quarta-feira, 27 de maio de 2009

Cito um absurdo


Trago um pequeno comentário para desfazer um grande mal-entendido a respeito de uma suposta citação de um importante sistematizador da fé cristã. Muitas vezes tal citação, distorcida, tem sido usada para postular comentários de teores diversos.

Atribui-se a Tertuliano de Cartago a frase “Creio porque é absurdo”. Às vezes, chegam a dizer que deriva do original “credum ad absurdum”. Delfim Neto, ex-ministro da economia, chegou a atribuir a frase a Santo Agostinho, numa de suas colunas na revista Carta Capital.

A citação original em Latim, encontrada no livro A Carne de Cristo, 5, é:

Crucifixus est dei filius; non pudet, quia pudendum est. Et mortuus est dei filius; credibile prorsus est, quia ineptum est. Et sepultus resurrexit; certum est, quia impossibile.


A tradução seria:

O Filho de Deus foi crucificado: não me envergonho, porque vergonhoso é. O Filho de Deus morreu; é absolutamente crível, porque é insensato. Ele foi sepultado, e se levantou novamente; é certo, porque impossível.



Quinto Sétimo Florêncio Tertuliano nasceu na atual Tunis, por volta de 160 d.C. Se convertera ao cristianismo por volta de do ano 197. Trabalhara como advogado em Roma. Escritor prolífico e dotado de uma retórica extremamente arguta, teria sido responsável pela criação de 509 novos substantivos, 284 novos adjetivos e 161 verbos na língua latina[1]. Foi o criador do termo “Trindade”, do latim, Trinitas; introduzira o termo latino Persona para traduzir o grego Hypostasis.

Ele se engajara num debate acirrado acerca do relacionamento das matizes de racionalidade das filosofias gregas com a fé cristã. Tertuliano era bem cético a respeito, temendo uma deturpação do cristianismo, e se posicionou de forma bem crítica, de forma diametralmente oposta a de Clemente de Alexandria.

Escreve em Prescrição de Hereges, 7:

Ele [Paulo] esteve em Atenas e teve em sua entrevista com os filósofos familiarizando-se com aquela sabedoria humana que pretende conhecer a verdade. De fato ela apenas corrompe e está ela mesma dividida em suas próprias heresias múltiplas pela variedade de suas seitas mutuamente hostis. O que de fato tem Atenas a ver com Jerusalém? Que harmonia há entre a Academia e a Igreja? Que tem os hereges a ver com os cristãos? Nossa instrução vem do pórtico de Salomão, o mesmo que ensinou que o Senhor deve ser buscado com simplicidade de coração. Fora com todas as tentativas de produzir um cristianismo estóico, platônico, e dialético. Nós não queremos nenhuma disputa curiosa senão possuir a Cristo Jesus, nenhuma especulação senão desfrutar o evangelho. Com nossa fé, nós não desejamos nenhuma crença incrementada. Porque esta é a nossa crença fundamental: não há nada mais que não deveríamos crer além desta.


Nessa passagem que abrange a distorcida e desgastada citação, ele polemiza especialmente com o sistema aristotélico. Tertuliano declarara: Infeliz Aristóteles! Que inventou para estes homens a dialética, a arte de edificar e de demolir; uma arte tão evasiva nas suas proposições, tão forçada nas suas conjeturas, tão áspera nos seus argumentos, tão produtora de contendas...retraindo tudo e realmente não tratando de nada!

E usa o texto supracitado em latim para ironizar, ao estilo da retórica indissiocrática de Tertuliano, um argumento de Retórica, de Aristóteles, que justamente apregoava que uma afirmação pode vir a ter um caráter tão extraordinário que precisamente por isso pode atingir a verdade.


[1] – McGRATH, Alister. TEOLOGIA: sistemática, histórica e filosófica – uma introdução à teologia cristã. Shedd Publicações, Santo Amaro. 2007. pg 375.

1 comentários:

informadordeopiniao disse...

Mais um peo no flagrante ao citar a bobagem: o colunista José Reis Chaves, no jornal "O Tempo", de hoje, 15/06.

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