terça-feira, 12 de maio de 2009

A virada da postura cristã para com o império


Embora se trata de algo algo bem estabelecido nos círculos ou entre pessoas mais informadas desse contexto histórico, ainda é muito comum encontrarmos declarações no sentido de que o Imperador Constantino teria oficializado o cristianismo. Apesar do apoio pró-ativo deste, em questões como devolução das terras confiscadas, e seu interesse maior em trabalhar a questão religiosa para promover a unidade no império, tal informação é improcedente. O dito foi feito pelo Edito de Teodósio I, em 380 d.C., 47 anos após o Edito de Milão.

Qual foi então, a orientação do famoso Edito de Milão?

Nós, Constantino e Licínio, Imperadores, encontrando-nos em Milão para conferenciar a respeito e da segurança do império, decidimos que, entre tantas coisas benéficas à comunidade, o culto divino deve ser a nossa primeira e principal preocupação. Pareceu-nos justo que todos, cristãos inclusive, gozem da liberdade de seguir o culto e a religião de sua preferência. Desta forma o Deus, que mora no céu, ser-nos-á propício a nós e a todos os nossos súditos. Decretamos, portanto, que, não obstante a existência de instruções anteriores relativas aos cristãos, os que optarem pela religião de Cristo estão autorizados a abraçá-la sem estorvo ou empecilho, e que ninguém absolutamente os impeça ou moleste...Observai, outrossim, que também todos os demais terão garantida a livre e irrestrita prática de suas respectivas religiões, pois está de acordo com a estrutura estatal e com a paz vigente que asseguremos a cada cidadão liberdade de culto, segundo sua consciência e eleição. Não pretendemos negar a honra devida a qualquer religião e a seus adeptos. Outrossim, com referência aos cristãos, ampliando normas já estabelecidas sobre os lugares de seus cultos, é-nos grato ordenar, pela presente, que todos os que compraram esses locais os restituam aos cristãos sem qualquer pretensão a pagamento...

Use-se da máxima diligência no cumprimento das ordenanças a favor dos cristãos e obedeça-se a esta lei com presteza, para se possibilitar a realização de nosso propósito de instaurar a tranqüilidade pública. Assim continue o favor divino, já experimentado em empreendimentos momentosíssimos, outorgando-nos o sucesso, garantia do bem comum.

Há ainda uma observação constante no Edito:
As igrejas recebidas como donativo e os demais lugares que antigamente pertenciam aos cristãos deviam ser devolvidos. Os proprietários, porém, podiam requerer compensação.


Houvera uma Grande Transformação, no cristianismo, após o referido Edito?

Pra mim, O Grande Impacto seria, em termos relativos, para com sua postura ante seu papel social e a cultura. Busco aportes aqui em um constructo articulado pelo sociólogo espanhol Manuel Castells, no livro O Poder da Identidade, com os conceitos:

- Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais ;

- Identidade de resistência: criado por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação;

- Identidade de projeto: quando os atores, utilizando- se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade.

Diria que o cristianismo, que até então se constituía em termos das duas últimas, passou a se ver e portar-se, essencialmente, como uma Identidade legitimadora. É claro que temos que enxergar isso relativamente, tendo em vista que o autor elaborara tais conceitos estudando os movimentos sociais e culturais do período moderno, com ênfase no final do século XX, e a realidade antiga possuía contornos diferentes da modernidade, e assim, não se faz uma transposição automática dessas ferramentas analíticas. Outrossim, podemos ver manifestações no cristianismo antigo também de preocupações com a ordem social enquanto possibilitadora da vida em comum –Romanos 13 – embora seja secundária para com seu ethos e com sua perspectiva cristológica e escatológica que se chocavam com as reivindicações e discursos legitimadores do império, e sua lógica de poder. Também, secundariamente, permaneceram neste período posterior posturas como identidade de resistência - sobretudo nos âmbitos monásticos - e identidade de projeto - Cidade de Deus, de Santo Agostinho.

Uma certa empatia para se compreender a atitude das pessoas no contexto também é importante nesse caso, ou seja, a preocupação de se olhar o passado com uma aproximação das lentes de quem o viveu – sabendo que uma identificação correspondencial é sobremaneira limitada, talvez impossível, podendo levar à megalomania. A discussão do antropólogo Geertz, para com a Fenomenologia da Cultura, pra mim é o que desenvolve melhor a perspectiva de buscar se interagir com o processo, comportamento e fenômeno cultural estudado, com aproximação hermenêutica, sem se pautar pelo relativismo filosófico, debruçando o olhar sobre o entendimento de um tráfego simbólico nas culturas diante dos processos históricos em que estão envolvidas, e sob essa lente entender suas respostas.

Poucos anos antes do Edito de Milão, houvera uma das maiores perseguições, a de Diocleciano, sendo que mal se teve tempo de recuperar das perseguições atrozes de Valeriano e antes, da de Décio. A memória dos cristãos estava impregnada de décadas e décadas de óleos ferventes, crucificações, feras, gladiadores, degolas, esquartejamentos, flagelos.

Pouco depois de Constantino, houvera o Imperador Constâncio, um imperador ariano que perseguia os não-arianos. Constâncio, ainda, ao condenar Anastásio em Milão – 355 – expôs sua concepção sobre igreja/estado, para a Igreja:

Aceite-se minha vontade entre vós e seja ela vossa lei como é lei para os bispos sírios (arianos).


Nesse tempo, Ósio, bispo de Córdoba (256-357 d.C.) redigiu para Constâncio o que poderia ser considerado o primeiro manifesto, melhor, um protótipo, para a autonomia das esferas:

(...) Abandonai, suplico-vos, os vossos procedimentos. Lembrai que também vós sois mortal; temei o dia do juízo e guardai-vos puro na perspectiva daquele dia. Não interfirais em matérias eclesiásticas, nem nos instruas em semelhante questões, mas a respeito delas aprendei de nós. Deus colocou em vossas mãos o império, mas as coisas de Sua Igreja confiou a nós. Se alguém vos arrebatais o império, resistiria à ordem divina; do mesmo modo, deveríeis, vós e os vossos, temer que, assumindo o governo da Igreja, vos torneis réus de ofensa grave. Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Nós não temos permissão para exercer o poder humano e vós, César, não tendes autoridade para queimar incenso. Assim vos escrevo por se tratar de vossa própria salvação.


Pena que, posteriormente, tal interpelação não tenha vingado...

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    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
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