Douglas Mangum, no seu formidável e agradável blog Bíblia Hebraica, veio desenvolvendo e fez um apanhado de algumas discussões a respeito das diferenças do trabalho de 'teologia' para com 'estudos religiosos'. Ele se diz contemplado com alguns apontamentos feitos pela crônica de K.L. Noll’s.
De fato, é um assunto que teve algum tempo me debrucei a respeito. Na verdade, eu nutro grande interesse a respeito de discussões de gnosiologia, epistemologia e metodologia em geral, e já desenvolvi trabalhos a respeito em minha área profissional como agroecólogo, intitulados Perspectivas epistemológicas para a agroecologia, promovendo um diálogo entre as ciências da agroecologia, as ciências da complexidade e as discussões da filosofia e história da ciência. Também já me debrucei sobre temas de epistemologia e direitos humanos, focando a ontologia de Paul Tillich e os Direitos Humanos à Alimentação Adequada (DHAA). Como alguém que investiga e xereta diversos assuntos nos escritos sobre religião, esse tema não ficaria de fora, e de fato já venho resolvendo empreender algo neste sentido, o que levaria alguns meses.
A provocação da discussão é deveras pertinente. Podemos observar um fenômeno crescente, e bivalente, onde os cursos e faculdades de teologia cada vez se vêem mais restritos a seminários e faculdades de direito privado ligadas a instituições de cunho religioso, enquanto, por outro lado, cresce nas instituições públicas cursos e faculdades de 'estudos religiosos', ou 'ciências da religião', multidisciplinares e com diversas interfaces com outras áreas.
Aqui, tentarei levantar algumas modestas reflexões a respeito dos pontos levantados por Douglas e por Noll’s. Uma advertência preliminar. Douglas nota bem a lamentável participação meio que sectária dos comentários a respeito do artigo de Noll’s. Contudo, versarei sobre alguns pontos que elas levantam. Pois o fato é que não é porque alguém levanta um assunto com uma postura e tônica sofrível que o conteúdo essencial do levantamento em si se invalida.
Os eixos-chave do raciocínio da crônica são o seguinte: a teologia está imbuída de um compromisso teleológico que lhe retira a objetividade, em relação ao maior distanciamento de alguém que se declara empreendedor de trabalhos em 'estudos religiosos'. E o teólogo está imerso e comprometido, necessariamente, com uma tradição religiosa, e faz seus trabalhos na ótica da sua comunidade de tradição, e em prol dela. Há um maior controle dos resultados de pesquisa em quem faz 'estudos religiosos' do que quem trabalha com 'teologia'.
Quero argumentar aqui que, na linguagem teen de hoje, isso tudo é 'muito relativo'.
Um teólogo se debruça sobre uma tradição religiosa, pois seu material de estudo está imerso nela. Não significa que ele está comprometido com essa tradição, necessariamente. Alguém pode estudar teologia de uma tradição sem pertencer a ela;pode estudar a teologia de uma tradição religiosa diferente da sua. Ou alguém que não se declara pertencente a nenhuma pode estudar várias ou uma. Ele estudaria as representações das divindades, como elas retroagem com os que crêem, o material primário da tradição, qual a natureza da linguagem que se fala dela, como se relaciona com outras tradições, com a cultura em geral. No caso, esses temas se sobressairiam ante o foco mais enfatizado na história em si, ou na sociologia, ou estética, embora ele possa usar tais como ferramentas. Mas pode perfeitamente não crer no conteúdo da alegação e reivindicação dessa tradição.
Por outro lado, alguém que foca no estudo antropológico das comunidades e/ou instituições de uma tradição religiosa, ou relações econômicas, no campo filológico ou idiográfico, sobressaindo o foco nas ciências sociais, p. ex., não seria um teólogo, mas trabalharia com “estudos religiosos”, e poderiam muito bem pertencer a tradição estudada ou a outra, e ser em dado grau, comprometido com ela no trabalho. E a teologia, propriamente dita, estará presente em um grau muito pequeno. O teólogo pode se valer de aportes destes estudos para empreender seu trabalho enquanto tal.
Todos eles estão inseridos numa comunidade, numa comunidade de pesquisadores, em sua comunidade acadêmica cotidiana, às quais submetem, reportam os trabalhos e levam em conta o consenso ou a posição majoritária, avançando dentre os paradigmas que os colegas da comunidade acadêmica perfilham e os problemas detectados; sobre todos poderíamos dizer que, no âmbito acadêmico, seriam os 'cientistas normais' dos postulados de Thomas Kuhn, partilhando dos seus jogos de linguagem. E com o tempo, no contexto social, historicamente se constituem corpos de tradições, ainda que não monolíticas.
Quanto à questão de objetividade do pesquisador, este é um assunto muito mais extenso e complexo do que muitos crêem, e daria para escrever vários artigos. No campo filosófico este debate é um balaio de gato. Sobre a natureza da relação entre o observador, o material estudado e a linguagem, representação e ontologia, mesmo no campo das ciências como física, química, astronomia, etc., temos ainda vivo um grande debate entre realistas, instrumentalistas, e mais recente algo que veio contribuir muito (uma perspectiva à qual me alinho), o realismo crítico.
Os realistas críticos atentam que um conhecimento da realidade é auferido pelas ferramentas, mas em aspectos limitados e parciais, em interação com quem conhece. Apregoam que as ferramentas científicas não podem mesmo expressar crua e perfeitamente a realidade tal como é em si, tampouco se restringem a construções intelectuais úteis e internamente consistentes. Dentro de limites, podem apresentar a realidade, mediada por atos de imaginação criativa, nos quais analogias e modelos conceituais têm frequentemente um papel. Os modelos conceituais nos ajudam a imaginar o que não é diretamente observável, especialmente no domínio do muito grande e do muito pequeno. - extraído de Quando a ciência encontra a religião, Pg. 41-42.
Vamos nos debruçar sob o prisma do que Max Weber escrevera aqui:
Pode-se afirmar que, quando se procura retirar orientações concretas de avaliações práticas políticas (particularmente econômicas e sóciopolíticas), 91) os meios indispensáveis, (2) as repercussões inevitáveis, (3) a competição condicionada das inúmeras avaliações possíveis nas suas conseqüências práticas são tudo o que uma disciplina empírica pode demonstrar com os meios ao seu dispor. As disciplinas filosóficas podem ir mais longe e revelar o ‘significado’ das avaliações, isto é, sua estrutura última e suas conseqüências significativas. (...) As ciências sociais, estritamente empíricas, são as menos adequadas para ter a presunção de nos poupar a dificuldade de fazer uma escolha, e não devem portanto difundir a impressão de que podem fazê-lo.
WEBER, Max. The Meaning of ‘Ethical Neutrality’ in Sociology and Economics. In:The Methodology of the Social Sciences (Nova York:Free Press,1949), p.18-19.
Este texto iluminará nossa reflexão, buscando somar e transpor o 'político', que é o que ele aborda, com o 'religioso', nossa preocupação maior aqui.
CONTINUA...
IMAGEM: Max Weber.
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