No post anterior, conversamos um pouco sobre os problemas associados aos argumentos frequentemente encontrados na internet de que a falta ou escassez de referências não cristãs a Jesus seria uma prova de sua inexistência ou irrelevância histórica, citando como exemplo o filme para internet zeitgeist e lista de Remsburg. Uma vez que os autores do zeitgeist mencionaram Flávio Josefo, observamos que no texto atual de sua obra Antiguidades Judaicas, existem duas referências a Jesus de Nazaré, nas passagens encontradas no Livro 18:63-64 (conhecida como Testimonium Flavianum) e 20:9:1 (ou 20:200), em que ele relata a execução de Tiago, irmão de Jesus, chamado o Cristo. Neste post, onde ainda estamos discutindo algumas questões preliminares em nossa série "Jesus na História Richter de Impacto Histórico", vamos falar sobre essa referência a Josefo a Tiago, irmão de Jesus, e suas implicações.Josefo, Tiago e Jesus
Em Antiguidades 20:200, Josefo descreve a execução de "Tiago, irmão de Jesus chamado o Cristo" por ordem do Sumo Sacerdote Anás, o jovem (também chamado Anã, Ananias e Ananus):
"O jovem Anás (...) era precipitado em seu temperamento e inusitadamente ousado. Seguia a Escola dos Saduceus, que são de fato mais insensíveis que qualquer dos outros judeus (...) quando julgam. Sendo portanto este tipo de pessoa, Hananias, pensando ter uma oportunidade favorável, pois que Festo tinha morrido e Albino estava a caminho, convocou o Sinédrio e colocou diante dele o irmão de Jesus, o assim chamado Cristo, de nome Tiago e alguns outros. Acusou-os de terem transgredido a lei e os entregou para serem apedrejados. Mas isso exasperou até os mais zelosos observadores da lei, que mandaram um encarregado ao Rei com o pedido de exigir por escrito de Anás que desistisse de qualquer outras ações, pois não havia sido correto em seu primiero passo. Alguns deles foram ter com Albino, que estava a caminho proveniente de Alexandria, e informaram-no de que Anás não tinha autoridade para convocar o Sinédrio sem seu consentimento. Convencido por essas palavras, Albino rapidamente escreveu a Anás ameacando-vingar-se dele. O Rei Agripa, por causa da atitude de Anás, afastou-o do sumo sacerdócio que ele exercera por três meses e o substituiu por Jesus, o filho de Damasco" (Antiguidades Judaicas 20.9.1 § 200-203)"
O Tiago em questão era o líder da Igreja de Jerusalém, a qual é atribuída a carta de mesmo nome no Novo Testamento, e o mesmo a quem Paulo se refere em sua carta aos Galatás, que ao visitar Jerusálem para encontrar Pedro, tendo demorado com ele 15 dias, afirma "Mas não vi a nenhum outro dos apóstolos, senão a Tiago, irmão do Senhor" (Gal. 1:19). Não confundir esse Tiago com Tiago "Boanerges", irmão de João e Filho de Zebedeu, morto por ordem de Herodes Agripa (Atos 12), cerca de 44 DC. Já o Anás aqui é o filho daquele Anás que é mencionado nos evangelhos de Lucas e João como Sumo-Sacerdote (junto com Caifás) quando Jesus foi crucificado. Segundo Josefo ele e cinco de seus filhos foram Sumo-Sacerdotes. Além disso, o evangelho de João informa que Caífas era genro de Anás, o velho, o que aumenta para sete o número de sumo-sacerdotes daquela família. Há consenso quase universal entre os estudiosos de que a passagem é autentica:
Em analise detalhada da literatura acadêmica em relação a essa passagem, o Professor Louis Feldman, da Yeshiva University, decano dos estudos sobre Flavio Josefo, nos informa em relação a autenticidade:
"Que, de fato, Josefo realmente escreveu algo sobre Jesus é indicado, acima de tudo, pela passagem - que é reconhecida quase universalmente como autêntica - sobre Tiago, que é referido (Antiguidades XX:200) como o irmão do já mencionado Cristo" [1]
Da mesma forma, Dr. Paul Winter, que analisou quase meia centena de estudos acadêmicos sobre Josefo e Jesus, observa:
"os estudiosos que consideram a segunda passagem [a de Tiago] genuina são mais numerosos que aqueles que o consideram a primeira (Testemunho Flaviano). A maiores dos autores que rejeitam Antiguidades 18.3.3 (63-64) como espúria, não tem dúvidas em relação a autenticidade de Antiguidades XX.9.1.200" [2]
Dos 47 estudiosos consultados por Winter, entre 1812 e 1968, ele cita apenas 5 que consideraram tanto o Testemunho Flaviano (Antiguidades 18:63) como inteiramente falso e a frase "Tiago, irmão de Jesus, chamado do Cristo" (Antiguidades 20:200) como interpolada. Dos 25 estudos realizados de 1918 a 1968, somente 1 (4 %) considerou falsas as duas passagens[2].
Argumentos favoráveis a autenticidade:
A aceitação da passagem como autentica é quase unânime. Uma vez, porém, que existe alguma literatura acadêmica que conteste a frase "Tiago, irmão de Jesus, chamado Cristo", embora bastante reduzida, e uma infinidade de páginas na internet, elaboradas por leigos, que a rejeite violentamente, vamos analisar aqui tanto os argimentos para autenticidade, como aqueles que afirmam que a frase foi inserida (interpolada) no texto original de Josefo por escribas cristãos.
Só que Origenes (e Eusébio e Jerônimo) cita a passagem bem mais "embelezada", dizendo que "Josefo, que não acreditava que Jesus era o Messias [Cristo], quando estava a buscar as razões da destruição de Jerusalém e a demolição do Templo, e deveria ter dito que as maquinações contra Jesus foram a causa das misérias que atingiram o povo, pois tinha matado o Cristo que foi anunciado pelos profetas. Ele, embora não estivesse disposto a admitir, e ainda como alguém não distante da verdade diz: Estas tragédias atingiram os judeus como retribuição ao que fizeram com Tiago, o Justo, irmão de Jesus chamado o Cristo, pois eles o mataram, mesmo sendo uma pessoa distinta por sua justiça". O mais provável é que esses acréscimos sejam devido a um erro de Origenes ou que ele tenha misturado o relato de Josefo e Hegesipo, uma vez, como observa a Dra. Alice Whealey, que os nomes tem grafia semelhante em grego, e ambos escritores mencionam a morte de Tiago e o cerco e destruição de Jerusalém [8].
No entanto, alguns estudiosos, como o Professor James Tabor, da Universidade da Carolina do Norte [9], acreditam que tenha havido uma segunda passagem referindo-se a Tiago em Antiguidades, hoje perdida (existe algum precedente para isso, em Antiguidades 20.7.2, Josefo diz que o filho do Procurador Felix e Drusila, chamado Agripa morreu na erupção do Vesuvio. Ele diz que descreveria o ocorrido, mas não encontramos esse relato no texto atual de Antiquites.
[adicionado em 15.07.2011: De qualquer forma, vale observar que na seção em que a execução de Tiago é descrita, Josefo observa várias vezes uma situação de crescente degradação e desordem no país. Assim, no parágrafo seguinte (20:9:2 §206), lemos que os servos do Sumo-Sacerdote Ananias se associaram a alguns marginais para roubar os dízimos recebidos pelos outros sacerdotes, espancando aqueles que resistiam, e que os servos dos outros sumo-sacerdotes começaram a agir da mesma forma, "e ninguém os impedia, levando aos sacerdotes que nos tempos antigos eram mantidos pelo dízimo pago a morrerem de fome" (§207). Os sicários então sequestraram o filho do Sumo-Sacerdote Ananias, que foi forçado a convencer o Procurador Albino a libertar dez membros daquele grupo, "o que foi o começo de grandes calamidades" (§ 209), pois os bandidos passaram então a capturar servos do Sumo-Sacerdote para forçar a libertação de seus cumplices, e assim seu número cresceu cada vez mais " e se tornaram mais ousados, e eram uma fonte tormento para a nação" (§ 210). Um pouco adiante, Josefo relata que Jesus, filho de Damasco, foi substituido por Jesus, filho de Gamaliel, e que isso causou um tumulto entre os dois sumos-sacerdotes, e seus partidários formaram bandos que brigavam e se apredejavam nas ruas (§ 213), enquanto que dois membros da familia real, Costobarus e Saulo, parentes do Rei Herodes Agripa, reuniram um grande número de marginais, que usaram de violência contra o povo "e a partir dai, principalmente, a cidade estava em grande desordem, e a nossa situação piorava cada vez mais" (§ 214). Provando a eficiência da Lei de Murphy, Albino, sabendo que havia sido substituido por Géssio Floro, ordenou a execução de muitos prisioneiros, e libertou varios outros, obtendo deles suborno, de forma que "as prisões ficaram vazias, mas o pais cheio de ladrões" (§ 215). Por fim, Josefo expressa sua insatisfação com os Levitas, que persuadiram o Rei Agripa e o Sinédrio a lhes conceder o direito de utilizar as mesmas vestes dos sacerdotes, afirmando "tudo isso é contrário aos costumes de nossa nação, que sempre que foram transgredidos, foram causa de punições que nós nunca conseguimos evitar" (§ 218). Um pouco depois, Jesus filho de Gamaliel foi substituido por Matias, Filho de Teófilo, sob o qual a Guerra com os Romanos começou (§ 223). Nesse contexto de várias calamidades e infortúnios, não é estranho que Orígenes tenha sido induzido a pensar que Josefo estava procurando as causas da destruição de Jerusalém.]
h) Os comentários sobre os efeitos da execução de Tiago, atribuidos a Josefo por alguns pais da Igreja, não foram incorporados a Antiguidades, apesar de seu valor teológico: Conforme observa Alice Whealey [10], é estranho que um eventual interpolador se contentasse com uma versão tão neutra e limitada, e que contradizia o relato cristão tradicional (de Hegesipo) da morte de Tiago. Se, afirma Whealey, como alguns dizem, escribas cristãos "fabricavam" passagens inteiras, porque simplesmente não inseriram em Antiguidades o que Orígenes escreveu (e Eusébio e Jerônimo repetiram) - que Josefo disse, que os judeus diziam, que desastres como a queda de Jerusálem e a destruição do Templo ocorreram como retribuição divina a morte de Tiago - já que seria uma versão teologicamente muito mais interessante? Porque inserir apenas a identificação de que Tiago "era o irmão de Jesus, chamado Cristo" e foi apenas uma vítima de uma ato de um Sumo-Sacerdote afobado, deixando de colocar o comentário atribuído a Josefo por Orígenes, de extrema relevância teológica, de que pensava-se que a morte deste Tiago, o Justo, foi a causa das misérias que atingiram os Judeus? Se, como a maioria dos estudiosos acredita hoje, a referência original a Jesus por Josefo foi "harmonizada" com a versão mais "edificante" encontrada em Eusébio, resultando no atual Testimonium Flavianum, (lembrando que um minoria razoavel de acadêmicos consideram que o Testimonium foi fabricado in totum e inserido em Josefo), porque o mesmo não foi feito com as observações teologicamente interessantes sobre a queda de Jerusalém atribuídas a Josefo pelo mesmo Eusébio (e Orígenes antes dele)? O fato do mesmo não ter acontecido com a passagem sobre Tiago é fortíssima evidência de que o texto não foi alterado ou manipulado uma vez que seria relativamente mais simples harmonizar Antiguidades 20:200 com Orígenes, Eusébio e Jerônimo, inserindo as (supostas) observações de Josefo, sobre a morte de Tiago e queda de Jerusalém feitas por aqueles pais da Igreja.
i) A partir do final do século II, houve uma tendência dos cristãos de considerar Tiago não mais irmão, mas meio ou primo irmão de Jesus: Alice Whealey [11] enfatiza um outro ponto. Chamar Tiago de irmão de Jesus não seria problema para um escritor judeu não cristão do I século. Como também não o foi para Paulo e os evangelistas. No entanto, a partir de meados do II século, referir-se a Tiago como irmão de sangue do Senhor se torna cada vez mais problemático, em virtude da doutrina, cada vez mais disseminada, da virgindade perpétua de Maria. No Proto-Evangelho de Tiago (cerca de 150 DC), Tiago, Simão, Judas e José são retratados como filhos do 1° casamento de José, que agora sendo um viúvo de avançada idade, se casa com Maria, uma menina, para viverem em castidade. Também na literatura não-ortodoxa, o vínculo de sangue entre Jesus e Tiago passa a ser negado, como no 1º e 2º Apocalipse de Tiago e o Apócrifo de Tiago. Os pais da igreja, dos séculos III e IV, como Hipólito, Clemente de Alexandria, Orígenes, Eusébio ao citar o termo bíblico os "irmãos do Senhor" se apressam a esclarecer que eles não eram irmãos de sangue, mas meio-irmãos por parte de pai. Posteriormente, Jerônimo, no final do século IV, defende vigorosamente a vingindade perpétua de Maria, e afirma que Tiago sequer era irmão de Jesus, mas apenas primo-irmão, acusando de heresia aqueles que, como Helvídio e Joviano, diziam que Maria e José tiveram filhos. Aqui podemos acrescentar as observações do Prof. Bart Erhmann, da Universidade da Carolina do Norte, de que virgindade perpétua de Maria se torna desde cedo uma doutrina importante da igreja, e evidenciada pela popularidade do proto-evangelho de Tiago, com numerosos manuscritos antigos descobertos, principalmente na cristandade oriental, na área de influência da Igreja Ortodoxa Grega. Da mesma forma, no ocidente, o Proto-Evangelho de Tiago não encontrou recepção tão positiva, justamente pela força da posição de Jerônimo, que rapidamente se tornaria a posição católica-romana sancionada [12]. Em face da poderosa doutrina da virgindade perpétua de Maria, observa Whealey [13], seria quase inconcebível um cristão nos séculos IV ou V, referir-se a Tiago como irmão de Jesus, sem nenhuma ressalva, como Tiago "meio" ou "primo", arriscando-se a incorrer em heresia, por sugerir que Maria pudesse ter outro filho além de Jesus, quanto mais inserir no texto de Josefo a frase "irmão de Jesus, chamado o Cristo" sem adicionar também "primo" ou "meio" na mesma sentença. No período em que a suposta interpolação teria ocorrido, um cristão escreveria "o meio-irmão" ou o "primo-irmão" de Jesus, chamado o Cristo.
É interessante que, após o tempo de Jerônimo, poucos escritores cristãos fariam menção a essa passagem de Josefo, possivelmente por implicar que Jesus e Tiago eram irmãos de sangue, o que contrariava a visão da Igreja, tanto no oriente como no ocidente.
Objeções a autenticidade:
Tenos exemplos na obra de Josefo. Geza Vermes observa um outro caso semelhante, envolvendo um revolucionário galileu no tempo de Herodes:
"Ezequias, o capitão ladrão, foi o líder de um bando de soldados que vagavam pela Galiléia quando o futuro Rei herodes, o Grande, então com cerca de 25 anos de idade, era seu Governador em meados do século I AC. Tudo o que sabemos com certeza é que Ezequias foi capturado e condenado a morte por Herodes . Mas, ao invés de ser cumprimentado por livrar a província de bandidos, Herodes foi levado perante o Sinédrio e julgado por execuções sumárias depois que as queixas das mães dos executados foram ouvidas por Hircano II, Sumo Sacerdote e Etnarca" [15]
O episódio é relatado em Antiguidades 14:9:3-5 (§163-177). Da mesmo forma, é pouco provável que o Sinédrio tenha ficado tão enfurecido "apenas" por Herodes ter livrado a Galíleia de bandidos, capturando e executando o "arqui-ladrão" Ezequias. Josefo escreve que os "principais lideres dos judeus" (§163) ficaram exasperados com a crescente influência da Herodes, seus irmãos e seu pai Antipatro, e crescentemente atemorizados porque percebiam que Herodes era "um homem violento e atrevido, e dado a agir tiranicamente", e portanto utilizaram o fato de Herodes ter executado Ezequias por conta própria, sem leva-lo a julgamento ao Sinédrio, como pretexto para eliminar a crescente ameaça representada por Herodes. Aqui, como no caso de Anás, adversários politicos preocupados com o poder crescente concentrado sob um jovem de temperamento ousado, e dado a violência e crueldade, utilizam um erro processual para tentar se livrar dele.
(Mesmo Julio César não esteve livre desse tipo de "ardil". O Professor Adrian Goldsworthy, observa que Catão, o Jovem, propôs ao Senado que Cesar fosse processado porque havia atacado bárbaros na Galia durante uma tregua [16]. Obviamente, bem estar dos barbáros, sejam gauleses, tradicionais inimigos de Roma, ou germânicos era basicamente um pretexto utilizado por Catão e outros Senadores para tentar destituir, o arrojado e crescentemente poderoso, Júlio César de seus poderes, bem como seus exércitos.) ]
[1] Louis Feldman & Gohei Hata (1989), "Josephus, Judaism, and Christianity", pagina 56
[2] Paul Winter (1968), "Excursus II -Josephus on Jesus and James," in E. Schurer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ, rev. and ed. by G. Vermes and F. Millar, fl 430. Paul Winter cita os trabalhos de Benedict Niese (1893), Emil Schurer (1901), G. Holscher (1904) e J. Juster (1914) como aqueles que rejeitaram tanto o Testimonium Flavianum quanto a referência a Tiago, "irmão de Jesus, chamado o Cristo" como interpolações. Posteriores a I Guerra Mundial, e até a conclusão do estudo de Winter, temos Solomon Zeitlin (1928). Observamos, por relevante, que todos esses autores acreditavam na existência e influência de Jesus.
[3] John Painter (2004) "Just James: The Brother of Jesus in History and Tradition", fl. 134
[5] John P. Meier (1991), Um Judeu Marginal, Volume 1, fl 67.
[6] Geza Vermes (2010), "Jesus in the Eyes of Josephus", Staindpoint mag, jan/fev. 2010, http://www.standpointmag.co.uk/node/2507/full, acessado em 08.02.2010

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