e pessoa desempenharia importante papel. Quem quiser ver as postagens do colega,
minhas respostas e a tréplica dele podem acompanhar nos links abaixo, para se
situar melhor no contexto da controvérsia:
Aqui tomo a liberdade de poder recapitular a resposta a
última postagem dele, num espaço mais propício do que o de comentários. As citações do nosso colega virão em destaque.
Preliminarmente, acompanho Francisco nestas ponderações e
aplico-a aqui, muito embora eu esteja epistemologicamente a um meio termo entre
o coerentismo e o fundacionismo, adotando o realismo crítico.
Também ressaltamos não ser nosso objetivo esgotar o assunto, nem parecermos os “donos da verdade”: nossa concepção de verdade dentro de um contexto argumentativo é meramente coerentista e não metafísica. O objetivo é alcançar um consenso, o qual poderá ser modificado em qualquer época, inclusive abandonado por completo, através de novas descobertas e da própria evolução do conhecimento. Portanto, as conclusões apresentadas nesse texto longe estão de configurar-se a “verdade última” acerca da questão abordada.
E aqui também buscarei tecer ponderações, sem a preocupação
da meticulosidade de um programa de um trabalho acadêmico. Advirto
preliminarmente que mantenho em aberto a possibilidade de Jesus ter buscado o
batismo para se arrepender de pecados pessoais e se conceber como pecador, na
esteira da tradição de Hollenbach, “The Conversion of Jesus: From Jesus theBaptizer to Jesus the Healer". Contudo, creio ter motivos
suficientes para conceber que não foca o caso.
Uma correção importante a se fazer no tocante a premissas:
- Pela cristologia tradicional, não se é um obstáculo
intransponível a possibilidade de que Jesus tenha se reconhecido como pecador
no momento do batismo. Pois ela não exige que ele tenha consciência
encarnacionista neste momento. Ele poderia:
a) não ter a princípio, e logo em seguida ter, uma autoconsciência mais
elevada, devido a uma epifania. Há que se conceber que havendo ali uma
“confissão de pecados”, e “arrependimento”, não necessariamente seria questão
de se pesar na balança ações particulares, mas posturas vivenciais; assim, alguém com
senso de vocação profética poderia
passar por uma crise de consciência de até então não estar ainda
cumprindo e vivendo a vocação na radicalidade que ela exige.
b) uma autoconsciência mais elevada poderia se desenvolver
ao longo do ministério. Há fortes indícios de que Jesus foi tomando sobre si
uma postura orientada a enfrentar o desafio em uma concepção de uma missão histórica
sacerdotal de Israel para a qual este teria falhado, e encarnar essa figura
coletiva em si mesmo ( Tom Wright, “Jesus and the Victory of God”, Scot
McNight, “A new vision for Israël: the teachings of Jesus in national context").
c) a própria concepção encarnacionista poderia ser compreendida
pelos discípulos como experiência pós-pascal. E para aqueles que acreditam na
ressurreição, poderia ter advindo em Jesus, derivado dela.
De fato, muitos pesquisadores proeminentes creem que o
evento pós-pascal foi decisivo para a questão da cristologia elevada; que os
discípulos teriam desenvolvido uma compreensão de Jesus ter um status ao lado
de YWHW e ser adorado juntamente com ele, após o evento pós-pascal, sendo este
um impactante divisor de águas. Com diferenças entre si, poderíamos citar LukeTimothy Johnson, David Capes, Carey C. Newman e Larry Hurtado. Esclarecido
isto, podemos tirar qualquer peso de estigma apologético em nossa posição.
Em suma, uma visão que conceba a busca do batismo por Jesus com
nuances conspícuas, não sendo advinda de uma consciência de ser pecador e
arrependimento de pecados pessoais, não pode necessariamente ser acusada de
apego dogmático, tanto quanto uma outra não pode ser necessariamente acusada de
ser predisposta a ser anticristã.
Diante disto, examinemos alguns trechos-chave:
a coletividade do perdão era apenas uma possibilidade, não uma regra.
Mas para os fins aqui, não se necessita que fosse uma regra;
o mesmo se poderia dizer para a contrição individual.
Estamos falando de indivíduos com sua vida e suas
complexidades. Os sistemas sociais são os mais complexos porque são
constituídos dos elementos mais complexos, seres humanos. Logo, nesta questão,
nunca podemos afirmar com toda certeza algo sobre a consciência do indivíduo,
sem ele mesmo se expressar claramente. Muitas pessoas se sentem deslocadas
quanto a sua cultura, em todos os tempos.
E aquilo ao qual Stendhal se referia ao criticar a abordagem
luterana de Paulo não se reduz meramente a ter consciência de responsabilidade
individual. Mas colocar o íntimo individual no centro do palco do drama da
existência humana, em detrimento da inserção em uma idéia de meio coletivo. É o
eu interior autônomo ante o “nós” exterior.
Desta forma, o que temos de mais materiais sobre a fé hebreia e
judaica é de que a preocupação de sua divindade quanto ao plano para o mundo
era do coletivo para o individual, não o individual que se somando faz um coletivo
composto de partes mônadas. Aplica-se o que Durkheim postulava, “em contraste,
as crenças e práticas sociais agem sobre nós a partir de fora; assim, a
ascendência exercida pela primeira tal como comparada à segunda é basicamente
muito diferente.”
Os próprios textos citados por Francisco, de Paulo e João,
se dão em um contexto de responsabilidade do indivíduo, focando a comunidade, e não abstraindo-se
dela. Romanos 5.12 enfatiza que “a morte passou a todos os homens, porque todos
pecaram”, tratando daí a responsabilidade coletiva. A consciência individual do pecado em nada
invalidava ou desarticulava o caráter coletivo do pecado, porque a formação do
pecado no indivíduo se dava na participação do coletivo nele, e não à parte. Romanos 6.23 continua depois falando sobre a imputação
coletiva da justiça nos crentes. E I João 1.10 está justamente frisando a
responsabilidade comunitária.
A passagem clássica de
Ezequiel, que Francisco citou, se dá contra a perspectiva da maldição
hereditária e do condeno aos descendentes, mas não é um texto em que se retira
a ideia da responsabilidade coletiva e do indivíduo na coletividade. É
importante tratar que não estamos pondo em questão o senso de responsabilidade
individual na Antiguidade, mas o senso do indivíduo independente como uma
mônada, ante seu coletivo, enfatizando somente o seu “eu”. Decerto, havia uma
tensão nas manifestações judaicas daquele tempo do século I.
4 Esdras 7.46-48:
Quem dos que entraram no mundo não
pecou? Ou quem dentre os nascentes na terra não transgrediu Tua aliança? Vejo,
agora, que a era vindoura a poucos trará alegria, mas tormenta para muitos.
Pois cresceu em nós o coração mau que nos afastou do Altíssimo, levou-nos à
destruição, fez-nos conhecer os caminhos para longe da vida! E isso não se
aplica somente a alguns, mas praticamente a todos os que foram criados!
Conferir melhor em Jacob Neusner, “Comparing Judaisms”,
History of Religions 18 [1978-1979], n.14.
Não estamos pondo em julgamento as inferências sobre João
quanto:
a) O batismo (o ato)Embora acrescentemos em b) a concordância em fazer parte de um grupo separado, renovado, pronto para o advento da irrupção final do plano de YWHW para o mundo. E não temos elementos suficientes para saber como se dava d), se particular para João, se para todos, ou se no íntimo para com Deus.
b) O perdão/remissão dos pecados (o fim)
c) O arrependimento (elemento interno)
d) A confissão (elemento externo)
Para se fiar nessas inferências precisa-se depositar uma
confiança razoavelmente boa nos evangelhos, porque não é o retrato que Josefo
passa.
O que está em questão era o fato de que seria lógico e
necessário deduzir que todos os que buscassem seu batismo pensariam apenas no
seu “eu” e não na participação no coletivo, no povo, na nação, na condição do
povo e nação. E isto se reforça ainda mais se tratando de pessoas que
tivessem um senso de que teriam uma missão relacionada e vital para a condição
do povo e nação. Isto faria com que ela se identificasse ainda mais com tal.
Há um grande erro aqui: não se pode afirmar que
A finalidade é alcançar o perdão/remissão, ou seja, o efeito mágico
, porque não
se considerava o batismo por si só como tendo poder, mas esperava-se que ele
sinalizaria uma mudança de postura com a qual se estava habilitado e em
sintonia com a vontade soberana da divindade, que concederia graciosamente o
perdão. O batismo dentre judeus assim não pode ser associado ao rito mágico,
por não ser um fator de manipulação de forças sobrenaturais.O ato de remissão
de pecados partiria da divindade.
Méier não arroga que seus argumentos sejam conclusivos, e
até pondera que eles não necessitam ser. Eles possuem a força de mostrar que
não se tem necessidade de inferir que Jesus, por força de lógica, buscou o
batismo para se arrepender de seus pecados pessoais – melhor, sua vida
pecaminosa passada, pois o batismo focava menos atos particulares do que uma
postura que os desencadeava.
o que não foi o caso de João Batista em seu batismo
Sendo o batismo de João voltado para toda nação, e sendo
claramente uma alternativa ao serviço do Templo, é natural concluir que possuía
sim a dimensão do chamado coletivo de preparação para o eschaton. A indicação
de que ele imaginava o advento da irrupção final de Deus na história mediante
e, tendo como fenômeno imediato, um agente especial é muito forte.
O batismo na seita de Qumrã mesmo era
justamente este, o buscar purificar-se do pecado advindo da participação
coletiva para ser o novo povo santificado no eschaton. Na Regra da Comunidade,
era o rito de passagem para a verdadeira comunidade da aliança, a separação com
o restante impuro. 1QS 5,8.20; 6,15; vejamos 5,13: “Que o ímpio não entre nas
águas para participar da ‘pureza’ dos homens de santidade”.
E demais, não há nenhuma necessidade para o argumento de
Méier, de que “todo o processo visava o perdão da coletividade”. E de fato, ele
não diz isso.
Quando Francisco fala de que a Lei Mosaica visava
“regular o comportamento individual do israelita/judeu”
, esqueceu-se de frisar que eles
concebiam que tal poderia impurificar toda a comunidade, e que a comunidade
impura repassava isso para os membros; e que estes se tornavam impuros também
diante de Deus e assim perdiam a comunhão com Ele.
Diversas vezes se refere-se na Bíblia Hebraica que “Israel
pecou” (como em Josué
7:11-13, dentre muitos outros), e ao “o pecado de Israel”. Logo, é
inapropriado dizer que a definição de pecado lá era “atos individuais”.
Contempla, mas nãos e restringe nem mesmo se foca neles.
O termo 'hatta'a', tinha o sentido básico de "errar um
alvo ou um caminho", e também o termo 'awon', o sentido de
"transgressão". Logo, o pecado acarretava quebra de
relacionamento.
Diversos profetas, como Amós, Isaías, Jeremias, denunciavam
a opressão da classe dominante sobre o povo. Contudo, costumavam conclamar todo
o Israel ao arrependimento, porque o viam como uma nação, não um conjunto de
mônadas individuais.
Eu não vi no livro de Méier alguma afirmação de que Jesus
buscou “garantir sua salvação” no batismo. Quanto a “mudar de vida”, isso pode
indicar a virada para sua missão. Como diversos profetas tiveram sua “mudança
de vida”. A dedicação exclusiva, o chamamento de discípulos, a proclamação do
Reinado, o efetuar de milagres, o confronto com instituições religiosas,
mudanças em sua auto-percepção. De forma alguma uma alternativa a isso seria
uma vida com pecados... diversos homens piedosos poderiam sê-lo, ferrenhamente,
sem isso.
E o que Jesus poderia buscar garantir ali era justamente a
fidelidade a um chamado que creia ter recebido da parte de Deus para uma missão
especial.
Reforço a isso: minha concepção de que de fato João
anunciava um precursor decisivo para a irrupção final de YWHW na história, e
não sua vinda direta e imediada, como Crossan advoga; João ter ficado em
dúvidas e mandado questionar Jesus, o que sugere que antes ele nutria altas
expectativas quanto a ele (Mt 11,2-6 e Lc 7,18-23); e Jesus ter recrutado para
si discípulos de João, que “debandaram” a seguir Jesus tal como o antigo
mestre.
Julgo que, adentrar e aprofundar na questão do caráter da
natureza ontológica de Jesus e sua implicação para com se teve cometido pecados ou não, acaba
situando-se no campo da apologética, o que não vejo oportuno neste momento.
0 comentários:
Postar um comentário