quinta-feira, 27 de novembro de 2008

O Hino posterior à Ceia

Mateus 26, 30 - "Depois de terem cantado o hino, saíram para o monte das Oliveiras."


Encontrei no apócrifo Atos de João uma referência à continuação possível deste versículo, contendo o Hino anterior à paixão, realizado após a última ceia.

"Antes que fosse preso pelo julgamento dos Judeus, O Mestre nos reuniu a todos e disse:
"Antes que eu seja entregues a eles, cantaremos um hino ao Pai e, em seguida, iremos ao encontro daquilo que nos espera."
Ele pediu que nos déssemos as mãos em roda e colocando-se no meio, disse:"Respondei-me Amém."
Começou , então a cantar um hino que dizia: "Gloria ao Pai". E nós ao redor lhe respondíamos:"Amém".
"Glória á Graça; glória ao Espírito; glória ao Santo; glória a sua glória." - Amém.
"Nós o louvamos, ó Pai; nós lhe damos graças, ó Luz em que não habita as trevas." - Amém.
"Agora direi porque damos graças:"
"Devo ser salvo e salvarei." - Amém.
"Devo ser liberto e libertarei."-Amém.[...]


Segundo as notas da Bíblia de Jerusalém e da Bíblia do Peregrino, o hino cantado se refere aos chamados Salmos do Hallel, sl 113-118, cuja recitação encerravam a ceia pascal.De qualquer forma, trata-se de um momento que deve ter sido de rara beleza, um último canto fraternal entre Jesus e seus discípulos, naquele momento de sabida despedida.Segundo o texto Salmos de Aleluia :"A tradição judaica sugere que os Salmos 113-118 eram cantados na Páscoa. Os Salmos 113 e 114 eram cantados antes da refeição da Páscoa; os Salmos 115-118, depois. O Salmo 136, o Grande Hallel, era cantado no ponto mais alto da festa."Sobre a palavra Hallel, encontramos aqui uma boa explanação.

Elaine Pagels, no livro Além de toda Crença (2004:132), postula que o autor desconhecido dos atos de João tenha incorporado a doutrina joanina (do evangelho de João) para postular conceitos gnósticos normalmente associados ao Evangelho de Tomé:

"É evidente que quem compôs este hino encontrou no Evangelho de João inspiração para o tipo de ensinamento que com mais frequência associamos a Tomé, pois aqui Jesus convida os discípulos a se se verem nele:

'O que estou prestes a sofrer te pertence. Pois de maneira alguma poderias compreender o que sofres se eu não tivesse sido enviado a ti como verbo [logos] pelo Pai [...] se soubesses como sofrer, serias capaz de não sofrer´


Então, na Dança da Cruz, Jesus diz que sofre a fim de revelar a natureza do sofrimento humano e ensinar o paradoxo que o Buda também ensinou: quem ganha consciência do sofrimento simultaneamente se liberta dele."


A passagem é extremamente interessante, pois nos mostra indícios típicos de práticas de ascese mística impulsionadas por canto e dança em comunhão. Tais práticas podiam ser vistas já em textos encontrados em Qumran tais como o Canto dos Sacrifícios do Sabbath no qual os praticantes possivelmente ascendiam a uma dimensão superior povoada por anjos. Tais viagens místicas faziam parte de uma tradição judaica que estava se desenvolvendo ali logo nos primórdios do cristianismo (e muito bem estudada por Gershon Scholen em seu famoso livro A mística judaica, Ed. Perspectiva, São Paulo. 1972.) - os viajantes da Merkabah (ou o carro divino)! Nos é bem factível a visão de uma reunião de um grupo cristão gnóstico, baseando-se neste texto dos Atos de João, realizando a cerimônia da eucaristía e uma dança mística posterior. Eles provavelmente entravam em uma faixa psíquica diferenciada, através do ritmo e repetição musicais, embalados ainda por movimentos da dança. De certa forma, tal especulação me lembrou dos praticantes sufi do Dervish, dançando em círculos (como neste video do youtube).

Aparentemente, nos parece estranha esta associação entre cristianismo e dança, logo ali nos seus primórdios. No entanto, se observarmos, por exemplo, várias das práticas dos movimentos pentecostais hoje em dia, tal estranhamento desaparecerá no mesmo instante.

Ps. Sobre as diferenças e ligações entre as práticas e concepções teológicas dos sufistas e o cristianismo, sugiro este bem detalhado texto escrito por John Gilchrist, como tópico de uma obra maior chamada Muhammad and the Religion of Islam.

2 comentários:

Luis Filipe disse...

deve ter sido bem bonito ver jesus e os apostolos canatando o hino

Flávio Souza disse...

Não sabemos, realmente, qual foi este hino, Filipe. Podemos fazer algumas especulações. É possível que tenha sido os tais salmos de Hallel. Mas o quem o saberá? Certamente não foi o hino do apócrifo dos Atos de João, tal como exposto.

De qualquer forma, certamente algumas comunidades cristãs posteriores entoavam este cântico em suas reuniões. Isso é bem garantido!

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    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
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