Altar de Isenheim - Matthias Grünewald |
As famosas narrativas de episódios que cercam a anunciação e o nascimento de Jesus movimentam o imaginário de gerações até os dias de hoje. Na arte e literatura, na academia, igrejas, mídias, festas populares, se escreveu, tratados, muito se poetizou, cantou, encenou e pesquisou.
Historiadores e outros
estudiosos especializados produziram miríades de volumes abrangendo
vários aspectos. Dentre estes, algo que sempre gerou profusas
controvérsias é a discrepância geral das narrativas produzidas
dentro da mesma geração. Nota-se variações desde o começo e a
apresentação, passando pelas genealogias, circunstâncias
históricas imediatas, e outras de caráter geográfico e político.
Sobretudo, para a
possibilidade de um mínimo fio sincronizado, forçoso é considerar
que boa parte das cenas do evangelho da tradição de Mateus se passa
em cerca de dois anos após o nascimento narrado em Lucas. Muitas
outras dificuldades, tanto em particular de cada um, quanto mais
ainda tomadas em conjunto, surgem, mesmo considerando variados graus
de liberdade para imaginação literária e emprego de simbologia. O
que suscitou outro grande debate relacionado às hipóteses de
composições dos evangelhos... o escritor do evangelho segundo
Mateus conhecia o material de Lucas? O de Lucas conhecia o de Mateus?
Se uma resposta é positiva, porque produziu outro relato, e com
tantas diferenças? Ou não conheciam um ao outro? Sendo assim,
havia várias versões circulando ou se contavam muitos relatos e
cada um dos escritores trabalhou com alguns - para uma deliberada
ênfase no plano geral de seu propósito para todo o evangelho
escrito?
Por outro lado, temos
também elementos centrais para a tradição que se dão em comum com
as duas narrativas, sugerindo fortemente que compartilhavam de
tradições amplas e antigas dentre os cristãos de então.
Como também ponderou
John.P. Méier [1]:
(...)Quaisquer concordâncias entre os dois [Mateus e Lucas] nessas narrativas se tornam historicamente significativas, em especial quando o critério da múltipla confirmação é invocado. Essas concordâncias em duas narrativas independentes e profundamente contrastantes representariam, no mínimo, um recurso a uma tradição mais antiga, e não a criação dos evangelistas.
Pelo menos doze pontos
nos chamam muito a atenção:
1 – O nascimento de
Jesus é contextualizado ainda durante o governo de Herodes Magno
(Mt. 2.1; Lc. 1.27-34).
2 – Maria não se relacionara sexualmente com José antes de se engravidar (Mt.1.18; Lc 1.27-34)
3 – José não participa da concepção de Jesus (Mt. 1.18-25; Lc. 1.34)
4 – José é da linhagem de Davi (Mt. 1.16-20; Lc. 1.27; 2.4).
5 – A concepção e nascimento de Jesus é anunciada por um anjo ( Mt. 1.20-21; Lc. 1.28-30)
6 – Mesmo assim põe em relevo que Jesus é descendente de Davi (Mt.1.1; Lc.1.32)
7 – O nome “Jesus” é designado antes do seu nascimento (Mt. 1.21; Lc. 1.31)
8 - Jesus veio ao mundo concebido por ação miraculosa do Espírito Santo (Mt. 1.18- 20; Lc 1.35)
9 – Jesus é vocacionado pelo Deus de Israel como o ‘Salvador’ ( Mt.1.24-25; Lc. 2.11)
10 – José e Maria se casam antes do nascimento de Jesus (Mt. 1.24-25; Lc. 2. 4-7)
11 – O nascimento de Jesus se dá em Belém (Mt. 2.1; Lc. 2.4-7)
12 – Nazaré passa ser a residência da família de Jesus e onde ele cresce (Mt. 2.22-23; Lc. 2.39-51)
2 – Maria não se relacionara sexualmente com José antes de se engravidar (Mt.1.18; Lc 1.27-34)
3 – José não participa da concepção de Jesus (Mt. 1.18-25; Lc. 1.34)
4 – José é da linhagem de Davi (Mt. 1.16-20; Lc. 1.27; 2.4).
5 – A concepção e nascimento de Jesus é anunciada por um anjo ( Mt. 1.20-21; Lc. 1.28-30)
6 – Mesmo assim põe em relevo que Jesus é descendente de Davi (Mt.1.1; Lc.1.32)
7 – O nome “Jesus” é designado antes do seu nascimento (Mt. 1.21; Lc. 1.31)
8 - Jesus veio ao mundo concebido por ação miraculosa do Espírito Santo (Mt. 1.18- 20; Lc 1.35)
9 – Jesus é vocacionado pelo Deus de Israel como o ‘Salvador’ ( Mt.1.24-25; Lc. 2.11)
10 – José e Maria se casam antes do nascimento de Jesus (Mt. 1.24-25; Lc. 2. 4-7)
11 – O nascimento de Jesus se dá em Belém (Mt. 2.1; Lc. 2.4-7)
12 – Nazaré passa ser a residência da família de Jesus e onde ele cresce (Mt. 2.22-23; Lc. 2.39-51)
Mas o interesse
histórico está longe de encerrar em exames quanto a factualidade
de eventos particulares, apesar de ser o que mais concentra o
interesse dos leigos. Há vários campos que a investigação
trabalha. Aqui nos propomos num breve esboço, nos debruçar sobre o
que este material nos pode desvelar sobre as matérias-primas e
estruturas da formação da fé das primeiras gerações de cristãos.
Um exemplo propício a
se começar é com as genealogias; enquanto muito se discutiu acerca
de diferenças, particularidades e artifícios simbólicos nas
genealogias mateanas e lucanas, muitas vezes se deixou escapar a
indagação relativa a terem apresentado a pessoa de Jesus com
genealogias. Mas, na Bíblia Hebraica, genealogias costumam funcionar
elos de unificação entre figuras principais da história do povo de
Israel, como Abraão-Noé-Adão. Logo, ambos evangelistas trabalham
por encaixar a figura de Jesus num horizonte histórico maior no qual
se opera a ação divina de acordo com seu plano, Jesus fazendo parte
do mesmo em um ápice juntamente com figuras especiais para a memória
devocional do povo.
Em Mateus, o quadro
maior da saga da família de Jesus e sua emigração – sim,
refugiados políticos – e retorno para a terra é algo muito mais
íntimo do que uma mera alusão evocativa à tradição do chamado do
povo para fora do Egito, tal como consta em tradições proféticas
como em Oseias 11,1.
Os judeus reavivavam
estas tradições em formatos devocionais, e um deles que temos
registro hoje é o chamado Hagadah da Páscoa, de cerca dos finais do
século I a.C. [2].
Jerome Murphy O'Connor
[3] nos produziu uma valiosa tabela em que lhes coloca em paralelo:
História da Fuga e Regresso
|
Agadah da Páscoa
|
1) Perigo (v. 13d) “Herodes procura a criança
para destruí-la
|
1) Perigo (I,1) “O arameu procurou destruir o
meu pai”
|
2) Mandamento divino (v.13b) “Toma a criança
de sua mãe e foge para o Egito”
|
2) Mandamento divino (II,1) “Desceu ao Egito
impelido pela palavra do Senhor”
|
3) Estadia temporária (v. 13c) “Permanece lá
até que eu te avise”
|
3) Estadia temporária (II,2) “Não desceu ao
Egito para lá se instalar, mas apenas para ficar algum tempo
|
4) Regresso (v.20) “Toma a criança e vá
para a terra de Israel”
|
4) Regresso (VII,1) “O Senhor trouxe-nos do
Egito, não por meio de um anjo, nem por meio de um mensageiro,
mas pelo próprio Altíssimo, que Ele seja louvado”
|
Já vimos aí que da
parte de um evangelista, a apresentação de Jesus coloca-lhe
invocando importantíssimas rememorações e anelos da fé judaica.
No material do
evangelista lucano, temos uma fartura tão grande de recortes que
aqui poderemos tratar de um dos mais de mais forte apelo: sua coleção
de poemas presentes nos dois primeiros capítulos. Estes foram
cantados e declamados ao longo dos séculos e são presença
altissonante em liturgias de várias igrejas e comunidades
religiosas. Podemos somente imaginar a força simbólica e apelativa
que teriam ao serem lidas ou entoadas pelos cristãos antigos.
Sugiro aos leitores
que, se possível, leiam cada um mas afastando um pouco a ligação
com todos os evangelhos, como se fossem salmos independentes dos
livros em que foram inseridos.
Com essa sugestão,
fica mais fácil compreender aquilo que James D.G.Dunn [4] enunciou
algo que foi pontuado com destaque na academia em períodos recentes:
Qualquer que seja a sua origem e derivação final, Lucas possivelmente as extraiu da adoração das congregações primitivas (antes que das memórias retrospectivas de oitenta anos atrás). Em outras palavras, são os salmos das comunidades palestinenses antigas, que atingiram sua forma atual em um período quando não havia quaisquer cristãos, somente judeus que acreditavam que o Messias havia chegado (p. 230).
Teria o célebre
pesquisador ido muito longe com esta colocação?
Comecemos com o mais
aclamado e presente dos hinos, o amplamente conhecido como
“Magnificat” de Maria, devido à tradução latina da abertura do
mesmo.
Na Bíblia Hebraica,
uma mulher ter um filho anunciado por Deus numa situação inusitada
sempre indicava um plano especial para o povo na história, como com
Isaque, Sansão e Samuel – Gn 18,11; Jz 13,2-5; ISm 1-2.
Os termos do anúncio
do anjo a Maria “grande aos olhos do Senhor”, o reino sobre a
casa de Israel, que “não terá fim” faz eco a movimentos
nacionalistas contemporâneos que produziram literatura que também
expressava estes termos, como os “Salmos de Salomão 1-2”.
Novamente, materiais culturais judaicos que aspiravam uma libertação
nacional, reconfigurados para se centrarem em Jesus.
O Magnificat está
estruturado na forma da canção de Ana em I Sm 2,1-10. Alude a
diversas passagens da Bíblia Hebraica relacionadas à libertação
nacional e figura régia:
Verso 48: I Sm 1,11
Vs 49: Sl 111,9
Vs 50: Sl 103,13-17
Vs51: Sl 89,10; 2Sm
22,28
Vs52: Jó 12,19; 5,11;
Vs 53: I Sm 2,5; Sl
107,9
Vs 54: Is 41,8
Vs55: Mq 7,20;Gn 17,7;
22,17;2Sm 22,51
Dunn assinala ainda que
“É notável que não haja nenhuma ideia especificamente cristã
nele; é tipicamente hebraico no caráter e no conteúdo. Mas
igualmente notável que nos primeiros dias da nova fé, cristãos
fossem capazes de tomá-lo como expressão de seu próprio louvor”
(p.299)
Assim também se passa
com o “Benedictus”, segundo Darrel L. Bock [5], um louvor do
sacerdote Zacarias em que profetiza acerca do seu filho João que vai
nascer com uma missão especial; segundo o pesquisador mencionado, o
hino tem ecos principalmente do agradecimento de Salomão (notar
especialmente o vs 69), em 1Reis 8,15, por ter sido agente do
cumprimento da promessa de Deus de lhe construir um Templo. Também é
articulado numa linguagem que lembra salmos como 89,24; 106,10,
45-46; 105,8-9. A descrição do “Chifre da Salvação” ecoa a
descrição de Davi em ICr 17,4.
A sublime menção ao
“profeta do Altíssimo” atribuída ao menino no vs. 76 faz
lembrar a passagem do livro de Isaías 40,35 ( posteriormente, a
menção ao “mensageiro” em Malaquias 3,1) com acentuada
conotação de esperança de redenção coletiva; o evangelista vai
retomar essa linguagem em 3,4-6. Ainda na bênção de Zacarias, a
importante ênfase no termo “redimiu” faz alusão à libertação
do cativeiro egípcio, onde se amarra à evocação de Deus visitando
seu povo para redenção.
Dunn também ponderou
sobre este hino:
Uma das figuras ou dos títulos da esperança messiânica judaica era 'o profeta' (Dt 18,18s; Is61,1ss; Ml.4,5; Testamento de Levi 8,15;Testamento de Benjamin 9,2 [?]; IQS9,11; 4Qtest. 5-8); e a palavra grega usada no v. 78 para nascente (anatolë) pode ser uma alusão à LXX de Jeremias 23,5; Zacarias 3,8; 6,12) onde ela traduz a metáfora messiânica 'ramo'.
Outra bela peça
exposta na narrativa lucana é o hino tradicionalmente conhecido como
“Gloria in Excelsius” (Lc.2,14), que já foi matéria-prima para
belíssimas composições de Bach e Vivaldi; Dunn ainda foi mais
enfático sobre o mesmo: “Não contém nada especificamente cristã
em si, isto é, fora de seu contexto”.
O hino conta com uma
expressão importante, “povo de quem ele se agrada” que apresenta
paralelos de aspirações de libertação nacional em um trecho dos
rolos da comunidade de Qumrã, 1QH 4,32-33 e no texto protorrabínico
Shemoneh Esrei, benção de gratidão 17, a “Avodah”.
Ainda outras
referências importantes embutidas no segundo capítulo de Lucas são
auspiciosas: em 2,13-14 ele joga com uma contraposição entre as
anunciações de arautos imperiais sobre a “pax augusta”, a “paz
universal” reivindicada pelo imperador romano Augusto. Prepara o
terreno para mais à frente (Lc 2,25-26) fazer menção à
“Consolação”, expressão da intervenção de Deus a favor de
Israel (Is. 49,13; 51,3; 52,9; 66,13).
Há ainda algo notável
relacionado ao Magnificat que deixamos para o final destas nossas
constações. O cântico anuncia um título real atribuído ao Jesus
que estaria para vir ao mundo, o “Filho do Altíssimo” [6]. Coisa
de poucas décadas atrás importantes estudiosos consideravam que
esta expressão fora tomada de empréstimo do meio cultural
helenístico, não fazendo parte dos primórdios da tradição cristã
e assim sendo, uma atribuição que fora incorporada mais tarde
através de um processo evolutivo gradual.
Mas após um trabalho
com um fragmento dos Manuscritos do Mar Morto, constatou-se o uso
desta expressão por parte do imaginário messiânico e escatológico.
Mais do que isso, este fragmento de Qunram inteiro tem fortes ecos em
comum com a linguagem do Magnificat. Na tradução e reconstrução
de Hershell Shanks, “[X]será grande sobre a terra. [Oh Rei, todos
(povos) haverão de] fazer [paz], e todos haverão de servi-[lo. Ele
será chamado o filho] do [G]rande [Deus], e por este nome será
aclamado (como) o Filho de Deus, e o chamarão Filho do Altíssimo”
[7].
Combinando este mosaico
temos uma tela em que se retrata algo que bate de frente com algumas
inferências vulgarmente encontradas, que dizem que a fé cristã
despontou em uma clivagem aguda com uma expressão do judaísmo com
fortes preocupações messiânicas de cunho político e comunal,
aspirando a uma subversão das estruturas de poder do Império e uma
libertação nacional. Estas falas que lemos ou ouvimos contrapõem
com isso uma fé cristã que nasceu com um caráter mais “espiritual”
(sic), intimista e individualista, cuja aspiração seria o gozo da
libertação da alma para as regiões celestes despregando-se das
preocupações com o destino do povo como um todo e do mundo.
O quadro apresentado
vai em um sentido em que esta clivagem alegada é significativamente
nuançada. A matéria-prima e os materiais que engendravam a fé
cristã nascente compartilhavam, mesmo bebiam das fontes de
aspirações coletivas judaicas, com acentos de anelos para subversão
das estruturas de poder pela ação de Deus na história, partindo
desse mesmo Deus das tradições de Israel, reconfiguradas de forma
em que a figura do messias Jesus fosse central e o sujeito consumador
vital, com as ênfases próprias de seus ethos comunitário e com uma
força propulsora centrífuga.
Ficamos aqui por esta
vez, brindando com a belíssima abertura da composição do
“Magnificat” por Johann Sebastian Bach.
[ 1] MÉIER, J.P. Um
Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico. Volume Um: As Raízes
do Problema e da Pessoa. Rio de Janeiro: Imago, 1993, pp. 213-214.
[ 2 ] FILKENSTEIN, L.
The Oldest Midrash, Pré-Rabbinic Ideals and Teaching in the Passover
Haggadah. Harvard Theological Review,Vl; 31. 1938, pp 291-317
[ 3 ] MURPHY O'CONNOR,
J. Jesus e Paulo: Vidas Paralelas. São Paulo: Paulinas. 2008. pp.22
[ 4 ] DUNN, J. Unidade
e Diversidade no Novo Testamento. Santo André: Editora Academia
Cristã, 2009.
[ 5 ]. BOCK, D.L. Jesus
segundo as escrituras. São Paulo: Shedd Publicações, 2006,
pp.56-57.
[ 6 ] FITZMYER, J. A.
4Q246 The "Son of God" Document from Qumran. Biblica: 1993,
pp.153-174
[ 7 ] SHANKS, H. (org).
Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto; uma coletânea de
ensaios da Biblical Archaeology Review. Rio de Janeiro: Imago, 1993,
pp. 212-214
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