Alguns estudiosos acusam neste fato uma clivagem com a provável mensagem e pregação histórica de Jesus e o senso de seu ministério. O apelo maior de temas-chave da religião judaica como a Aliança, a Promessa, a restauração social e espiritual da nação; e o quadro sócio-político de então, sob o domínio romano, a pesada carga suportada pela maioria da população, e as variadas expressões de insatisfação popular, os conflitos sociais entre grupos, como prismas para a leitura da memória histórica, são de um escopo tal que muitos não conseguem conceber que esse tema do destino individual ganharia espaço urgente nem poderia se relacionar com a questão messiânica.
Vêem então nisto uma 'espiritualização' crescente, mais grecisada do que judaica, alguns buscando apontar pontos específicos de bifurcação, geralmente no pensamento paulino. Um tempo atrás, mesmo pouco antes das publicações do gênero que se convencionou chamar 'Nova Perspectiva' nos estudos sobre Paulo, podíamos ouvir que Paulo teria 'criado o cristianismo'. É uma acusação presente em Ernest Renan e Nietzsche [os discursos sobre um suposto 'Paulo desjudaizado' só recentemente foram sepultados com os trabalhos de nomes como Ed Parish Sanders, Nichollas Thomas Wright, Heikki Raisanen, Francis B. Watson e Stephen Westerholm]. Algo que reforça isso é uma convenção vulgar de que o judaísmo antigo não se preocupava muito com esse destino individual, sobretudo em relação à condenação em contraste com a salvação. E também com uma impressão de que Paulo não lidou direito com o papel da Torá na Aliança e atribuíra aos seus contemporâneos um legalismo injusto.
Vamos expor aqui, em mais um texto da série sobre o contexto do neotestamentário e o discurso paulino, que esse dilema com a morte ocupa sim um espaço importante na cultura judaica deste período, e que no que o cristianismo se detém sobre o tema, está perfeitamente consoante com substratos religiosos judaicos.
A mais famosa imagem do destino pós-morte que encontramos no judaísmo é a do Sheol. Um lugar sombrio de semi-existência, desnorteada e errante. Mas parece que o termo era usado para abarcar uma complexidade de expressões dessemelhantes; dentre elas, também se inclui a de condenação.
Em Deuteronômio 32.21-23, tem-se o Sheol como lugar em que os que abandonaram Deus serão punidos por um fogo divino. Em Is.66.24, os revoltados contra Deus atingidos por um fogo que nunca se apaga, por vermes que nunca morrem (cujo eco sem encontra em Marcos 9.48). Na passagem do Salmo 9.17-18, tem-se apresentado o Sheol como lugar para os infiéis e os que esqueceram Deus.
Essas acepções soam estranhas quando encontramos vulgarmente falas categóricas que tomam por certo não existir essa concepção no judaísmo. É bom relembrar aqui a clássica passagem do livro de Daniel, 12.1-2, passagem esta proveniente da primeira metade do século II a.C., que evoca de forma bombástica a condenação eterna para os perdidos.
Mas vamos tomar um livro que trabalha sob categorias cristãs temas fortemente arraigados na apocalíptica judaica, o Apocalipse de João. Uma de suas figuras mais fortes evocadas sob esse tema é a do Livro da Vida. Não é algo novo em relação ao judaísmo. O tema do 'Livro vida'- ‘olam hazeh’, aparece por exemplo no Salmo 39.16, 69.27-29, no livro de Malaquias 3.16. Em muitos outros exemplos da literatura judaica encontramo-lo. Jubileu 30.22 menciona um livro de destruição dos nomes que foram arrancados do livro da vida. I Enoque 104.7; 108.3, 7; Baruc 24.1 também versam sobre o Livro da Vida; mesmo na Mishna, em Pirkey – Avot 2:1; 3.17.
Há também os âmbitos exotéricos. Dentre os manuscritos de Qumran, na 1QRegra da Comunidade (1Qs), Col. III: 9-13, fala-se sobre a ação de anjos da vingança, que destroem nações que prestam lealdade a Belial [em referência aos ‘Kittim’], exclamando que a chegada deles será para abundância de castigos por mãos de todos os anjos de destruição, para condenação eterna pela ira abrasadora do Deus da vingança, para erro perpétuo e vergonha sem fim com a ignomínia da destruição pelo fogo das regiões tenebrosas.
No Enoch Etíope [cerca de primeira metade do séc.I a.C.] tem-se [10.8]: Nesse dia, eles serão atirados ao abismo de fogo, na reclusão, no tormento, onde ficarão encerrados para todo o sempre. E todo aquele que for sentenciado à condenação eterna seja juntado a eles, e seja com eles mantido em correntes, até o fim de todas as gerações. Também: Esperai com paciente esperança; não renuncieis de vossa confiança; pois grande alegria será a vossa, como aquela dos anjos no céu. Conduze-vos como podeis, não estareis escondidos no dia do grande julgamento. Não sereis como os pecadores; e a eterna condenação estará longe de vós, enquanto o mundo existir.[104.3]
Também temos as imagens de visões beatíficas, das bem-aventuranças eternas. A expressão seio [que poderia ser tomada como 'círculo de', 'ambiente de', 'acolhimento junto a'] de Abraão apresentada na parábola em Lucas 16.22 ecoa 4 Macabeus: Após esse sofrimento, nosso Abraão, Isaque e Jacó nos receberão e todos nossos ancestrais nos celebrarão.
Mas no pensamento paulino, se destacam os temas da expiação dos pecados, prestação de contas no juízo, a segurança da vida eterna com Deus na Nova Criação, após o julgamento. De Tessalonicenses, dos primeiros escritos, destacando a carta aos Romanos. Seria esse então o ponto em que Paulo vai além de tudo antes, para tecer seu 'evangelho aos gentios'? De onde ele chegara a expressar o juízo divino que era tomado como 'Dia de YHWH' como 'Dia do Messias Jesus' (Filipenses 1.6; 1.10;2.16)?
Vejo que por detrás de tal julgamento, se esconde uma ingenuidade: a de que alguém, com posse de valiosos materiais que proporcionam hoje um fabuloso subsídio para o estudo do pensamento do judaísmo do segundo templo, e dos grupos religiosos, possa ainda assim estar mais a parte da mentalidade, sobretudo farisaica, e de círculos de pensamentos próximos (histórica, cultural e geograficamente), do que alguém que viveu diretamente imerso, não só tomando parte mas estudando e vivendo nas escolas importantes de então, existencialmente comprometido por inteiro, e que por assim dizer, perfeitamente traduz e expressa preocupações e temáticas de então que ninguém atualmente estaria tão habilitado em expressar.
Não se teria como apresentar de forma mais enfatizada como esses temas faziam sim parte das preocupações religiosas, mesmo em períodos de convulsões sociais como a das grandes agitações que culminaram com a revolta judaica seu desbaratamento e a assolação de Jerusalém, do que o lamento altissonante atribuído ao Rabbi Yochanan Bem-Zakkai, maior nome do Conselho de Jamnia, que estabeleceu o judaísmo oficial após a destruição do Templo pelas forças romanas, no topo das maiores autoridades do judaísmo de seu tempo e ligado à Gamaliel, eminente rabino educador de Paulo:
Agora eu estou sendo levado diante do supremo Rei dos reis, o Santo, bendito seja, que vive e permanece para todo o sempre. Se ele está zangado comigo, permanecerá zangado para sempre. Se me aprisionar, me aprisionará para sempre. Se me envia para a morte, permanecerei morto para sempre. Não posso persuadi-lo com palavras ou suborna-lo com dinheiro. Além disso, há dois caminhos à minha frente: um conduz ao Gan-Eden (paraíso) e o outro ao Gehena, e eu não sei a qual deles serei levado. O que mais posso fazer além de chorar?
(B’rahakhot 28b).
Importante observar que aí, além do tema do Gehena, relativo à condenação, temos o Gan-Éden, que é transliterado como Paraíso, apresentado em Lucas 23.43 no diálogo de Jesus com o criminoso na cruz.
De um povo devotado a um deus concebido como eminentemente moral e justo, com uma noção arraigada de pecado e deste como algo abominado por este deus, e que tinha convicção de esperar por um julgamento futuro, por mais que tivessem suas cerimônias de relembrar da aliança, confirmar sua participação na eleição selada pela Torá, e a cerimônia do Dia do Perdão, é natural ainda assim esperarmos essa preocupação, sobretudo nos mais conscienciosos quanto ao dever de ser fiel aos mandamentos. Em períodos em que se confrontavam com uma realidade que não parecia se retratar como recompensadora de tais esforços, isso poderia se acentuar.
Neste sentido, enfocando o auto-exame, o rabbi Yehoshua ben Levi declamara:
Qual é o sentido do versículo: É esta a torá que Moisés propôs aos filhos de Israel (Dt. 4:44)? Significa que se uma pessoa for merecedora, ela se torna para ela um remédio que dá vida; mas se não for, ele se torna um veneno mortal. Foi a isso que Raba se referiu quando disse: ‘Se a pessoa a usa da maneira correta, ela é um remédio de vida, mas para aquele que não usa da maneira correta, ela é um veneno mortal’. (Yoma 72b)Tal declaração está consoante com o apresentado em obras da literatura judaica, como no Apocalipse de Baruc 17.72, 3,42; 23.4.
Ainda para frisar como esta temática é arraigada no pano de fundo da religião judaica, temos o comentário na Torá Oral do Rabbi Y’hudah Há Nasi:
(...) Dê atenção a três coisas, e não ficarás sob o poder da transgressão: saiba o que está acima de você – um olho que tudo vê, um ouvido que tudo ouve, e todas suas obras registradas em um livro.
(Avot 2:1).
É deveras difícil sobre-estimar o impacto que poderia sobrevir através do quadro retratado em 4 Esdras 7.32-37:
A terra restaurará os que repousam nela, e o pó restaurará os que repousam nele. O Altíssimo será revelado no trono do julgamento, e então vem o fim. A compaixão desaparecerá, a misericórdia estará distante, a longanimidade, abandonada; apenas o julgamento permanecerá, a verdade perseverará, a fidelidade prevalecerá. A isso seguirá a recompensa, ela se manifestará. Os atos de justiça despertarão, e os atos de iniqüidade não repousarão. Então surgirá o Abismo de Tormentas, e, em contraste com ele, um lugar de refrigério; a fornalha de Ge-Hinnom se manifestará, e em contraste com ela, um paraíso de delícias.E também mais à frente em 7.46-48:
Quem dos que entraram no mundo não pecou? Ou quem dentre os nascentes na terra não transgrediu Tua aliança? Vejo, agora, que a era vindoura a poucos trará alegria, mas tormenta para muitos. Pois cresceu em nós o coração mau que nos afastou do Altíssimo, levou-nos à destruição, fez-nos conhecer os caminhos para longe da vida! E isso não se aplica somente a alguns, mas praticamente a todos os que foram criados!
Dessa forma, oferecemos subsídios para visualizarmos como esse tema, desenvolvido no cristianismo nascente sobretudo em Paulo mas não exclusivo dele (vide João 3.16, por exemplo) que vincula, juntamente com outras temáticas, as crenças quanto ao ministério de Jesus como decisivo para o destino pessoal após a morte. Não seriam algo dissimilar do substrato judaico, nem algo que necessariamente deveria ser desenvolvido de modo tardio, com um eclipsar judaico por temas indisiocráticos gregos. Está perfeitamente arraigado, dentro é claro de uma multiplicidade de expressões que é característica do contexto, no imaginário em que surgira. A um existencialista moderno que pudesse voltar ao tempo e perguntar aos cristãos 'o que tudo isso tem a ver com a morte', poderiam responder: 'tudo isso'.
1 comentários:
Obrigado pelas indicações, Sr. Pascale.
Contudo, preciso esclarecer que tratei aqui, como foco, o judaísmo do segundo templo em suas múltiplas expressões, e algumas interfaces com expressões anteriores bem como do mishnaico e demais desenvolvidos naquele período.
Atualmente também, apesar do que dizem muitos, não existe apenas uma perspectiva no judaismo.
Grato,
Rodrigo.
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