domingo, 8 de agosto de 2010

P'rushins - os Fariseus e a condenação romana de Jesus

A mente dos judeus entre os séculos I a.C. e I d.C. estava impregnada com a rememorização de opressões históricas e do sentimento do exílio, pois com as expectativas históricas com o retorno do exílio babilônico e medo-persa, houveram as conquistas e posteriores tiranias helenistas, a revolta e “libertação” macabéia, e novas conquistas e jugos romanos. Houveram diversas formas de reações, não só em atos e levantes, não só em traições, mas em manifestações e forma de viver. Esses fatores foram muito marcantes para a definição de ambientes de vida – definido inteligentemente por Howard Clark Kee: “compreende-se não apenas a sociedade, onde o indivíduo encontra sentido e identidade, nem apenas a cultura, que a sociedade transmite e em cujos termos ela define os seus próprios objetivos, mas também as dimensões cósmicas da existência – aquilo que chamaríamos de mundo natural, sua origem e o poder que o sustenta" [1] – dentre grupos e subgrupos do povo judeu.

Apesar das nuances algumas vezes sutis, e no panorama geral complexas, dentre os grupos sociais, podemos ver dois contrastes nítidos entre dois, os saduceus e os fariseus. Com os primeiros engendrou-se uma postura de convivência cooptada com o império romano, mantendo mais da identidade e apego à tradição do que os herodianos, sem uma colaboração tão acentuada, mas buscando manter o status quo. Com os fariseus engendrou-se uma identidade de resistência, buscando manter também e identidade judaica somada às aspirações redentoras alicerçadas nos vaticínios proféticos, no contraste com o modo de ser greco-romano via o apego à rituais cotidianos, zelo pela Torah, e atendo-se à ideia da ressurreição e vindicação escatológica dos justos por parte de Deus, com o subsequente destrono e subversão da ordem dos dominadores, e uma nova ordem com o Israel purificado e restaurado sendo a luz do mundo [2]. Uma passagem clássica que apresenta tal expressão está no livro de “Sabedoria de Salomão” :
No momento, porém, em que Deus intervir, eles resplandecerão e correrão como centelhas na palha. Julgarão as nações e dominarão os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre. (3:7-8)
Diante deste quadro, há uma passagem reveladora no evangelho de João, abordando o seu julgamento diante Pilatos (João 18.13-16):

Se o soltares, não estarás agindo como amigo de César! Pois todo aquele que se faz rei declara-se contra César”.

Mal ouviu essas palavras, Pilatos fez conduzir Jesus para fora e o instalou em uma tribuna, no lugar chamado Lithóstroton – em hebraico Gábata [ que quer dizer 'pavimento de pedra', nota nossa]. Era o dia da preparação da páscoa, por volta da sexta hora [ou meio-dia]. Pilatos disse aos Judeus: “eis o vosso rei!” Mas eles se puseram a gritar: “À morte! Crucifica-o!” Pilatos replicou: “Devo eu crucificar o vosso rei?”; os sumo-sacerdotes responderam: “nós não temos outro rei, senão César”. Foi então que Pilatos lhes entregou Jesus para ser crucificado.

Tal declaração de lealdade – diante de um prefeito romano em um assento de julgamento [3], que culmina uma progressão ao longo do período maior de audiência de Jesus ante Pilatos em que este se reúne com os líderes religiosos, tendo antes um ponto de pico também em “Pois todo aquele que se faz rei se declara amigo de César”, que então chega ao ponto mais alto do vs. 15., está sob um pano de fundo de um vasto constrangimento religioso. Pode-se retratá-lo com essas passagens, marcantes para aquele contexto, na Bíblia Hebraica:

“Não serei eu vosso soberano, nem meu filho. IWHW seja seu soberano!” -Gideão em Jz:8.3
IWHW disse a Samuel: Escuta a voz do povo em tudo aquilo que te pedem. Não é a ti que rejeitam, mas a mim. Não querem mais que eu reine sobre eles”. I Sm:8.7
“Dai a Deus a força. Sua majestade está sobre Israel, sua força está nas nuvens”. Sl:68.35
“Senhor, nosso Deus, outros senhores além de Ti dominaram sobre nós, mas é unicamente o Teu nome que repetimos”. Is: 26.13
“A oração foi a seguinte: 'Senhor, Senhor Deus, Criador de todas as coisas, terrível e forte, justo e misericordioso, o único Rei, o único bom,' (...)” II Mb:1.24

Essa concessão então ante a Roma dificultaria ao máximo conceber que os fariseus participaram-na, ou mesmo aprovaram-na. Sim, pessoas são complexas, e no dia a dia aparecem situações com reações inesperadas ao máximo; ainda mais em momentos igualmente complexos. Por isso em tal campo de estudo é comum encontrarmos, nos acadêmicos mais ponderados e prudentes, expressões como “sugere”, “provavelmente”, “possivelmente”, retratando o respeito com o que em estatística é chamado “margem de erro”. Mas se falando de um grupo identitário, temos base o suficiente para concluir, com bom grau de proximidade, que muito dificilmente os fariseus tomaram parte no apelo para a morte de Jesus na audiência com Roma. O evangelista coloca “os Sumo-sacerdotes” ao se referir àqueles que pediam a morte argumentando pela probidade para com César; isso incluiria o Sumo-sacerdote, o círculo mais íntimo, seguidores próximos, membros do Sinédrio, e aqueles que acompanhavam seu coro. Não incluiria então os fariseus, ainda que muitos deles pudessem estar presentes ou assistindo. Não engrossaram o coro, ou não respaldaram, e justamente neste momento alguns poderia até em seu íntimo estarem se opondo; na segunda mais importante oração nacional, após o Shemah, a Shemoneh Esreh, a benção 11 aclama a Deus “que sejas o nosso Rei, somente Tu”. Ao consentirem, estariam capitulando ante o partido de seus maiores confrontadores, publicamente, ante a judeus residentes em Jerusalém, ante judeus e prosélitos imigrantes da diáspora, ante autoridades e militares romanos.

Somando ao já abordado brilhantemente pelo companheiro Nehemias quanto à relação fariseus/cristãos, estereotipada de maneira tão errônea, além de corrigir erros vulgares, teria profusas implicações sobre a compreensão das origens e emergência do cristianismo, da dinâmica sociocultural dos primeiros cristãos, e para a composição e caráter dos evangelhos.



[1] As origens cristãs em perspectiva sociologica, p. 21
[2] N. T. Wright, Christian Origins and the Question of God, vol. 2: The New Testament and the People of God.  p.189-99.
[3] D.A.Carson, The Gospel According of John, p. 607-608

4 comentários:

Flávio Souza disse...

Eu acredito que Jesus se identificava com o grupo de Hillel, em oposição ao de Shammai. Somente na questão do divórcio, encontramos uma semelhança entre Jesus e esta última escola.

Creio que as comunidades que elaboraram os evangelhos amplificaram a disputa entre Jesus e os fariseus, porém eu acredito que uma parte considerável daquelas disputas haláquicas deva ter existido.

Neste sentido, creio que é possível que encontremos uma facção mais legalista dos fariseus por trás do julgamento de Jesus.

informadordeopiniao disse...

Flávio,

na questão também quanto ao distributivismo e lidar com as riquezas, a radicalidade de Jesus se aproximava mais da escola de Shammai do que de Hillel. Mas penso que a ênfase carismática e escatológica em seu ministério era o que prepoderava para definir essas posições, mais do que um alinhamento com uma escola (embora eu acredite que ele podia ter assimilado muito dos hassidins galileus).

Flávio Souza disse...

Este é um assunto muito complexo pois caberia a nós tentar separar aquilo que realmente ocorreu de embates entre Jesus e os fariseus daquilo que é reflexo das lutas entre os nazarenos e o rabinato farisaico após a destruição do Templo (e até antes).

Neste quadro, encontramos aquela passagem de

Marcos 12,35-7:

"E prosseguia Jesus ensinando no Templo, dizendo: "Como podem os escribas dizer que o Messias é filho de Davi? O próprio Davi disse, pelo Espírito Santo:

O Senhor disse ao meu Senhor:
senta-te à minha direita
até que eu ponha os teus inimigos
debaixo dos teus pés.

O próprio Davi o chama Senhor; como pode, então, ser seu filho?"
E a numerosa multidão o escutava com prazer.

Nesta passagem, Jesus parece se opor à corrente farisaica quanto ao messianismo davídico. Estou bolando um texto sobre isso.

informadordeopiniao disse...

O pior é que essa tarefa está imiscuída em intricados problemas metodológicos e de pano de fundo, as recentes controvérsias acerca das audiências em vista dos evangelhos, além do fato de que muitos dos conflitos se davam reforçados justamente por muitos pontos de aproximação.

Agora, quanto às concepções messiânicas, eu tenho por mim tem muito tempo que o olhar sobre o que Jesus via deve ser caleidoscópico, ainda mais se formos fazer análises semióticas dos textos dos redatores. Penso que ele aceitou pontos de diversas concepções e rejeitou outros das mesmas, produzindo como resultado algo singular e ao mesmo tempo ambientado e tributário.

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