sábado, 29 de novembro de 2008

Sobre o Nascimento de Jesus - Parte III


As genealogias sobre Jesus encontradas nos evangelhos de Mateus e Lucas nos colocam vários problemas. O tema já foi exposto e pesquisado por uma enormidade de pessoas nas mais variadas épocas e a partir dos mais variados contextos teológicos e arcabouços teóricos. No entanto, dando continuidade à nossa série de posts sobre o nascimento de Jesus, nos cabe ainda falar um pouco sobre o tema.

Nós temos um problema básico e fundante ligado à genealogia de Jesus. Mas qual problema seria este? O fato é que não há sentido algum em se falar em tal genealogia se Jesus de fato não foi filho de José (ainda mais em se tratando da descendência davídica). Que sentido faz em se falar em um Messias “adotado” por um descendente de Davi? Nenhum. Por outro lado, poder-se-ia argumentar que o sangue de Maria era de origem davídica. Mas nada se saberá sobre isso. A crença que Jesus foi gerado pelo poder do Espírito Santo deixa toda essa estória por demasiado contraditória por que há nestes relatos sobre o nascimento uma mistura entre os conceitos de messias e de “filho de Deus”.

As contradições sobre a genealogia de Jesus permanecem intrigantes.

A proposição de que a genealogia de Lucas se referiria à Maria já é uma hipótese antiga. Ela foi elaborada inicialmente no século XV por Annius of Viterbo, do qual, dentre outros despautérios, naquela época, afirmava ter sido Maomé o anticristo.

A alegação de Viterbo é desprovida de fundamentos sólidos. Inicialmente, poderíamos mostrar que ambas as genealogias falam de Jesus como filho de José. Vamos a elas:

Mt 1,16: "Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo."

Lc 3,23: "Ao iniciar o ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era, conforme se supunha, filho de José, filho de Eli..."


Ademais, Lucas não teria motivo algum para traçar uma genealogia a partir de Maria, dado que o próprio José era da casa de Davi, como é mostrado em:

Lc 1,26-27: "No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi e o nome da virgem era Maria."


Da mesma forma, em Lucas 2,4:

"E também José subiu da cidade de Nazaré, na Galiléia, para a Judéia, na cidade de Davi, chamada Belém, por ser da casa e da família de Davi, para se inscrever com Maria, sua mulher, que estava grávida."


Ademais, a citação de mulheres em genealogias judaicas é certamente uma prática não usual. Além disso, os judeus não admitiam os direitos de nascimento por uma mulher. Mais ainda, Lucas diz ser Isabel sua parenta em Lc 1,36:

"Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril."


Ora, Isabel, a qual tinha o mesmo nome Elisheba pertencia à casa sacerdotal de Aarão (Lc, 1,5), logo, não pertencendo à linha davídica de descendência. Temos então nessa relação de parentesco uma indicação acerca da casa da qual Maria poderia pertencer.

Existe a idéia de que não se permitiam casamento intertribais em Israel no período em que Jesus nasceu. Neste sentido, afirma-se que sendo José um descendente davídico, Maria, consequentemente, também teria que ser. A fonte de tal proposição é registrada em Números 36, 6-8:

“Eis os que Iahweh ordena para as filhas de Salfaad: Casar-se-ão com quem lhes agradar, conquanto que se casem com alguém de um clã da tribo do seu pai. A herança dos filhos de Israel não passará de tribo a tribo; os filhos de Israel permanecerão vinculados, cada um, à herança da sua tribo. Qualquer filha que possuir uma herança em uma das tribos de Israel deverá casar-se com alguém de um clã da sua tribo paterna, de modo que os filhos de Israel conservem, cada um, a herança de seu pai.”


A este respeito, bem como a respeito das linhas paternas na elaboração genealógica, gostaria de citar um artigo postado na Jewish Virtual Library cuja fonte original é a Central Conference of American Rabbis:

Both the Biblical and the Rabbinical traditions take for granted that ordinarily the paternal line is decisive in the tracing of descent within the Jewish people. The Biblical genealogies in Genesis and elsewhere in the Bible attest to this point. In intertribal marriage in ancient Israel, paternal descent was decisive. Numbers 1:2, etc., says: "By their families, by their fathers' houses" (lemishpechotam leveit avotam), which for the Rabbis means, "The line [literally: 'family'] of the father is recognized; the line of the mother is not" (Mishpachat av keruya mishpacha; mishpachat em einah keruya mishpacha; Bava Batra 109b, Yevamot 54b; cf. Yad, Nachalot 1.6).”


Tal passagem reforça o que já havia postado antes. A linha paternal é que é decisiva para traçar a descendência. Como o texto diz “a linha familiar do pai é reconhecida. A linha da mãe não.” Além disso, o texto nos fala sobre os casamentos intertribais, mostrando a importância da linha tribal masculina. Com relação ao texto de Números, o rabino Pinchas Winston demonstra que a interdição ao casamento inter-tribal foi historicamente localizada no período de Juízes, tendo sido abolida posteriormente:

“The Talmud asks the question at the end of Masechta Ta'anis: Why is the fifteenth day of Av (Tu B'Av) such a happy day? One of the principle answers given is that it was the day, during the time of the Judges, that the ban against intermarriage among tribes (found at the end of this week's parsha) was finally lifted.
Historically, it was the lifting of this ban that saved the tribe of Binyomin from extinction. After the horrific civil war between Binyomin and the rest of the nation, their ranks had been decimated, and only inter-tribal marriage could reverse the trend for them.
But how could they override the Torah which prevented such marriages. The Talmud answers that that mitzvah had been relevant only at the time of the division of the land, to assure that each tribe retained its portion of the inheritance. Once that was no longer an issue, the injunction against inter-tribe marriage was, in a sense, automatically lifted.


Da mesma forma, o Chabad assim nos informa:

“In order to ensure the orderly division of the Holy Land between the twelve tribes of Israel, restrictions had been placed on marriages between members of two different tribes. A woman who had inherited tribal lands from her father was forbidden to marry out of her tribe, lest her children -- members of their father's tribe -- cause the transfer of land from one tribe to another by inheriting her estate (Number 36). This ordinance was binding only on the generation that conquered and settled the Holy Land during the 14-year period 2488-2503 from creation (1273-1258 BCE); when the restriction was lifted, on the 15th of Av, the event was considered a cause for celebration and festivity.”


Sendo assim, devemos pontuar que no tempo em que Jesus viveu não havia restrição alguma ao casamento inter-tribal. Dessa forma, nada, por imperativo, nos leva a afirmar peremptoriamente que Maria tenha sido da tribo de Davi, devido ao fato da mesma ter se casado com José.

A questão, no entanto, como pontuamos logo no início desta exposição, é a seguinte. Os evangelistas, sem o querer, se colocaram em uma delicada posição. Qual seria ela? Ao elaborarem genealogias para Jesus, ligando-o à casa de Davi - eles fatalmente se expuseram a uma contradição delicada — se Jesus é, de fato, descendente de José, então ele é filho humano do próprio José (possuí o sangue davídico de José). Mas se este não foi de fato o seu pai biológico, então as genealogias nada nos dizem e Jesus não possui uma ligação explícita para com a casa de Davi.

That´s the question!

4 comentários:

Esperança disse...

Concordo, a genealogia não faz sentido.

Flávio Souza disse...

Ou José é o pai de Jesus - e a genealogia faz sentido.

Ou.......................

Informadordeopiniao disse...

Essa questão do Messias como sucessor e herdeiro do trono de Davi (Is. 9.7) é de muito tempo controversa mesmo, né Flávio?
Eu tinha um insight pessoal que fui investigando.

Como a tradição judaica daquele período conciliava essa expectativa com o que já havia sido dito que nenhum filho do Rei Jeoaquim jamais reinaria sobre Israel [Jeremias 22.30]) ?

Por isso penso que a ênfase maior não seria a ligação carnal, e daí, poder-se-ia ter compreendido a vinculação pela adoção.

Em Mateus que vejo um ponto estratégico que ilumina isso. Na passagem de 1.21, em que o anjo incumbe José de por no nome na criança de Jesus. Assim, lhe conferiria a filiação pessoa e dessa forma a filiação davídica.

informadordeopiniao disse...

Lendo o livro “Assim viviam os contemporâneos de Jesus – cotidiano e religiosidade no judaísmo antigo”, de Michael Tilly [Loyola], me veio uma reflexão sobre um aspecto a respeito da genealogia em Lucas. O estoicismo, de Zenão de Chipre, estava sendo a filosofia preponderante no mundo greco-romano, e mesmo dentre os escribas mais ortodoxos, em reação a esse ambiente se via a necessidade de realçar o fundamento lógico das leis da Torah, apresentando a sua sensatez diante de desafios colocados por questões racionais. Mais além disse se davam aculturações e interações ainda mais positivas. E nesse aspecto, haviam interações com elementos do direito romano, e os métodos de exposição dos retóricos. Havia então uma regra de Halakhá que versava que o fator determinante para se considerar um judeu de nascença seria o filho de mãe judia e não o de pai judeu (b Jevamot 44-45a), algo relacionado ao princípio romano de "pater semper incertus", “pai sempre incerto”.
De alguma forma, poder-se-ia perscrutar se, no ambiente lucano, mais helenizado, uma interação semelhante poderia ter influenciado a preocupação de traçar uma genealogia a partir da mãe...

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