O problema das tradições judaicas associadas à Jesus e sua fidelidade à Toráh tem permeado discussões acaloradas desde o início de seu próprio movimento no século I d.C. Seria Jesus um "judeu desviante" ou seria ele um fiel seguidor da Torah? O conflito mais radical entre as comunidades cristãs no período posterior à destruição do Templo e o movimento proto-rabínico centrado nas sinagogas tendeu ao longo dos textos do Novo Testamento a tornar a compreensão dos efetivos debates de Jesus com os fariseus e seu relacionamento com eles uma atividade das mais complexas. Neste artigo, nos concentraremos no famoso incidente das espigas de trigo, momento no qual o grupo de Jesus é acusado de quebrar a guarda do Shabbat. Em um primeiro momento, tentaremos analisar as estratégias retóricas de tal controvérsia a partir de duas sugestões de pares opositivos: "Jesus/fariseus" e "evangelistas/farisaismo". Em seguida, tendo exposto tais estratégias, procuraremos situar melhor o sitz in leben do debate de tal forma a buscar uma compreensão mais acurada do suposto ocorrido em termos históricos, buscando melhor diferenciar os atores envolvidos na controvérsia e situar a mesma nas diferentes tradições judaicas. Neste sentido, desenvolveremos, agora munidos de uma melhor caracterização do cenário, uma análise mais sofisticada sobre a defesa apresentada por Jesus nesta discussão. Por fim, baseados na argumentação desenvolvida nestas duas etapas iniciais, diferenciaremos em nossa conclusão os dois retratos-síntese sobre a figura de Jesus que em nossa análise emergiram desta controvérsia. Tendo sido delineado este roteiro, vamos agora, pois, apresentar as diferentes versões do incidente, de acordo com os 3 evangelistas sinópticos:
Análise Discursiva e apontamentos iniciais
"Aconteceu que, ao passar num sábado pelas plantações, seus discípulos começaram a abrir caminhos arrancando as espigas. Os fariseus disseram-lhe: 'Vê! Como fazem eles o que não é permitido fazer no sábado?' Ele respondeu: 'Nunca lestes o que fez Davi e seus companheiros quando necessitavam e tiveram fome, e como entrou na casa de Deus, no tempo do Sumo Sacerdote Abiatar, e comeu dos pães da proprosição, que só os sacerdotes podem comer, e os deu também aos companheiros?' Então lhes dizia: 'O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado; de modo que o Filho do Homem é senhor até do sábado'" [Marcos 2,23-28]
"Certo sábado, ao passarem pelas plantações, seus discípulos arrancavam espigas e as comiam, debulhando-as com as mãos. Alguns fariseus disseram: "Por que fazeis o que não é permitido em dia de sábado? Jesus respondeu-lhes: "Não lestes o que fez Davi, ele e seus companheiros, quando tiveram fome? Entrou na casa de Deus, tomou os pães da proposição, comeu deles e deu também aos companheiros - esses pães que só aos sacerdotes é permitido comer' - E dizia-lhes: 'O Filho do Homem é senhor do Sábado!" [Lucas 6:1-6]
"Por este tempo, Jesus passou, num sábado, pelas plantações. Os seus discípulos, que estavam com fome, puseram-se a arrancar espigas e a comê-las. Os fariseus, vendo isso, disseram: 'Olha lá! Os teus discípulos a fazerem o que não é lícito fazer num sábado!' Mas ele respondeu-lhes: 'Não lestes o que fez Davi e seus companheiros quando tiveram fome? Como entrou na Casa de Deus e como eles comeram os pães da proposição, que não era lícito comer, nem a ele, nem aos que estavam com ele, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não lestes na Lei que com os seus deveres sabáticos os sacerdotes no Templo violam o sábado e ficam sem culpa? Digo-vos que aqui está algo maior do que o Templo. Se soubésseis o que significa: Misericórdia é que eu quero e não sacrifício, não condenaríeis os que não têm culpa. Pois o Filho do Homem é senhor do sábado."[Mateus 12:1-8]
O judaísmo de referência talmúdica, bem como o cristianismo de matriz católico-ortodoxa, é o resultado da tradição oral e da tradição escrita. O que isso quer dizer? Que nem de longe todas as coisas que se referem às práticas, conceitos e liturgias destas religiões se encontram no corpo central de seus textos sagrados (a bíblia cristã e o tanack judaico). Existe uma tradição oral que circunda estes textos, bem como também uma tradição escrita que lhe dá suporte. No caso do judaísmo, a maior parte dessa tradição oral foi compilada entre os séculos II e V d.C., através da Mishnah (lei oral) e da Gemara (comentários e adições à lei oral). Posto isso, no caso do judaismo, devemos entender que estes textos se referem basicamente aos comentários e interpretações acerca das instruções básicas da Torah. É o resultado de um processo secular de discussões orais e registros antigos escritos sobre as formas pelas quais a Torah deveria ser interpretada e seguida. Em um dado momento cujo registro histórico é impossível remontar precisamente, mas certamente em um período anterior ao século I a.C., alguns grupos judaicos se deram conta de que "nem tudo" se encontrava no texto bíblico e que outras especificações normativas se faziam necessárias, dada a ambiguidade ou insuficiência formal do corpus jurídico contido nas prescrições da Torah (as chamadas 613 mitzvot ) no que toca ao exame das variadas casuísticas legais.
Neste sentido, os 39 melakhot proibidos no shabbat são o resultado deste processo da tradição oral e das discussões haláquicas (sobre a interpretação da lei). Algumas dessas proibições se encontram diretamente no texto bíblico e as demais são resultantes do secular debate e interpretação dos sábios judeus [notadamente dos perushim (fariseus) "separados"] acerca das ordenanças de Iahweh. Os melakhot são normalmente traduzidos para o português como “trabalhos”, mas a melhor tradução seria a de “esforços criativos”. Neste sentido, a essência de tais proibições se encontra na idéia da cessação destes esforços criadores. Mas enfim, as 39 melakhot podem ser, todas elas, encontradas no texto bíblico? Não. Como já foi dito, eles são o resultado da tradição escrita da Torah e do Tanakh, bem como da tradição oral dos perushim. De qualquer forma, algumas das melakhots estão diretamente mencionadas no texto bíblico. Dentre elas, podemos citar para o nosso caso específico a mais central de todas: Êxodo 34,21: “Seis dias trabalharás; mas no sétimo descansarás, quer na aradura, quer na colheita”
Poder-se-ia argumentar, como fizeram os fariseus no incidente das espigas, que os discípulos de Jesus quebraram o repouso sabático ao colherem as espigas. Quais seriam os pontos que deveríamos destacar inicialmente neste episódio?
a) Deuteronômio 23,26 dá sustentação à prática dos discípulos no sentido de não qualificá-la como um roubo. Era permitido colher espigas com a mão no terreno de um vizinho. Não se poderia era usar um instrumento como uma foice para a realização da colheita. Neste sentido, nada fizeram de errado com relação à Lei;
b) Jesus não se envolve diretamente no incidente da colheita. Ele não participa dela. Atua no episódio como um contendor haláquico contra-argumentando as acusações dos fariseus. De qualquer forma, a atividade supostamente ilegal de seus discípulos lhe é imputada;
c) O relato de Mateus nos mostra que os discípulos se encontravam em uma situação de fome. Não temos informação suficiente sobre o contexto geral que os levou a tal fome. Mas é plausível supormos que se encontravam em situação de penúria, dado o recurso de recorrer a tal procedimento. Ou seja, nos é custoso atentar para a idéia de que os mesmos fizeram tal ato como uma "situação de normalidade cotidiana". Ora, Jesus conhecia muito bem as escrituras, sabia do problema, e não os teria orientado a agir de tal forma, se não houvesse uma necessidade premente gerada pela fome;
d) Jesus utiliza duas estratégias argumentativas no episódio, segundo Marcos: "precedente legal ligado à Davi e os pães de proposição" e "essência da Lei quanto ao sábado como tendo sido feito 'para o homem'. Já o relato de Lucas "recorta" a expressão genérica sobre a função do sábado ligada ao homem, deixando somente pela expressão ligada ao senhorio do Filho do Homem sobre o sábado.
e) Em acréscimo ao exposto por Marcos quanto à jurisprudência no "caso Davi", em Mateus, Jesus apela também para o precedente jurídico ligado às atividades dos Sacerdotes no Shabbat. Apela novamente para a oposição essência/legalismo na questão dual entre "misericórdia/sacrifício". Por fim, estabelecendo uma ligação funcional entre a atividade dos apóstolos e a dos sacerdotes do Templo, Jesus toma para si a função messiânica ao se portar como a escatológica figura do "Filho do Homem"[1] (tendo, pois, a partir de tais analogias, a prerrogativa de ser o "Senhor do Sábado", desconectada da expressão generalista de que o "sábado foi feito para o homem", tal como em Lucas).
A exposição de Marcos, muito mais primitiva (e, provavelmente, mais fiel ao acontecido), pode ser encarada como uma argumentação centrada na precedência da saúde (vida) em função do mitzvot negativa da proibição do trabalho no shabbat. Ou seja, Jesus justifica o ato de seus discípulos pelo conceito de que o Shabbat deve servir ao homem e não o inverso. Ele cita o evento ocorrido com Davi para exemplificar que o ocorrido teve um precedente jurídico anterior. Ele reconhece a proibição, reconhece o ilícito da mitzvot, mas confronta-a com a mitzvot positiva. Saciar a fome dos discípulos seria um ato de dar sentido ao repouso prometido por Iahweh no Shabbat. O princípio vital antecederia a restrição imposta pela melakhot. De fato, o esperado era que os discípulos seguissem as ordenaças de Êxodo 16:29, quando assim é dito: "Vede, porquanto o Senhor vos deu o sábado, portanto ele no sexto dia vos dá pão para dois dias; cada um fique no seu lugar, ninguém saia do seu lugar no sétimo dia." No entanto, tal mitzvot é vaga no que toca à situações de penúria e fome extrema. Sabemos que o movimento de Jesus era, por sua própria natureza, pobre, desprovido de recursos, e tipicamente itinerante. Ou seja, se em tese, os discípulos deveriam ter provido sua alimentação para o Shabbat no dia anterior, na prática, não sabemos a quais situações de escassez eles se encontraram na citada passagem. A argumentação de Jesus busca então sustentar a idéia de que o "saciar da fome" não quebra o Shabbat.
O relato lucano nos informa mais claramente qual foi o tipo de ação realizada pelos discípulos. Se em Marcos, os discípulos, "abriam caminhos, arrancando espigas", Lucas nos conta que os discípulos: a) arrancavam as espigas; b) as comiam; e c) as debulhavam com as mãos. O argumento do texto lucano é baseado também sobre Davi e os pães da proposição. Porém, ele apresenta em sua narrativa a estratégia argumentativa da autoridade escatológico-messiânica ligada às tradições sobre o Filho do Homem, desconectada da expressão: "O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado". O texto de Lucas é o mais sintético dos três em sua parte final. Mas quer nos parecer que tal síntese não se deu pelo primitivismo dos registros, mas por uma estratégia de corte e ênfase na autoridade messiânica de Jesus. Ao fazer tal suposta redução, o discurso de Jesus acaba se voltando muito mais para o público cristão que lê o seu evangelho e se consola com o fato de que Jesus tinha a autoritas necessária se colocar acima das restrições do Shabbat, como liderança messiânica. Ora, se tal argumento faz completo sentido para um público cristão, ele é basicamente nulo para o público fariseu com o qual Jesus debatia. Seria algo como um argumentum magister dixit, centrado apenas em uma autoridade à qual os fariseus não reconheciam. Neste sentido, acreditamos que tal assertiva, isolada, não se referia a um verdadeiro dito de Jesus no suposto debate com os fariseus. Nesta controvérsia, em termos argumentativos, o complemento sobre o "Filho do Homem", deveria vir precedido pela afirmação geral sobre "o sábado ter sido feito para o homem".
Por fim, a estratégia de Mateus já é bem mais complexa. Ela é uma versão mais elaborada do discurso lucano. Inicialmente, ele nos informa claramente sobre a razão que moveu a ação dos discípulos. Eles estavam com fome. Aquilo que está supostamente implícito no texto de Marcos e Lucas, ganha aqui a sua explicitação. Mateus coloca no campo do debate um argumento mais refinado que se refere à própria afirmação da Ecclesia de Jesus como um estágio superior do exercício sacerdotal. O plano da exposição se situa agora na estratégia de desdém à capacidade cognitiva dos fariseus, incapazes de verem ali à sua frente o exercício sacerdotal dos discípulos de Jesus [em analogia com os sacerdotes do Templo] e incapazes de perceber a misericórdia divina agindo sobre os apóstolos em um nível que ultrapassaria o 'nível ritualístico' do 'estágio "sacrificial"/legalista das práticas associadas ao formalismo da interpretação da letra na Torah. Novamente, temos aqui uma brilhante exposição argumentativa a qual, no seu conjunto, não só "livra" os apóstolos da culpa, quanto demonstra que tanto Jesus quanto seu grupo se encontram em um nível superior [escatológico-sacerdotal] e que não podem ser tratados no mesmo nível de pessoas ordinárias. Da mesma forma como vimos no caso, de Lucas, encaramos tal estratégia como uma manobra do evangelista que se sobrepõe e amplia sobremaneira a estratégia concreta do Rabi Jesus em confronto com seus oponentes fariseus.
Contexto judaico e interpretação da Lei
Para nos ajudar a destrinchar este cenário complexo no sentido de melhor situá-lo no contexto histórico do judaísmo do Segundo Templo, optamos deliberadamente pela consulta à pesquisadores e historiadores de origem judaica. Não que haja algum problema com acadêmicos não-judeus para o tratamento do tema em tela. Mas neste caso específico de um problemática tão sutilmente ligada aos desenvolvimentos da halachá, acreditamos que o "olhar judaico" nos será mais apurado para a investigação.
De acordo o ponto de vista de David Flusser, este seria o único caso de quebra da Lei relacionado a Jesus e registrado nos evangelhos sinóticos. Neste sentido, abriremos aqui um pequeno parêntese. A tradição dos sinópticos tende a nos mostrar um Jesus tipicamente comprometido com a observância da Lei, apesar de sua peculiar interpretação do sentido de sua essência. Nos sinópticos, o evento mais explicitamente controverso seria exatamente este sobre o qual tratamos neste artigo. Na tradição da literatura joanina exposta no evangelho de João, no entanto, teríamos alguns outros problemas tais como a referência à cura do enfermo na piscina de Betesda no capítulo 5 de João. Neste incidente, Jesus não poderia ter ordenado ao enfermo que carregasse o seu leito após a cura como o fez em João 5:8. "Disse-lhe Jesus: 'Levanta-te, toma teu leito e anda!" Imediatamente o homem ficou curado. Tomou o leito e se pôs a andar." Jesus poderia ter curado o homem no sábado. Mas não poderia ter ordenado a este para que carregasse seu leito, tal como pela lei exposta em Jeremias 17, 21-22. Ele não poderia carregar peso neste dia. Ademais, neste mesmo capítulo o evangelista assim menciona: "Então os judeus, com mais empenho, procuravam matá-lo, pois, além de violar o sábado, ele dizia ser Deus seu próprio pai, fazendo-se assim igual a Deus." [Jo 5:18] Não nos cabe aqui neste nosso texto entrarmos no mérito destas outras controvérsias ligadas ao evangelho de João. No entanto, para que fique clara a nossa posição, acreditamos que este tardio evangelho se encontra já em um clima de profunda e mútua desconfiança entre a comunidade joanina e os fariseus da Sinagoga, fazendo com que diversos traços desta oposição apareçam já em uma oposição doutrinária de Jesus frente à Lei. De qualquer forma, retomando Flusser (e encerrando este pequeno parêntese), assim temos a sua análise sobre o incidente com os discípulos:
"Por consenso geral, no sábado era permitido apanhar espigas que haviam caído e debulhá-las com os dedos. Segundo Rabi Yehudá, também da Galiléia, era até permitido debulhá-las com as próprias mãos. Alguns fariseus criticaram os discípulos de Jesus por comportar-se de acordo com sua tradição galiléia. O tradutor grego do original não estava evidentemente familiarizado com os costumes do povo. Com o fito de tornar a cena ainda mais vívida, acrescentou a declaração sobre a colheita das espigas de trigo, introduzindo, desta maneira, o único ato de transgressão da Lei registrado na tradição sinótica." [FLUSSER, David. Jesus. São Paulo: perspectiva, 2002, p.37.]
Ao ver do autor, o relato de Lucas seria o mais fidedigno. A prática de apanhar as espigas caídas no chão não era um problema. Tal ato era sancionado. A problemática se encontraria no ato da colheita. Como expusemos anteriormente, acreditamos estar em Marcos o registro mais primitivo deste relato. Neste sentido, modestamente, divergimos de Flusser. No entanto, ele nos é importante para introduzir em nossa estória um primeiro elemento rabínico para compreendermos melhor o zeitgeist judaico no qual nos encontramos. Flusser afirma que de fato verificou-se uma quebra de mitzvot naquele momento. Os discípulos não poderiam "colher" as espigas. Por outro lado, Jesus efetivamente não confrontou os fariseus no sentido de afirmar algo como um "sim, a Lei permitia genericamente tal ato." A estratégia argumentativa de Jesus, tal como relatada Marcos, é a de mostrar que os princípios vitais do ser humano se sobrepõem e anulam a culpabilidade da restrição negativa da mitzvot.
Em seu livro Jesus e Israel, Jules Isaac nos cita também o rabi Yehudá. Assim ele comenta:
"Está dito na Guemará (Sabbat, 128 ab): 'É permitido arrancar com a mão e comer em dia de sábado, mas não é permitido arrancar com um instrumento.' Estas são palavras de Rabi Judah [Le Sabbat, textes de la Mischnah, trad. fr., p. 72] [...] Jesus toma nitidamente posição, não contra a Lei, nem mesmo contra as práticas rituais, mas contra a desmesurada importância que lhes atribuíam certos doutores fariseus, nem mesmo contra o farisaísmo, mas contra certas tendências do farisaísmo, sobretudo aquelas que levava a antepor a letra ao espírito." [ISAAC, Jules. Jesus e Israel. São Paulo: Perspectiva, 1986, p.62.]
Isaac vai de encontro ao proposto por Flusser. Para ele, não haveria conflito algum com relação à Lei, mas apenas um confronto com relação ao rigor interpretativo de algumas algumas tendências específicas do farisaísmo. Esta proposição final nos será muito importante para o argumento que desenvolveremos mais à frente.
Geza Vermes nos mostra uma contextualização interessante para o nosso caso. Segundo ele, trata-se tipicamente de uma discussão sobre "filigranas" interpretativas. Judeus liberais, inclusive do século Id.C., dariam relevância quase nula ao caso. No entanto, tal como Flusser, Vermes encontra justificativa na Mishna para o comportamento dos fariseus.
"O relato dos discípulos famintos de Jesus arrancando e comendo espigas no sábado fornece o material dessa história de controvérsia. Judeus liberais de todas as épocas considerariam essa questão trivial. A ação dos discípulos certamente não chegava a roubo (ver Dt 23,25). Não obstante os legistas rabínicos e sem dúvida pré-rabínicos consideravam a respiga uma subcategoria da colheita, a qual , juntamente com outras trinta e oito atividades, a Mishná proibia especificamente durante o sábado (mShab 7,2). [VERMES, Geza. O autêntico evangelho de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 68]
Por outro lado, se houve de fato a quebra do Shabbat, Vermes nos atenta para vertentes rabínicas que dariam plena sanção ao ato dos discípulos e à argumentação feita por Jesus. Assim:
[...] O judeu não é um escravo do sábado, anunciam os rabis. Ao contrário: 'O sábado vos foi entregue, e não vós ao sábado" (Mekilta de R. Ismael sobre Êxodo 31, 14). Salvar vidas, particularmente, sempre foi prioridade absoluta, e um homem tem permissão para profanar um sábado para poder observar muito mais. (ibid., sobre Êxodo 31,16)" [VERMES, Geza. O autêntico evangelho de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 69.]
Em acréscimo, como também nos fala outro basilar historiador judeu, Joseph Klausner, a resposta de Jesus no incidente das espigas foi tipicamente uma resposta partilhada pela tradição farisaica.
"Em sua vida prática, Jesus também se conduziu como um fariseu: ao partir o pão, em sua cuidadosa observância da bendição do pão e do vinho, e inclusive na questão do Shabat, fez a cena da Páscoa e disse o 'Grande Hallel'. Ao permitir aos seus que discípulos que no dia do sábado recolhessem espigas, se defendeu aduzindo que Davi havia comido os pães da propriação e que durante o Shabat se consumavam sacrifícios no Templo; disse que "O dia do repouso foi feito por causa do homem e não o homem por causa do dia de repouso" Mateus 12:1-5; Marcos 2:23-27). Exatamente do mesmo modo, mediante este argumento a fortiori, partindo dos sacrifícios no Templo e do fato de que Davi havia comido dos pães da propriação (em Y'lam'denu, Ialkut II, § 130) os fariseus demonstravam que as necessidades da vida estão acima das restrições do Shabat, e diziam também que "O Shabat foi dado a vocês e não vocês ao Shabat" (R. Simeón ben Menasia - um dos tanaím mais antigos - em Mefilta sobre Exodo 31, 14, começo de 1, pág. 92." [trad. própria][KLAUSNER, Joseph. Jesus de Nazareth: su vida, su época, su enseñanzas. Barcelona: Paidos, 1989, p. 116.]
Por fim, após inicialmente apresentar o incidente das espigas como uma violação do Shabbat, Flusser (2002, p.40), concordando com Vermes, assim comenta:
A partir deste momento, nos encontramos mais aptos para bem situar a controvérsia. Jesus não era um fariseu. Ele não pertencia a uma escola rabínica. No entanto, ele era um mestre letrado e conhecedor das escrituras. Ele possuía formação rabínica. Teve contato com os doutores da Lei e, a nosso ver, foi tipicamente influenciado por uma das duas principais escolas farisaicas, a Beit Hillel [2]. Ele não se portou necessariamente sempre como um fariseu, tal como sustenta Klausner, mas em vários contextos o encontramos agindo como um em suas discussões haláquicas. O contexto da controvérsia com os fariseus é tipicamente isso: "uma controvérsia entre fariseus". Jesus, apesar de não sê-lo, atuava como tal, defendendo seus seguidores, tal como provavelmente Hillel o faria em confronto com os de Shammai. Esta segunda escola farisaica tradicionalmente assumia uma postura mais estrita e rigorosa quanto à interpretação da Torah, atendo-se mais à literalidade do texto. Já a tradição de Hillel é mais liberal, procurando analisar a Torah a partir da essência dos seus conteúdos. Para compreendermos melhor a oposição entre as duas escolas, poderíamos citar este trecho da Jewish Encyclopedia:
"Seu discurso acerca da pureza e da impureza é quase uma peça de sabedoria moral popular e as palavras de Jesus, na discussão sobre as espigas no Schabat, harmonizam-se plenamente com as concepções dos escribas moderados." [FLUSSER, David. Jesus. São Paulo: perspectiva, 2002, p.40.]
A partir deste momento, nos encontramos mais aptos para bem situar a controvérsia. Jesus não era um fariseu. Ele não pertencia a uma escola rabínica. No entanto, ele era um mestre letrado e conhecedor das escrituras. Ele possuía formação rabínica. Teve contato com os doutores da Lei e, a nosso ver, foi tipicamente influenciado por uma das duas principais escolas farisaicas, a Beit Hillel [2]. Ele não se portou necessariamente sempre como um fariseu, tal como sustenta Klausner, mas em vários contextos o encontramos agindo como um em suas discussões haláquicas. O contexto da controvérsia com os fariseus é tipicamente isso: "uma controvérsia entre fariseus". Jesus, apesar de não sê-lo, atuava como tal, defendendo seus seguidores, tal como provavelmente Hillel o faria em confronto com os de Shammai. Esta segunda escola farisaica tradicionalmente assumia uma postura mais estrita e rigorosa quanto à interpretação da Torah, atendo-se mais à literalidade do texto. Já a tradição de Hillel é mais liberal, procurando analisar a Torah a partir da essência dos seus conteúdos. Para compreendermos melhor a oposição entre as duas escolas, poderíamos citar este trecho da Jewish Encyclopedia:
"A razão atribuída para as suas respectivas tendências é a psicológica. Os Hillelitas eram, como o fundador de sua escola (Ber. 60a;. Shab 31a;... Ab i 12 e segs), tranquilos homens, amantes da paz, acomodando-se às circunstâncias e tempos, e sendo determinados apenas em promover a lei e trazer o homem mais perto de seu Deus e ao seu próximo. Os Shammaitas, por outro lado, severos e inflexíveis como o autor da sua escola, emulando-o e até mesmo excedendo-o sua severidade. Para eles, parecia impossível ser suficientemente rigoroso em proibições religiosas. Os discípulos de Hillel, "o seguidor devoto e suave de Ezra" (Sanh 11a), evidenciavam em todas as suas relações públicas, a tranqüilidade, gentileza e espírito conciliador que tinha distinguido o seu grande mestre, e pelas mesmas qualidades características eles foram guiados durante as tempestades políticas que convulsionaram o país. Os Shammaitas, pelo contrário, eram intensamente patrióticos, e não cediam à dominação estrangeira. Eles defenderam a interdição de toda e qualquer relação sexual com todos que eram romanos ou de alguma forma contribuíram para o avanço do poder ou influência romana. Disposições tão heterogêneas e antagônicas normalmente não podem ser suportadas lado a lado sem provocar mal-entendidos graves e inimizades, e era devido apenas à paciência dos Hillelitas "que as partes não entraram em conflito, e que mesmo as relações de amizade continuou entre eles (Tosef., Yeb i 10;... Yeb 14b; Yer Yeb i 3b), por um tempo, pelo menos.... Mas as vicissitudes do período exerceram uma influência perniciosa também nessa direção." [Trad. própria]
Como é possível perceber, o tipo de discussão verificado entre Jesus e os "fariseus" foi, na verdade, uma discussão com "um grupo específico dos fariseus". Os conflitos entre Hillelitas e Shammaitas era intenso, por vezes, chegou ao uso da violência. O contexto da controvérsia sobre as espigas é tipicamente judaico e Jesus faz uma interpretação haláquica sobre o sentido do “trabalho” no Shabbat. A questão é: "que farisaismo é este que confrontou Jesus neste episódio?" Na interpretação de Jesus, a preservação da vida [através da alimentação] precede o Sábado. Por isso, “o homem deve vir antes do sábado”. Por que tal assertiva foi feita? Porque os fariseus [tipicamente da escola de Shammai] eram aferrados ao formalismo da letra e provavelmente observavam essa ação dos apóstolos como a “quebra do Shabbat”. Teria um fariseu da Beit Hillel ["Academia de Hillel"] confrontado Jesus com tais assertivas? Certamente não, pois tal escola afirmava, de forma análoga ao dito por Jesus: "É lícito violar um Shabat para que muitos outros possam ser observados; as leis foram dadas para que o homem vivesse por elas, não para que o homem morresse por elas." Neste sentido, temos:
a) A frase acerca do "sábado ter sido feito para o homem e não o homem para o sábado" aparece em material rabínico (Mekilta 103b, Tosefta Yoma 85b);
b) Em acréscimo, a citação de Oséias 6:6 era tipicamente usada pelas rabinos em sua argumentação para afirmar que ajudar pessoas era sempre mais importante do que a observância rígida das regras e costumes (Sukkah 59b, Deuteronômio Rabba em 16:18, etc.)
c) Está também dito na Gemara pelo galileu rabi Yehudá
(Sabbat, 128 ab): 'É permitido arrancar com a mão e comer em
dia de sábado, mas não é permitido arrancar com um instrumento.' , como mostraram David Flusser e Jules Isaac.
d) Por fim, como pontuou Klausner, o exato mesmo argumento de Jesus foi utilizado por um dos mais antigos mestres Tanaim, o Rabi Simeón ben Menasia [em Mefilta sobre Exodo 31, 14] sobre a questão de Davi e os pães da propriação, denotando a superioridade da preservação da vida sobre a mitzvot negativa.
Ou seja, em termos sintéticos, exatamente toda a argumentação de Jesus encontra respaldo na tradição da escola de Hillel, na Mishnah, na Gemara e na tradição rabínica correlata. A interpretação haláquica de Jesus se refere à essência da Lei e à preservação da vida, elementos que se sobrepõem às restrições negativas das mitzvot do Shabbat. Enquanto os fariseus de Shammai se atinham ao formalismo da letra, o fariseu Hillel e o rabi Jesus focavam sua atenção na essência viva da Torah. Sendo assim, Jesus se comportou tipicamente como rabi, conhecedor da Lei, da tradição e das escolas de pensamento judaicas.
Sobre os fundamentos jurídicos
A mishna e a gemara servem como arcabouço de jurisprudência para o judaismo rabínico, descendente do movimento político farisaico do primeiro século. Ali encontramos basicamente a exposição e o enfrentamento das escolas rabínicas sobre a Torah escrita e sobre as tradições da Torah oral. Frequentemente encontramos posições diversas e tecnicamente mutuamente excludentes dos mestres judaicos. O contraditório não é ali algo a ser visto como necessariamente problemático. São discussões hermenêuticas sobre casos em litígio e sobre os quais a Torah não tipifica de forma clara. No incidente dos discípulos, a Lei era clara e a Mishna também. Em termos gerais, os discípulos não poderiam praticar tal ato. No entanto, a argumentação feita por Jesus buscou na jurisprudência bíblica a sanção para tal e também na interpretação haláquica de que a preservação da vida humana é de fato a essência do descanso sabático. Jesus buscou o fundamento da Lei, a essência de sua raison d'être . Deuteronômio 5:15 menciona a escravidão no Egito como a razão por trás do descanso sabático ordenado por Iahweh. O descanso seria, pois, um memorial deste período e uma afirmação da libertação alcançada de tal relação de senhorio imposta pela escravidão. Ao afirmar que "O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado", a interpretação haláquica de Jesus reconduz o Shabbat à sua função. No rigor interpretativo da letra, a acusação farisaica faria com que os discípulos se escravizassem ao sábado pela fome, relembrando a o penoso tempo no Egito. A defesa de Jesus vai ao fundamento da Lei e retoma seu significado primeiro que é o da libertação do penoso trabalho e o repouso. A guarda do Shabbat é uma ordenança de Iahweh em memória à liberdade. Ela deve funcionar como tal. Ora, qual é o repouso que tem o esfomeado? A escravidão de sua fome? Deve, pois, a renúncia às necessidades vitais se fazer em função de uma lei cuja essência é a própria preservação das faculdades vitais e a celebração da liberdade? Indo, pois, ao fundamento da Lei, Jesus a recoloca em seu devido lugar.
Levítico 18:5 assim diz: "Eu sou Iahweh vosso Deus. Guardarei os meus estatutos e as minhas normas: quem os cumprir encontrará neles a vida." Jesus aplica o conceito contido nesta passagem de que os judeus deveriam encontrar o princípio da vida no cumprimento da Torah. O cumprimento do estatuto deve conduzir à vida e não à negação dos princípios de sua sustentabilidade. Aplicou na defesa dos discípulos, assim, o princípio jurídico do Pikuach Nephesh, (literalmente "perigo à alma"), ou seja, o princípio de que a preservação da vida se sobrepõe a qualquer estatuto formal da Torah. O cumprimento da essência dos mandamentos deve conduzir à vida. Sendo assim, a exigência de rigor no cumprimento da letra acabaria por se constituir na própria negação do espírito da Torah. Ao se utilizar do precedente jurídico sobre Davi, Jesus apelou para o princípio do Pikuah Nephesh, demonstrando que os discípulos de fato não incorriam em violação da Lei. Neste sentido, por mais paradoxal que possa parecer a alguns, Jesus se comportou tipicamente como um perushim (fariseu). Seguindo a herança da tradição de Hillel, ele buscou os princípios e os fundamentos que dão sentido às mitzvot. Como procuramos mostrar, todos os elementos de sua defesa podem ser encontrados na tradição rabínica. Dessa forma, o caso das espigas de trigo não pode ser encarado como o exemplo de um Jesus desviante das tradições judaicas de seu tempo, como um outsider. Inversamente, a controvérsia tipicamente nos mostra um Jesus plenamente inserido em uma tradição de debates haláquicos que viriam a se constituir posteriormente na formalização escrita da Mishna e da Guemara.
Em defesa da alegação farisaica, poder-se-ia argumentar que o princípio do Pikuach Nephesh não poderia ser utilizado para defender os discípulos, dado que os mesmos não passavam por um "perigo de vida". Inicialmente, deve-se ressaltar que tal princípio, em termos históricos, não se referiu necessariamente à pessoas que se encontravam à beira da morte. Além disso, da mesma forma, Davi e seus homens não estavam à beira da morte. Por fim, qualquer especulação referente ao estado de saúde dos discípulos é "mera especulação". O que sabemos pelo texto de Mateus é que passavam por fome. Sugerimos inicialmente que tal situação poderia ser uma situação limítrofe, dado o perfil de pobreza itinerante do grupo dos seguidores de Jesus. Esta é uma caracterização bem plausível, no entanto, se observarmos os relatos gerais do evangelho. Em vários momentos, encontramos problemas de escassez alimentícia. Mateus 15:32 é um destes exemplos: "Jesus, chamando os discípulos, disse: "Tenho compaixão da multidão, porque já faz três dias que está comigo e não tem o que comer. Não quero despedi-la em jejum, por receio de que possa desfalecer pelo caminho". Por outro lado, os discípulos colheram as espigas e isso implica que tiveram a força necessária para fazê-lo. Mas Davi também teve tal força ao solicitar os pães da proposição, quando teve fome. A alegação de que os discípulos poderiam ficar mais um dia sem comer, ultrapassando o Shabbat, é apenas uma especulação que não possui substrato formal na perícope específica, no texto geral dos evangelhos, e no precedente da jurisprudência davídica. Dos evangelhos, em geral, o que podemos notar é uma recorrente situação de peregrinação, limitação alimentícia e uma notória preocupação de Jesus em alimentar aqueles que com ele estavam.
No que toca à comunidade dos essênios, uma passagem do Documento de Damasco nos mostra uma restrita posição deste grupo no que toca à alimentação no Shabbat:
O Livro dos Jubileus, um documento muito usado pela comunidade de Qumran também assim menciona:
Aparentemente para os essênios, somente o alimento previamente preparado poderia ser ingerido no dia do Shabbat. Nada que fosse encontrado caído pelo campo poderia ser ingerido. Não sabemos, no entanto, se haveria alguma possibilidade diversa em caso de fome extrema. No entanto, há de se ressaltar que os essênios eram os mais rigorosos na observância deste dia.
Se os discípulos de Jesus fossem membros da yahad de Qumran, provavelmente eles teriam sérios problemas. O caso referente à controvérsia de Jesus e os fariseus, no entanto, não poderia ser analisado a partir da halachá essênia, dado que este era um partido alienígena à controvérsia em tela [Seguidores de Jesus versus Fariseus]. No entanto, tal perspectiva nos ajuda à sofisticar a análise dentro de um quadro que busca nos projetar uma imagem das tradições judaicas do período no qual Jesus viveu. Buscando ampliar este quadro, procuraremos agora tecer algumas considerações críticas sobre o problema das "tradições judaicas".
Levítico 18:5 assim diz: "Eu sou Iahweh vosso Deus. Guardarei os meus estatutos e as minhas normas: quem os cumprir encontrará neles a vida." Jesus aplica o conceito contido nesta passagem de que os judeus deveriam encontrar o princípio da vida no cumprimento da Torah. O cumprimento do estatuto deve conduzir à vida e não à negação dos princípios de sua sustentabilidade. Aplicou na defesa dos discípulos, assim, o princípio jurídico do Pikuach Nephesh, (literalmente "perigo à alma"), ou seja, o princípio de que a preservação da vida se sobrepõe a qualquer estatuto formal da Torah. O cumprimento da essência dos mandamentos deve conduzir à vida. Sendo assim, a exigência de rigor no cumprimento da letra acabaria por se constituir na própria negação do espírito da Torah. Ao se utilizar do precedente jurídico sobre Davi, Jesus apelou para o princípio do Pikuah Nephesh, demonstrando que os discípulos de fato não incorriam em violação da Lei. Neste sentido, por mais paradoxal que possa parecer a alguns, Jesus se comportou tipicamente como um perushim (fariseu). Seguindo a herança da tradição de Hillel, ele buscou os princípios e os fundamentos que dão sentido às mitzvot. Como procuramos mostrar, todos os elementos de sua defesa podem ser encontrados na tradição rabínica. Dessa forma, o caso das espigas de trigo não pode ser encarado como o exemplo de um Jesus desviante das tradições judaicas de seu tempo, como um outsider. Inversamente, a controvérsia tipicamente nos mostra um Jesus plenamente inserido em uma tradição de debates haláquicos que viriam a se constituir posteriormente na formalização escrita da Mishna e da Guemara.
Em defesa da alegação farisaica, poder-se-ia argumentar que o princípio do Pikuach Nephesh não poderia ser utilizado para defender os discípulos, dado que os mesmos não passavam por um "perigo de vida". Inicialmente, deve-se ressaltar que tal princípio, em termos históricos, não se referiu necessariamente à pessoas que se encontravam à beira da morte. Além disso, da mesma forma, Davi e seus homens não estavam à beira da morte. Por fim, qualquer especulação referente ao estado de saúde dos discípulos é "mera especulação". O que sabemos pelo texto de Mateus é que passavam por fome. Sugerimos inicialmente que tal situação poderia ser uma situação limítrofe, dado o perfil de pobreza itinerante do grupo dos seguidores de Jesus. Esta é uma caracterização bem plausível, no entanto, se observarmos os relatos gerais do evangelho. Em vários momentos, encontramos problemas de escassez alimentícia. Mateus 15:32 é um destes exemplos: "Jesus, chamando os discípulos, disse: "Tenho compaixão da multidão, porque já faz três dias que está comigo e não tem o que comer. Não quero despedi-la em jejum, por receio de que possa desfalecer pelo caminho". Por outro lado, os discípulos colheram as espigas e isso implica que tiveram a força necessária para fazê-lo. Mas Davi também teve tal força ao solicitar os pães da proposição, quando teve fome. A alegação de que os discípulos poderiam ficar mais um dia sem comer, ultrapassando o Shabbat, é apenas uma especulação que não possui substrato formal na perícope específica, no texto geral dos evangelhos, e no precedente da jurisprudência davídica. Dos evangelhos, em geral, o que podemos notar é uma recorrente situação de peregrinação, limitação alimentícia e uma notória preocupação de Jesus em alimentar aqueles que com ele estavam.
No que toca à comunidade dos essênios, uma passagem do Documento de Damasco nos mostra uma restrita posição deste grupo no que toca à alimentação no Shabbat:
"Ninguém deve comer no dia do Shabbat nada que não tenha sido preparado com antecedência. Ele não deve comer nada que porventura tenha caído no campo, nem ele deve beber qualquer coisa que não tenha sido preparada no acampamento. Se, entretanto, ele estiver viajando, ele pode vir abaixo para se banhar e pode beber onde quer que esteja." [Documento de Damasco, Sobre o Shabbat - (x, 1~xi, 18)]
O Livro dos Jubileus, um documento muito usado pela comunidade de Qumran também assim menciona:
"Saiba e diga aos filhos de Israel a Lei desse dia: De que eles devem guardar o Sábado e que eles não devem perverter seus corações, e que não é permitido [legal] executar nenhum trabalho inconveniente, trabalhar pelo seu próprio prazer, e que não devem preparar nada para ser comido nem bebido, nem pegar água [do poço], e adentrar ou levar qualquer mercadoria pelos seu portões as quais eles não tenham preparado para si no sexto dia em suas habitações." [Livro dos Jubileus, 2:29]
Aparentemente para os essênios, somente o alimento previamente preparado poderia ser ingerido no dia do Shabbat. Nada que fosse encontrado caído pelo campo poderia ser ingerido. Não sabemos, no entanto, se haveria alguma possibilidade diversa em caso de fome extrema. No entanto, há de se ressaltar que os essênios eram os mais rigorosos na observância deste dia.
Se os discípulos de Jesus fossem membros da yahad de Qumran, provavelmente eles teriam sérios problemas. O caso referente à controvérsia de Jesus e os fariseus, no entanto, não poderia ser analisado a partir da halachá essênia, dado que este era um partido alienígena à controvérsia em tela [Seguidores de Jesus versus Fariseus]. No entanto, tal perspectiva nos ajuda à sofisticar a análise dentro de um quadro que busca nos projetar uma imagem das tradições judaicas do período no qual Jesus viveu. Buscando ampliar este quadro, procuraremos agora tecer algumas considerações críticas sobre o problema das "tradições judaicas".
Tradição judaica. É possível?
Um aspecto importante que devemos ressaltar, no entanto, ao falarmos sobre "tradição judaica" é o fato de ser esta uma questão que não possui resposta satisfatória no que toca ao período do judaísmo do Segundo Templo (se é que tal resposta satisfatória exista para algum outro período histórico da história do judaismo). Josefo nas suas Antiguidades Judaicas nos fala sobre a existência de quatro partidos entre os hebreus. Seriam eles os saduceus, os fariseus, os essênios e a até então recente "quarta filosofia" criada por Judas de Gamala. Poderíamos acrescentar ainda neste quadro a figura dos escribas e também dos herodianos. Em volta destas formas mais consolidadas, encontramos variado espectro de religiosidade popular através de grupos dispersos e lideranças carismáticas tais como o grupo de João Batista e os seguidos do chamado Egípcio, ou os de Jesus, o nazareno. De certa forma, podemos dizer que todas as primeiras 3 correntes políticas, nas configurações que se apresentavam no século I d.C., se originaram no período da Revolta dos Macabeus, dois séculos antes. Em termos estritos, poderíamos afirmar que a tradição das castas sacerdotais judaicas teve continuidade com os saduceus (continuidade esta radicalmente contestada pelo partido essênio). No entanto, segundo o relato de Josefo, o partido saduceu era elitista, sem maior apelo entre a população. Já o grupo fariseu havia tido maior sucesso em impor sua interpretação da Torah às populações do meio urbano na Judéia. Os essênios, tidos como os mais virtuosos e rigorosos no cumprimento da Lei [JOSEFO, Antiguidades Judaicas, Livro XVIII, cap.1, § 5; Flusser, 2002, p.38], viviam em um nível de maior isolacionismo, quer em sua postura ascético-monástica no Mar Morto, quer em seu semi-ascetismo urbano. No entanto, como vimos no início deste texto, os fariseus (perushim) eram os "separados". Buscavam se separar dos am ha-arez, ou seja, daqueles que não primavam pelo rigor na observância dos preceitos da Torah (quer escrita, quer oral). Este quadro tripartite que havia se constituído no século II a.C. acabou por se defrontar com uma situação adversa em 63 a.C. quando o reino foi conquistado pelo império romano. Neste contexto de domínio imperial, devemos observar o comportamento de tais grupos a partir desta perspectiva de colonização. Sociologicamente, a análise de tais grupos deve ser feita a partir de suas reações em função do regime de opressão que lhes coage."E em situação cultural em que um grupo minoritário está sob forte pressão da parte da sociedade dominante, a aculturação ocorre em diversos graus; as normas que são relaxadas e as normas que são intensificadas variam dentro do grupo minoritário. Essa espécie de variação ocorreu dentro da minoria judaica, com mútua alienação entre fariseus, saduceus, essênios e discípulos de Jesus. O resultado trágico foi que a tentativa de preservar a identidade judaica intensificando normas selecionadas levou à perda de identidade com o grupo inteiro, visto que as várias seitas intensificaram normas diferentes. Por exemplo, a ênfase extremada dos fariseus na pureza na vida diária, com a separação concomitante social e religiosa tanto dos romanos como do am ha-arez judeu, relacionava-se com esta perda potencial de auto-identidade." [STAMBAUGH, John E. O Novo Testamento em seu ambiente social. São Paulo: Paulus, 1996, p.95]
A situação de domínio e colonização impõe aos dominados a necessidade do desenvolvimento de estratégias político-culturais de sobrevivência e auto-afirmação. Os partidos, já anteriormente separados, acabaram por intensificar suas posições frente aos demais grupos em um processo progressivo de mútua alienação. Sob o imperialismo romano, a disputa exegética sobre a Toráh. não era apenas uma mera disputa normativa, mas uma disputa sobre estratégias de resistência cultural frente às instituições pagãs e ao monopólio do uso da violência por Roma estabelecido, ao que poderíamos parodiar como sendo o "roman way of life". A diferenciação grupal era, pois, amplificada em função das necessidades de auto-afirmação frente ao elemento impositivo externo. Nesta perspectiva, as estratégias poderiam ser tanto de relaxamento e acomodação social quanto de afirmação e enfrentamento. Poderíamos mencionar como tópico analítico, neste sentido, a principal fonte de controvérsias entre saduceus e fariseus, segundo Flávio Josefo:
Os saduceus rejeitavam a "Torah oral" dos fariseus e consequentemente todos os melakhots mencionados no início de nossa exposição que não eram encontrados na própria escritura da Toráh. Neste sentido, o grupo saduceu rejeitava a tradição oral como fonte canônica, se atendo apenas aos textos centrais da herança mosaica. Como menciona John Meyer,
A famosa "cerca à Toráh" (Torah shebe-'al peh), estratégia farisaica, era recusada pelo grupo dominante sacerdotal no século Id.C. Seu apelo único à normatividade da palavra escrita, no entanto, encontrava pouco apoio nas camadas populares da Judéia. Poderíamos defender a hipótese de que os fariseus ao disseminarem seu conhecimento através dos encontros semanais nas sinagogas pulverizadas pelo território judaico, bem como nas comunidades da diáspora acabaram por ter maior sucesso na divulgação de sua agenda político-religiosa do que os Saduceus, hierarquicamente centralizados na estrutura do Templo em Jerusalém. Nesta configuração de alienação mútua entre fariseus e saduceus estaria tipicamente demarcada uma situação limítrofe de conflito sobre o locus da herança da tradição judaica em sua relação com a Lei Mosaica. Os primeiros afirmando a existência de uma tradição oral normativa associada à Toráh e os saduceus negando completamente tal normatividade, afirmando como nomos apenas o núcleo-duro da herança escrita mosaica. A mútua oposição poderia ser encontrada também na crítica essênia ao método farisaico. Os essênios negavam também a existência de qualquer Torah oral derivada historicamente do Sinai. Como coloca Lawrence Schiffman:
Como visto, verificamos aqui uma questão metodológica. Enquanto os fariseus apelavam para uma suposta tradição dos antigos, os essênios derivavam seus demais preceitos paralelos à Toráh a partir de uma particular exegese "revelada". A metodologia farisaica, criticada pelos essênios era a de que eles derivavam suas leis através da dedução lógica, um método inaceitável para a yahad de Qumran (Schiffman, 2001, p,266). Os saduceus, responsáveis pelos serviços do Templo, lutavam por manter a estrutura de poder religioso coesa, evitando pretensões messiânicas oriundas da interpretação exegética dos textos proféticos e da tradição oral. Era uma estratégia de convivência política que se acomodava à estrutura de poder herodiana-romana voltada, no entanto, para a afirmação intensa da tradição escriturística já instituída. Ou seja, a afirmação única da normatividade da Toráh por parte dos saduceus era a afirmação do quadro político instituído, a afirmação "daquilo que não deve mudar". Já os fariseus encontravam na Torah oral não só um elemento de diferenciação social, mas também um elemento de resistência cultural-patriótica frente às instituições romanas. A estratégia essênia era a do isolacionismo e da oposição rígida entre luz (comunidade) versus trevas (romanos kittin e falsos ensinamentos dos saduceus (Manassés) e dos fariseus (Efraim). Neste quadro de mútuas controvérsias, a Toráh oral dos fariseus era rejeitada tanto pelos saduceus, quanto pelo partido essênio.
Outrossim, tal como vimos neste texto, não é possível tratarmos os fariseus a partir de um bloco monolítico de análise. Em certa medida, poderíamos pontuar os seguidores de Hillel e os seguidores de Shammai como facções muito distintas, apesar de fazerem parte de um mesmo partido. No entanto, quando se fala nesta estrita obsessão pelo rigor da letra na Torah, certamente devemos relacionar tal postura aos shammaitas. Tal postura não se enquadra no modelo hermenêutico hillelita. Historicamente, o primeiro grupo se portou politicamente em termos agressivos e nacionalistas enquanto que o segundo apresentava uma postura bem mais conciliadora. A intensificação das observâncias sobre pureza por parte do grupo de Shammai, pode ser entendida, (Vide: Stambaugh), como uma reação às ameaças externas à auto-identidade de seu grupo. Por outro lado, a caracterização do perfil psicológico das facções farisaicas deve ser também vista como um desdobramento do perfil pessoal de suas lideranças fundantes. No que toca à questão dos enfrentamentos entre Jesus e os fariseus, Mateus 15-1:11 nos mostra também uma crítica ao "muro da Toráh" e à tradição dos anciãos. "E assim invalidastes a Palavra de Deus por causa da vossa tradição" [Mt 15:6]
Dado o pluralismo político religioso do judaísmo do Segundo Templo, torna-se temeroso falarmos em "tradições judaicas". Cada grupo, em sua forma particular, atuava no se sentido de se apresentar como o legítimo representante da tradição ou como legítimo herdeiro desta tradição. Quando mencionamos o comportamento de Jesus no quadro da controvérsia sobre as espigas, procuramos mostrar que tal comportamento pode ser analisado a partir dos elementos encontrados no farisaísmo de Hillel e de seus desdobramentos no rabinato talmúdico posterior. Neste sentido estrito, pontuamos que a controvérsia das espigas, tal como vista em Marcos, poderia ser encarada como uma "controvérsia entre fariseus", podendo o incidente ser compreendido a partir desta tradição de controvérsias entre as correntes hillelita e shammaita.
Jesus não era fariseu, mas um Rabi independente galileu com seus próprios seguidores e notório apelo popular. Como tal, se defrontou com o grupo farisaico em diversas ocasiões. Sua auto-consciência messiânica se somava a uma forma particular hermenêutica muito mais voltada para a busca pela essência primeira dos fundamentos legislativos da Toráh. Ele conhecia e se utilizava dos ensinamentos da Beit Hillel a eles associando a sua liderança messiânica em determinados casos. Sua comensalidade aberta, suas curas no Shabbat e sua não-discriminação à determinados párias da sociedade judaica tal como mendigos, doentes, possuídos, prostitutas e publicanos entrava em choque explícito com a típica postura isolacionista essênia e dos fariseus "separados" de Shammai. Sua postura comensal inclusiva, sua prática piedosa de cura sabática e sua exegese das escrituras voltada ao sentido profundo da Lei se configuravam em sua estratégia de apresentação do "Reino de Deus" como já presente entre os judeus. Tal estratégia inclusiva, pode também, ser vista como forma política de afirmação grupal frente à dominação romana e ao formalismo ritual saduceu junto ao Templo e ao formalismo exegético dos de Shammai (e suas regras de pureza). No que toca ao incidente das espigas, o recurso à jurisprudência davídica anuncia também uma certa excepcionalidade casuística ligada ao novo reino messiânico que se está a instaurar em Israel por parte da comunidade dos discípulos de Jesus. Já o relato de Mateus, a nosso ver, reflexo maior das controvérsias farisaico/cristãs após o Segundo Templo, pode ser compreendido também neste quadro de busca pela afirmação por parte do grupo nazareno das prerrogativas de continuidade da herança sacerdotal (além da herança da realeza), agora apresentada a partir da atividade apostólica.
Desta forma, Mateus ultrapassa a mera apresentação de Jesus como um arguto mestre da Lei, bem capaz de defender a ação de seus discípulos, mas inverte as ações no campo de batalha retórica, desqualificando os oponentes e situando a controvérsia em um plano no qual o mestre da Lei é também posto como o amálgama entre as figuras do Messias-rei e do Messias-Sacerdote. Ao fazer isso, o debate com os fariseus não é apenas vencido pela plausibilidade argumentativa mas também pela assimetria de forças político-religiosas que se colocavam na questão (tal como ele apresentava). Este reordenamento de forças deve ser compreendido como uma tática mateana de afirmação da comunidade dos nazarenos frente ao proto-rabinato das sinagogas no pós-guerra em 70 d.C.
A apreensão do conteúdo apresentado nesta passagem nos mostra um Jesus absoluta e rigorosamente comprometido com o cumprimento da Torá. Mais do que isso, esta passagem mostra uma profunda repreensão a todo aquele que descumprir um dos mandamentos da Torá. Pelo "critério do constrangimento", poderíamos encontrar a proposição de que a perícope das espigas é verdadeira tipicamente porque ela geraria um profundo constrangimento à comunidade dos cristãos (caso fosse encarada como violação da Lei), mas mesmo assim foi posta no evangelho. Ora, não é possível conceber, no entanto, tal absurdo grau de contradição sendo exposto de forma tão explícita. Como é possível vindicar qualquer suposto de liderança messiânica para alguém que é sequer incapaz de manter seu compromisso com o elemento central da Toráh, ou seja, a Lei? Lembremos que um evangelho é um texto voltado para a publicização da mensagem cristã. Lembremos que uma das típicas críticas ao farisaísmo feitas por Jesus se concentrava em denunciar a suposta hipocrisia dos mesmos, ou seja, sua capacidade de não agir de acordo com aquilo que pregavam. Ora, como um evangelista sequer poderia elaborar um texto mostrando que Jesus agia da mesma forma que seus inimigos fariseus? Pior ainda, agindo contra suas próprias palavras e contra o coração da Toráh? Falar uma coisa e fazer outra já era um problema grave. Fazer isso no que toca à Lei seria o suprassumo da incoerência. Divulgar tais coisas em material de propaganda político-religiosa (evangelhos) seria enfim dar atestado de insanidade. Em bom termo, a perícope foi publicada, exatamente porque ela fazia parte de um programa ideológico a ser defendido, qual seja — a defesa de uma halachá voltada para os princípios fundantes da Lei contra o formalismo da interpretação formal (Shammai). A perícope foi tipicamente publicada porque os evangelistas defendiam que a Lei havia sido plenamente cumprida. A perícope foi tipicamente publicada porque os evangelistas queriam exatamente mostrar qual era a correta forma de interpretação haláquica, a forma que buscava os fundamentos primeiros da legislação. Havia um programa político-ideológico na publicação deste material. Se inicialmente, poderíamos imaginar que houve uma certa descontinuidade com as "tradições judaicas", descobrimos ao longo da exposição que tal ruptura não existiu de fato, dada a similitude da argumentação de Jesus com a tradição da Beit Hillel e do rabinato posterior. Neste caso, nos termos e critérios para análise da crítica textual, o elemento que nos conduz à autenticidade do dito, paradoxalmente não é a "dessemelhança", mas a "aparente dessemelhança que se descobriu como continuidade."Se poderíamos imaginar a idéia de constrangimento na publicação deste material, inversamente pontuamos que o mesmo intencionalmente foi publicado como estratégia de enfrentamento (não contra a Lei), mas contra a halachá formalista da Lei. Ao invés de constrangimento, a publicização de tal passagem faz parte de um programa de auto-afirmação político-ideológica das comunidades cristãs primitivas no que toca à formação da jurisprudência da Toráh.
"O que eu gostaria de explicar agora é isto: que os fariseus entregaram às pessoas um grande número de observâncias pela tradição de seus pais, que não estão escritas nas leis de Moisés. E por essa razão é que os saduceus as rejeitam, e dizem que nós devemos estimar apenas aquelas observâncias que são obrigatórias e que estão na palavra escrita, não devendo observar as que são derivadas da tradição de nossos antepassados. E no que concerne a estas coisas é que as grandes disputas e diferenças surgiram entre eles. Enquanto os saduceus são capazes de convencer tão somente os ricos, não tendo a população obsequiosa a eles, os fariseus têm a multidão ao seu lado." [JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas, Livro VIII, cap. 10, § 5, trad.própria]
Os saduceus rejeitavam a "Torah oral" dos fariseus e consequentemente todos os melakhots mencionados no início de nossa exposição que não eram encontrados na própria escritura da Toráh. Neste sentido, o grupo saduceu rejeitava a tradição oral como fonte canônica, se atendo apenas aos textos centrais da herança mosaica. Como menciona John Meyer,
"Nós sabemos, por exemplo, como os fariseus claramente distinguiam entre a Torá escrita de Moisés e suas próprias 'tradições dos anciãos' (ou 'tradições dos pais'). Eles sustentavam que estas tradições eram normativas apesar do fato — de tais tradições não estarem contidas na Torá mosaica escrita. Por exemplo, os fariseus inventaram uma ficção legal chamada de 'êrûb (uma 'fusão' de delimitações) para alargar o espaço no qual judeus observantes poderiam se mover no sábado. Os fariseus defendiam sua prática contra as objeções dos saduceus, mas os fariseus não tentavam alegar que o 'êrûb existia, ou era sancionado por, nos cinco livros de Moisés"[MEYER, John P. O Jesus histórico e a lei histórica: alguns problemas dentro do problema. IN: CHEVITARESE, André Leonardo et all [org.] Jesus de Nazaré: uma outra história. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006, p. 236]
A famosa "cerca à Toráh" (Torah shebe-'al peh), estratégia farisaica, era recusada pelo grupo dominante sacerdotal no século Id.C. Seu apelo único à normatividade da palavra escrita, no entanto, encontrava pouco apoio nas camadas populares da Judéia. Poderíamos defender a hipótese de que os fariseus ao disseminarem seu conhecimento através dos encontros semanais nas sinagogas pulverizadas pelo território judaico, bem como nas comunidades da diáspora acabaram por ter maior sucesso na divulgação de sua agenda político-religiosa do que os Saduceus, hierarquicamente centralizados na estrutura do Templo em Jerusalém. Nesta configuração de alienação mútua entre fariseus e saduceus estaria tipicamente demarcada uma situação limítrofe de conflito sobre o locus da herança da tradição judaica em sua relação com a Lei Mosaica. Os primeiros afirmando a existência de uma tradição oral normativa associada à Toráh e os saduceus negando completamente tal normatividade, afirmando como nomos apenas o núcleo-duro da herança escrita mosaica. A mútua oposição poderia ser encontrada também na crítica essênia ao método farisaico. Os essênios negavam também a existência de qualquer Torah oral derivada historicamente do Sinai. Como coloca Lawrence Schiffman:
"A questão fundamental que se coloca a todos os sistemas da lei judaica pós-bíblica é como justificar a existência de uma presença tão significativa de leis claramente não-bíblicas. Os sectários de Qumran consideravam a lei bíblica como a lei 'revelada' (nigleh) e as prescrições adicionais, como 'escondidas' (nistar). Esta última classe de leis fora revelada à seita através da exegese bíblica inspirada em suas sessões de estudo regulares. O clamor dos sectários era de que a tradição não podia ser um guia autorizado para lei judaica. Tampouco aceitavam a noção de qualquer revelação extra-bíblica "no Sinai em adição à Torá escrita". [SCHIFFMAN, Lawrence H. The pharisees and their legal traditions according to the dead sea srolls. In Dead Sea Discoveries 8, 3. Bril, 2001, p.267, trad. própria]
Como visto, verificamos aqui uma questão metodológica. Enquanto os fariseus apelavam para uma suposta tradição dos antigos, os essênios derivavam seus demais preceitos paralelos à Toráh a partir de uma particular exegese "revelada". A metodologia farisaica, criticada pelos essênios era a de que eles derivavam suas leis através da dedução lógica, um método inaceitável para a yahad de Qumran (Schiffman, 2001, p,266). Os saduceus, responsáveis pelos serviços do Templo, lutavam por manter a estrutura de poder religioso coesa, evitando pretensões messiânicas oriundas da interpretação exegética dos textos proféticos e da tradição oral. Era uma estratégia de convivência política que se acomodava à estrutura de poder herodiana-romana voltada, no entanto, para a afirmação intensa da tradição escriturística já instituída. Ou seja, a afirmação única da normatividade da Toráh por parte dos saduceus era a afirmação do quadro político instituído, a afirmação "daquilo que não deve mudar". Já os fariseus encontravam na Torah oral não só um elemento de diferenciação social, mas também um elemento de resistência cultural-patriótica frente às instituições romanas. A estratégia essênia era a do isolacionismo e da oposição rígida entre luz (comunidade) versus trevas (romanos kittin e falsos ensinamentos dos saduceus (Manassés) e dos fariseus (Efraim). Neste quadro de mútuas controvérsias, a Toráh oral dos fariseus era rejeitada tanto pelos saduceus, quanto pelo partido essênio.
"Nos textos da seita mais bem conhecidos, os fariseus são chamados por vários códigos, entre os quais 'Efraim', e são descritos como os 'construtores do muro', significando que eles construíam defesas em torno da Torá, ao decretar regulamentos adicionais destinados a assegurar sua observância. Tais defesas eram tão inaceitáveis para a seita de Qumran quanto as próprias halahot (leis) dos fariseus. A seita, fazendo um jogo de palavras, escarnecia dos fariseus chamando-os de doreshe halacot, cuja melhor tradução é 'aqueles que comentam falsas leis'. O mesmo texto considera o talmud (literalmente 'estudo') de 'Efraim' como falsidade, sem dúvida uma referência ao método fariseu de extrair novas leis ampliadas a partir de expressões das Escrituras." [SCHIFFMAN, Lawrence H. As origens saducéias da seita dos manuscritos do Mar Morto. IN: SHANKS, Hershel (org.) Para compreender os manuscritos do Mar Morto: uma coletânea de ensaios da Biblical Archaeology Review. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 46.]
Outrossim, tal como vimos neste texto, não é possível tratarmos os fariseus a partir de um bloco monolítico de análise. Em certa medida, poderíamos pontuar os seguidores de Hillel e os seguidores de Shammai como facções muito distintas, apesar de fazerem parte de um mesmo partido. No entanto, quando se fala nesta estrita obsessão pelo rigor da letra na Torah, certamente devemos relacionar tal postura aos shammaitas. Tal postura não se enquadra no modelo hermenêutico hillelita. Historicamente, o primeiro grupo se portou politicamente em termos agressivos e nacionalistas enquanto que o segundo apresentava uma postura bem mais conciliadora. A intensificação das observâncias sobre pureza por parte do grupo de Shammai, pode ser entendida, (Vide: Stambaugh), como uma reação às ameaças externas à auto-identidade de seu grupo. Por outro lado, a caracterização do perfil psicológico das facções farisaicas deve ser também vista como um desdobramento do perfil pessoal de suas lideranças fundantes. No que toca à questão dos enfrentamentos entre Jesus e os fariseus, Mateus 15-1:11 nos mostra também uma crítica ao "muro da Toráh" e à tradição dos anciãos. "E assim invalidastes a Palavra de Deus por causa da vossa tradição" [Mt 15:6]
Dado o pluralismo político religioso do judaísmo do Segundo Templo, torna-se temeroso falarmos em "tradições judaicas". Cada grupo, em sua forma particular, atuava no se sentido de se apresentar como o legítimo representante da tradição ou como legítimo herdeiro desta tradição. Quando mencionamos o comportamento de Jesus no quadro da controvérsia sobre as espigas, procuramos mostrar que tal comportamento pode ser analisado a partir dos elementos encontrados no farisaísmo de Hillel e de seus desdobramentos no rabinato talmúdico posterior. Neste sentido estrito, pontuamos que a controvérsia das espigas, tal como vista em Marcos, poderia ser encarada como uma "controvérsia entre fariseus", podendo o incidente ser compreendido a partir desta tradição de controvérsias entre as correntes hillelita e shammaita.
Jesus não era fariseu, mas um Rabi independente galileu com seus próprios seguidores e notório apelo popular. Como tal, se defrontou com o grupo farisaico em diversas ocasiões. Sua auto-consciência messiânica se somava a uma forma particular hermenêutica muito mais voltada para a busca pela essência primeira dos fundamentos legislativos da Toráh. Ele conhecia e se utilizava dos ensinamentos da Beit Hillel a eles associando a sua liderança messiânica em determinados casos. Sua comensalidade aberta, suas curas no Shabbat e sua não-discriminação à determinados párias da sociedade judaica tal como mendigos, doentes, possuídos, prostitutas e publicanos entrava em choque explícito com a típica postura isolacionista essênia e dos fariseus "separados" de Shammai. Sua postura comensal inclusiva, sua prática piedosa de cura sabática e sua exegese das escrituras voltada ao sentido profundo da Lei se configuravam em sua estratégia de apresentação do "Reino de Deus" como já presente entre os judeus. Tal estratégia inclusiva, pode também, ser vista como forma política de afirmação grupal frente à dominação romana e ao formalismo ritual saduceu junto ao Templo e ao formalismo exegético dos de Shammai (e suas regras de pureza). No que toca ao incidente das espigas, o recurso à jurisprudência davídica anuncia também uma certa excepcionalidade casuística ligada ao novo reino messiânico que se está a instaurar em Israel por parte da comunidade dos discípulos de Jesus. Já o relato de Mateus, a nosso ver, reflexo maior das controvérsias farisaico/cristãs após o Segundo Templo, pode ser compreendido também neste quadro de busca pela afirmação por parte do grupo nazareno das prerrogativas de continuidade da herança sacerdotal (além da herança da realeza), agora apresentada a partir da atividade apostólica.
Messianismo e estratégias retóricas
Em nossa exposição, procuramos inicialmente diferenciar dois elementos: as estratégias retóricas de Jesus e as estratégias retóricas dos evangelistas. Como foi visto, Marcos nos parece ser mais fiel no registro dos ditos de Jesus. De fato, encontramos, como visto anteriormente, todos os elementos discursivos utilizados por Jesus em outros textos da própria tradição farisaica e rabínica. Sobre os relatos de Lucas e Mateus, foi possível argumentar que nos encontramos já em um estágio narrativo no qual o confronto não se dá mais em termos da oposição Jesus/Fariseus, mas da oposição entre o movimento dos nazarenos/farisaismo. Sabemos que a terminologia sobre o "Filho do Homem" foi tipicamente empregada por Jesus em seus ditos, notadamente em seus discursos junto a seus seguidores. No entanto, não nos parece plausível o emprego de tal terminologia em um embate haláquico como argumento de autoridade, desconectado de uma razão mais ampla que a justifique. Como vimos, a afirmação de que o "sábado foi feito para o homem", texto que antecede postulação sobre o "Filho do Homem" em Marcos, possui correlatos na tradição rabínica e provavelmente deva ter sido pronunciada originalmente por Jesus. Lucas justifica o ocorrido pela autoridade de Jesus sobre o a Shabbat e pela jurisprudência davídica. Mateus vai mais além nas estratégias argumentativas, no sentido da desqualificação dos oponentes de Jesus. O objetivo de fundo, no entanto, como procuramos demonstrar, era a desqualificação do próprio grupo dos fariseus, enquanto inequívocos intérpretes da Toráh. No texto de Mateus, Jesus não apenas anula a culpabilidade dos discípulos, como demonstra a sacralidade de suas ações. Ele debocha da capacidade dos fariseus de observarem precedentes jurídicos que sustentariam as ações dos apóstolos e de perceberem a misericórdia divina agindo no saciar da fome dos mesmos. No que toca à analogia com a narrativa de Davi e os pães da proposição, destacaríamos também um ponto importante. Se no relato marcano, a citação funciona como elemento de jurisprudência, em Lucas e Mateus, a citação não apenas serve como elemento de referência de precedente jurídico, mas funciona também como analogia messiânica. Vejamos:
a) ao pontuar o conceito do "Filho do Homem" como senhor do sábado correlacionado a uma ação davídica, Jesus liga suas ações e de seus discípulos ao nível da postulação messiânica ligada à realeza;
b) em acréscimo, ao mencionar a atividade sacerdotal, Mateus funde em Jesus os dois conceitos: "messias-rei" e "messias-sacerdote";
c) como síntese, no conjunto completo proposto no esquema argumentativo mateano, Jesus seria o messias-davídico-sacerdotal e as ações dos apóstolos se justificariam também por esta dicotomia: precedente real/sacerdotal.
a) ao pontuar o conceito do "Filho do Homem" como senhor do sábado correlacionado a uma ação davídica, Jesus liga suas ações e de seus discípulos ao nível da postulação messiânica ligada à realeza;
b) em acréscimo, ao mencionar a atividade sacerdotal, Mateus funde em Jesus os dois conceitos: "messias-rei" e "messias-sacerdote";
c) como síntese, no conjunto completo proposto no esquema argumentativo mateano, Jesus seria o messias-davídico-sacerdotal e as ações dos apóstolos se justificariam também por esta dicotomia: precedente real/sacerdotal.
Desta forma, Mateus ultrapassa a mera apresentação de Jesus como um arguto mestre da Lei, bem capaz de defender a ação de seus discípulos, mas inverte as ações no campo de batalha retórica, desqualificando os oponentes e situando a controvérsia em um plano no qual o mestre da Lei é também posto como o amálgama entre as figuras do Messias-rei e do Messias-Sacerdote. Ao fazer isso, o debate com os fariseus não é apenas vencido pela plausibilidade argumentativa mas também pela assimetria de forças político-religiosas que se colocavam na questão (tal como ele apresentava). Este reordenamento de forças deve ser compreendido como uma tática mateana de afirmação da comunidade dos nazarenos frente ao proto-rabinato das sinagogas no pós-guerra em 70 d.C.
Sobre os critérios de Autenticidade
Um elemento que ainda não mencionamos em nossa questão de forma mais explícita se refere aos chamados critérios de autenticidade ligados à perícope em questão. A nosso ver, como procuramos demonstrar anteriormente, a narrativa marcana possui maior ligação com o Jesus Histórico. Notadamente, a versão de Mateus já nos traria acréscimos ligados a uma problemática das comunidades cristãs em enfrentamento com as sinagogas. De qualquer forma, o núcleo-duro da controvérsia sobre as espigas nos parece ter um substrato verídico. Neste caso, dois critérios podem ser elencados para a análise: "o critério da dessemelhança" e o "critério do constrangimento". O primeiro se ligaria tipicamente a um elemento que romperia com uma certa tradição de continuidade. E o segundo estaria ligado a algum elemento que causaria embaraço e constrangimento ideológico aos evangelistas ao publicarem tal perícope. A questão que se coloca é: "teriam os evangelistas algum propósito na publicação de algum dito ou fato da vida de Jesus que lhes causasse problema devido à contestação e aos ataques que lhe seriam feitos?" Vamos pegar, por exemplo, o seguinte pronunciamento de Jesus em Mateus 5,17-19:"Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado. Aquele, portanto, que violar um só desses menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será chamado o menor no Reino dos Céus. Aquele, porém, que os praticar e os ensinar, esse será chamado grande no Reino dos Céus."[Mateus 5,17-19]
A apreensão do conteúdo apresentado nesta passagem nos mostra um Jesus absoluta e rigorosamente comprometido com o cumprimento da Torá. Mais do que isso, esta passagem mostra uma profunda repreensão a todo aquele que descumprir um dos mandamentos da Torá. Pelo "critério do constrangimento", poderíamos encontrar a proposição de que a perícope das espigas é verdadeira tipicamente porque ela geraria um profundo constrangimento à comunidade dos cristãos (caso fosse encarada como violação da Lei), mas mesmo assim foi posta no evangelho. Ora, não é possível conceber, no entanto, tal absurdo grau de contradição sendo exposto de forma tão explícita. Como é possível vindicar qualquer suposto de liderança messiânica para alguém que é sequer incapaz de manter seu compromisso com o elemento central da Toráh, ou seja, a Lei? Lembremos que um evangelho é um texto voltado para a publicização da mensagem cristã. Lembremos que uma das típicas críticas ao farisaísmo feitas por Jesus se concentrava em denunciar a suposta hipocrisia dos mesmos, ou seja, sua capacidade de não agir de acordo com aquilo que pregavam. Ora, como um evangelista sequer poderia elaborar um texto mostrando que Jesus agia da mesma forma que seus inimigos fariseus? Pior ainda, agindo contra suas próprias palavras e contra o coração da Toráh? Falar uma coisa e fazer outra já era um problema grave. Fazer isso no que toca à Lei seria o suprassumo da incoerência. Divulgar tais coisas em material de propaganda político-religiosa (evangelhos) seria enfim dar atestado de insanidade. Em bom termo, a perícope foi publicada, exatamente porque ela fazia parte de um programa ideológico a ser defendido, qual seja — a defesa de uma halachá voltada para os princípios fundantes da Lei contra o formalismo da interpretação formal (Shammai). A perícope foi tipicamente publicada porque os evangelistas defendiam que a Lei havia sido plenamente cumprida. A perícope foi tipicamente publicada porque os evangelistas queriam exatamente mostrar qual era a correta forma de interpretação haláquica, a forma que buscava os fundamentos primeiros da legislação. Havia um programa político-ideológico na publicação deste material. Se inicialmente, poderíamos imaginar que houve uma certa descontinuidade com as "tradições judaicas", descobrimos ao longo da exposição que tal ruptura não existiu de fato, dada a similitude da argumentação de Jesus com a tradição da Beit Hillel e do rabinato posterior. Neste caso, nos termos e critérios para análise da crítica textual, o elemento que nos conduz à autenticidade do dito, paradoxalmente não é a "dessemelhança", mas a "aparente dessemelhança que se descobriu como continuidade."Se poderíamos imaginar a idéia de constrangimento na publicação deste material, inversamente pontuamos que o mesmo intencionalmente foi publicado como estratégia de enfrentamento (não contra a Lei), mas contra a halachá formalista da Lei. Ao invés de constrangimento, a publicização de tal passagem faz parte de um programa de auto-afirmação político-ideológica das comunidades cristãs primitivas no que toca à formação da jurisprudência da Toráh.
Conclusão
Por fim, após termos dissertado sobre todos estes elementos, gostaríamos de encerrar nossa exposição, delineando os dois retratos sobre Jesus que encontramos em toda aparentemente simples controvérsia. No quadro múltiplo ligado ao incidente sobre as espigas, podemos, pois, encontrar duas caracterizações sobre Jesus. A primeira, que poderíamos retratar como a fusão dos conteúdos apresentados pelo texto de Marcos e Lucas, nos mostraria Jesus tipicamente como um rabi galileu do século I d.C., inserido em um quadro de disputas sobre a interpretação da Lei. Já o amplo quadro apresentado em Mateus nos mostra um Jesus plenamente se afirmando como liderança messiânica de um grupo que se colocava de forma superior ao partido dos fariseus. Como procuramos demonstrar, a nosso ver, o primeiro caso nos parece ter maior ligação com os eventos concretos ligados à vida do Jesus histórico. A apresentação de Mateus já nos é muito mais um espelho do enfrentamento do movimento dos nazarenos frente à rejeição do farisaismo das sinagogas às pretensões messiânicas da comunidade mateana e demais seguidores de Jesus, reflexo das tensões vivenciadas por estes grupos após a destruição do Templo em 70 d.C.Notas
[1] - Os supostos postulados em nossa análise tomam como base a tese da expressão "Filho do Homem" como um título escatológico correntemente conhecido e assim compreendido pelos leitores judeus do livro de Daniel, Henoc e IV Esdras no século I d.C. No campo acadêmico, esta concepção sofreu um abalo a partir da década de 60 quando diversos estudos passaram a trabalhar com o uso primitivo da expressão em aramaico "bar nash(a)" em detrimento da anterior focalização no grego "ho huios to anthrôpou". Geza Vermes foi um dos primeiros a contestar o paradigma anterior. A seu ver, tal expressão seria tão somente uma forma genérica e ambígua de substituir o sujeito "eu" por um "este homem" (falando de si mesmo) de tal forma a não enfatizar uma certa prepotência do discurso em primeira pessoa. Não somos filólogos e nem especialistas em aramaico. Neste sentido, devemos estar atentos ao "estado da arte" no qual se encontra a atual pesquisa sobre determinados termos para bem desenvolvermos nossas abordagens. Neste texto, o conceito "Filho do Homem" foi utilizado a partir de sua conotação escatológica como parte dos argumentos aqui desenvolvidos. Caso optássemos pela abordagem de Vermes, teríamos que reformular alguns pontos de nossa argumentação. A ausência do chamado "Livro das Parábolas" referente à literatura de Enoch nos manuscritos encontrados em Qumran foi também de extrema relevância para o repensar da questão escaológica sobre o "Filho do Homem". Sabidamente foi neste texto que encontramos esta apropriação do termo. Ou seja, a ausência de tal material no Enoch qumraniano de certa forma forneceria indícios de que este uso escatológico não era corrente até 70 d.C. Em certa medida, o uso por Jesus da expressão "Filho do Homem" em um debate haláquico no seu sentido escatológico seria estranha a um debate no qual se pressupõe uma certa igualdade entre atores competentes. A discussão (rabi Jesus X rabinos fariseus) seria assimetricamente alterada para (Messias escatológico Jesus X rabinos fariseus). Se o título escatológico fosse trocado por uma simples expressão cujo conteúdo significaria tão-somente "este homem" a simetria dos "lugares de fala" no discurso ficaria bem mais plausível. Por outro lado, se é possível argumentar que o Jesus histórico tenha usado "bar nash(a)" como recurso estilístico de certo recato em sua fala original, é também possível afirmar que os evangelistas já tencionassem usar tal terminologia em um sentido escatológico. Vermes (2006, p.275-6) em uma análise geral de todos os usos desta expressão no Novo Testamento, pontua especificamente a utilização no incidente das espigas como "uma referência ao falante (=Jesus), sem relação com o tema da fala. No entanto, o próprio Vermes reconhece que tal passagem específica foi interpretada por muitos especialistas a partir do viés escatológico. Para maiores informações, [Cf. VERMES, Geza. O estado atual do debate sobre o "Filho do Homem" In: Jesus e o mundo do judaísmo. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p.109-21], além do capítulo 7 de Vermes (2006). Sobre o conteúdo escatológico associado à expressão "Filho do Homem", recomendo o artigo de nosso colega Rodrigo Souza, intitulado: Juizo Final.
[2] - Neste texto argumentamos sobre a pertinência de uma maior proximidade entre as linhas doutrinárias da Beit Hillel e os ensinamentos de Jesus. De fato, verificamos esta maior convergência quando examinamos os ditos das duas escolas farisaicas. No entanto, nem sempre ela é automática e é também possível encontrar posições de Jesus que se alinham aos shammaítas. Uma similitude típica pode ser encontrada na questão do divórcio. Vermes (1996, p.92, referenciando mGittin 9,10) nos mostra a escola de Hillel alegando que até mesmo uma refeição estragada poderia ser razão suficiente para uma separação. Já para Shammai, o divórcio só poderia se realizar se o marido descobrisse que sua mulher não era casta. Em Mateus 19:3-9 encontramos uma posição bem semelhante por parte de Jesus aos ensinos shammaítas, afirmando que somente em caso de prostituição o divórcio seria permitido. A questão é interessante também porque novamente neste caso suspeitamos que os fariseus inquisidores desta perícope são os de Shammai. Eles assim questionam: "É lícito repudiar a própria mulher por qualquer motivo?". A questão poderia ser reformulada da seguinte forma "O divórcio é lícito por qualquer motivo, tal como dizem os de Hillel"? A correspondente versão marcana em Mc 10:1-12 nos mostra uma posição de Jesus ainda mais radical - em nenhum caso deve haver o divórcio: "Portanto o que Deus uniu o homem não separe". Neste relato, a rigidez haláquica de Jesus superaria tanto Hillel quanto Shammai. Neste sentido, uma simplista análise de que a doutrina de Jesus era tipicamente mais flexível e "liberal" do que a dos fariseus não deve ser levada a sério. Meyer (2006, p.251) coloca os termos da discussão não mais na hipótese de um alinhamento shammaítico por parte de Jesus, mas de um alinhamento de Jesus à comunidade de Qumran frente aos fariseus, dado que a yahad qunramniana proibia também o divórcio.Sustenta Meyer, no entanto, que tal posição não seria de consenso a partir de uma análise mais detalhada a partir dos manuscritos encontrados. Surge, com espanto, o famoso 4Q12a ii.4-7 no qual altera-se o texto de Malaquias 2:16 para um texto no qual se abre a possibilidade do divórcio. Não conheço um estudo completo no qual esta separação doutrinária de alinhamentos com as escolas farisaicas foi exaustivamente explorado. Caso não ainda exista, acredito que teríamos um excelente programa de pesquisa.
Um outro elemento que gostaria de destacar é o famoso capítulo 23 de Mateus no qual encontramos um feroz ataque aos fariseus por parte de Jesus. Em especial, nos interessa o versículo 15 no qual temos: "Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que o percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito, mas, quando conseguis conquistá-lo, nós o tornais duas vezes mais digno da geena do que vós!" Sabemos que os shammaitas eram extremamente nacionalistas e aversos ao contato com os gentios, tendo proibido o comércio e as relações sexuais entre os judeus e estes. Em tal situação de hostilidade, torna-se difícil pensar em um grupo que por definição se separava dos demais através das mais sutis observâncias ritualísticas atuando ao longo do mediterrâneo com caçadores de prosélitos. Tal missão só poderia ser entendida nas mãos de um grupo muito mais aberto, cordial e expansivo tal como os hillelitas. Quando Jesus ataca o proselitismo farisaico, acreditamos que este ataque se fazia em função da ação dos fariseus de Hillel. Sendo assim, não é possível advogar um pleno alinhamento do rabi nazareno aos ensinamentos e práticas desta escola. O quadro geral é bem complexo e boa pesquisa ainda deve ser feita para que possamos melhor compreender os posicionamentos mútuos.
Nota: Ao leitor que possa achar estranha esta ligação de Jesus com os fariseus, recomendamos o excelente artigo de nosso colega Nehemias Jr., intitulado: " Jesus e os Fariseus. Inimigos Mortais?! Você precisa rever os seus conceitos".
[2] - Neste texto argumentamos sobre a pertinência de uma maior proximidade entre as linhas doutrinárias da Beit Hillel e os ensinamentos de Jesus. De fato, verificamos esta maior convergência quando examinamos os ditos das duas escolas farisaicas. No entanto, nem sempre ela é automática e é também possível encontrar posições de Jesus que se alinham aos shammaítas. Uma similitude típica pode ser encontrada na questão do divórcio. Vermes (1996, p.92, referenciando mGittin 9,10) nos mostra a escola de Hillel alegando que até mesmo uma refeição estragada poderia ser razão suficiente para uma separação. Já para Shammai, o divórcio só poderia se realizar se o marido descobrisse que sua mulher não era casta. Em Mateus 19:3-9 encontramos uma posição bem semelhante por parte de Jesus aos ensinos shammaítas, afirmando que somente em caso de prostituição o divórcio seria permitido. A questão é interessante também porque novamente neste caso suspeitamos que os fariseus inquisidores desta perícope são os de Shammai. Eles assim questionam: "É lícito repudiar a própria mulher por qualquer motivo?". A questão poderia ser reformulada da seguinte forma "O divórcio é lícito por qualquer motivo, tal como dizem os de Hillel"? A correspondente versão marcana em Mc 10:1-12 nos mostra uma posição de Jesus ainda mais radical - em nenhum caso deve haver o divórcio: "Portanto o que Deus uniu o homem não separe". Neste relato, a rigidez haláquica de Jesus superaria tanto Hillel quanto Shammai. Neste sentido, uma simplista análise de que a doutrina de Jesus era tipicamente mais flexível e "liberal" do que a dos fariseus não deve ser levada a sério. Meyer (2006, p.251) coloca os termos da discussão não mais na hipótese de um alinhamento shammaítico por parte de Jesus, mas de um alinhamento de Jesus à comunidade de Qumran frente aos fariseus, dado que a yahad qunramniana proibia também o divórcio.Sustenta Meyer, no entanto, que tal posição não seria de consenso a partir de uma análise mais detalhada a partir dos manuscritos encontrados. Surge, com espanto, o famoso 4Q12a ii.4-7 no qual altera-se o texto de Malaquias 2:16 para um texto no qual se abre a possibilidade do divórcio. Não conheço um estudo completo no qual esta separação doutrinária de alinhamentos com as escolas farisaicas foi exaustivamente explorado. Caso não ainda exista, acredito que teríamos um excelente programa de pesquisa.
Um outro elemento que gostaria de destacar é o famoso capítulo 23 de Mateus no qual encontramos um feroz ataque aos fariseus por parte de Jesus. Em especial, nos interessa o versículo 15 no qual temos: "Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que o percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito, mas, quando conseguis conquistá-lo, nós o tornais duas vezes mais digno da geena do que vós!" Sabemos que os shammaitas eram extremamente nacionalistas e aversos ao contato com os gentios, tendo proibido o comércio e as relações sexuais entre os judeus e estes. Em tal situação de hostilidade, torna-se difícil pensar em um grupo que por definição se separava dos demais através das mais sutis observâncias ritualísticas atuando ao longo do mediterrâneo com caçadores de prosélitos. Tal missão só poderia ser entendida nas mãos de um grupo muito mais aberto, cordial e expansivo tal como os hillelitas. Quando Jesus ataca o proselitismo farisaico, acreditamos que este ataque se fazia em função da ação dos fariseus de Hillel. Sendo assim, não é possível advogar um pleno alinhamento do rabi nazareno aos ensinamentos e práticas desta escola. O quadro geral é bem complexo e boa pesquisa ainda deve ser feita para que possamos melhor compreender os posicionamentos mútuos.
Nota: Ao leitor que possa achar estranha esta ligação de Jesus com os fariseus, recomendamos o excelente artigo de nosso colega Nehemias Jr., intitulado: " Jesus e os Fariseus. Inimigos Mortais?! Você precisa rever os seus conceitos".
Referências Bibliográficas:
BÍBLIA DE JERUSALÉM [citações]
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JEWISH ENCYCLOPEDIA. Bet Hillel and Bet Shammai.
JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas.
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MEYER, John P. O Jesus histórico e a lei histórica: alguns problemas dentro do problema. IN: CHEVITARESE, André Leonardo et all [org.] Jesus de Nazaré: uma outra história. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006, p. 229-62.
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VERMES, Geza. O autêntico evangelho de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006.
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