terça-feira, 16 de janeiro de 2018

O Decálogo, o Shabbat e os judeus cristãos

Detalhe artístico da Sinagoga de Burlington com o decálogo
O Livro dos Atos dos Apóstolos no seu capítulo 21 nos mostra um evento crítico para a vida de Paulo de Tarso quando este foi à Jerusalém pela última vez. Segundo o relato, havia naquela cidade milhares de judeus conversos ao movimento dos nazarenos e eles eram zelosos à Lei. Ele estavam preocupados e inquietos sobre os relatos que diziam que Paulo estava pregando aos judeus da Diáspora para que abandonassem a Lei. Tiago, líder da Igreja-mãe faz então com que este vá ao Templo com um grupo de Nazireus de tal forma a realizar as oferendas e oblações necessárias ao término de seus votos. Era um ato simbólico que demonstraria a fidelidade de Paulo à lei mosaica. Nós sabemos que a ortodoxia cristã judaica, centralizada na Igreja-mãe de Jerusalém, manteve sua fidelidade à Torá e que milhares de judeus-cristãos eram zelosos da Lei Mosaica, seguindo-a fielmente. A tradição, pois, dos seguidores principais de Jesus na Palestina se manteve fiel à Lei seguindo os 613 mitzvot [mandamentos].


Nós sabemos também que o Primeiro Concílio realizado em Jerusalém [Atos 15] , decidiu que os cristãos gentios não eram obrigados a seguir a Lei, tendo Tiago, líder da Igreja, dado a eles, apenas 3[4] prescrições [mitzvot negativas] a serem cumpridas. Posteriormente, o próprio Tiago, no capítulo 21 retomaria o tema:

"Todavia, quanto aos que creem dos gentios, já nós havemos escrito, e achado por bem, que nada disto observem; mas que só se guardem do que se sacrifica aos ídolos, e do sangue, e do sufocado e da fornicação."[Atos 21:21]

A liderança da Igreja, sintetizada nas ordenanças de Tiago, parece querer deixar claro as obrigações dos distintos grupos: a) judeus-cristãos deveria se manter fiéis à Torá (613 mitzvot) e b) gentios-cristãos deveriam se ater às ordenanças supracitadas. A evidência histórica posterior sobre os grupos judaico-cristãos "os nazarenos" e os "ebionitas" relatadas por Irineu de Lyon e Epifânio de Salamis nos mostram que tais grupos permaneceram fiéis à Lei, em nada se destinguindo dos demais judeus, a não ser o fato crucial de crerem em Jesus como messias.


O texto do Novo Testamento nos apresenta algumas passagens dispersas nas quais trechos do Decálogo são prescritos. Notadamente poderíamos citar o diálogo entre Jesus e o jovem rico no qual assim encontramos:

"E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna? E ele disse-lhe: Por que me chamas bom? Não há bom senão um só, que é Deus. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos. Disse-lhe ele: Quais? E Jesus disse: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho; Honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo." [Mateus 19:16-19]
E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna?
E ele disse-lhe: Por que me chamas bom? Não há bom senão um só, que é Deus. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos.
Disse-lhe ele: Quais? E Jesus disse: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho;
Honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Mateus 19:16-19


Ao longo do NT é possível encontrar a repetição de nove das dez ordenanças expostas no Decálogo. A única ausente se refere à guarda do Shabbat. Na literatura cristã primitiva, é somente no final do século II d.C que encontramos uma formulação doutrinária cristã em defesa do Decálogo. O primeiro cristão conhecido a mencionar o Decálogo como legislação válida e observável para os cristãos, separando-o do restante da Lei Mosaica foi Irineu de Lyon no final do século II d.C. Vamos ver o que Irineu nos conta sobre o Decálogo:

"Preparando o homem para esta vida, o Senhor proclamou por si mesmo as palavras do decálogo para todos sem distinção; por isso elas permanecem entre nós, tendo sido completadas e aumentadas, e não abolidas, por sua vinda na carne." [IRINEU, Contra as Heresias, Livro IV, 16,1-4.] 


O decálogo, segundo Irineu, era, pois, uma legislação válida que deveria ser seguida por todos. A observância da guarda do Shabbat, para ele, no entanto, deveria ser vita a partir de uma compreensão alegórica:

"A circuncisão carnal significava a circuncisão espiritual. Com efeito, diz o apóstolo: "Somos circuncidados com circuncisão não feita pela mão do homem", e o profeta diz: "circuncidai a dureza do vosso coração' Os sábados ensinavam a perseverança de todo dia no serviço de Deus. Diz o apóstolo Paulo: "Fomos considerados todo o dia como ovelhas para o sacrifício', isto é, como consagrados e ministros da nossa fé em todo tempo e perseveramos nela abstendo-nos de toda avareza sem adquirir nem possuir riquezas na terra. Manifestava também o descanso de Deus, consecutivo, de certa forma, à criação, isto é, o reino e que o homem que persevera no serviço de Deus repousará e tomará parte à mesa de Deus. A prova de que o homem não era justificado por causa destas práticas, mas que elas foram dadas ao povo como sinal, se encontram em Abraão, o qual sem circuncisão e sem observância do sábado, "acreditou em Deus e lhe foi imputado a justiça e foi chamado amigo de Deus". [Livro IV, 16,1-2.] 

A guarda do Shabbat, para Irineu, era, pois, tal como para Paulo, uma sombra, um ensinamento na perseverança no serviço de Deus. Era uma tipologia, um sinal que apontava para o shabbat espiritual. A circuncisão carnal significava a circuncisão espiritual. Da mesma forma, o shabbat físico significava o Shabbat espiritual, a plena e contínua dedicação do serviço do homem à Deus que terá sua contrapartida em seu descanso na eternidade no reino de Deus.



Outra formulação primitiva sobre o decálogo se encontra nos trabalhos de Clemente de Alexandria, notadamente na obra Stromata, Livro VI, Capítulo XVI.

"E a quarta palavra é a que intima que o mundo foi criado por Deus, e que Ele nos deu o sétimo dia como um descanso, por conta da dificuldade que há na vida. Porque Deus é incapaz de cansaço e sofrimento, e desejo. Mas nós, que suportamos a carne precisamos descansar. O sétimo dia, portanto, é proclamado um descanso -abstração de males- nos preparando para o Dia Primal, nosso verdadeiro descanso, o que, na verdade, é a primeira criação da luz, em que todas as coisas são vistas e possuídas. A partir deste dia que primeira sabedoria e o conhecimento nos iluminam. Por que a luz da verdade, a verdadeira luz, lançando nenhuma sombra, é o Espírito de Deus indivisivelmente dividido por todos, que são santificados pela fé, ocupa o lugar de uma luminária, para o conhecimento das existências reais. Ao segui-lo, portanto, através de toda a nossa vida, nos tornamos impassíveis, e isso é para o descanso." Clemente de Alexandria, Stromata, Livro VI, Capítulo XVI  

Segundo Clemente de Alexandria, o descanso físico do sábado é apenas uma preparação para o dia primeiro, o verdadeiro descanso cristão.

Nos trabalhos de Irineu e Clemente de Alexandria, o shabbat foi então interpretado a partir de uma perspectiva espiritual e alegórica. A questão a saber agora é: de onde veio isso, dado que os cristãos judeus ortodoxos eram fiéis à totalidade da Lei e os gentios foram eximidos de segui-la. Como apareceu o decálogo nessa estória? Os gentios não teriam força alguma para determinar teologicamente uma trajetória de pregação junto aos judeus, advogando pelo decálogo. Sendo assim, a resposta só pode estar DENTRO DOS PRÓPRIOS JUDEUS CRISTÃOS.

Sabemos, através dos Atos dos Apóstolos, que houve uma grande perseguição aos cristãos em Jerusalém, após o discurso e apedrejamento de Estevão. No entanto, a comunidade apostólica foi deixada em paz. Não só em paz, como se estabeleceu firmemente em Jerusalém, fazendo de lá o centro da cristandade e pouco sendo incomodada pelos demais judeus. Quem seriam estes outros cristãos que eram então tão perseguidos pelos judeus? Certamente um grupo heterodoxo, separado da ortodoxia apostólica de Jerusalém, que pregava contra a Lei [613 mitzvot]. A hipótese forte se encontra nos JUDEUS HELENISTAS seguidores de Jesus.

Nas sinagogas, o Decálogo era recitado ordinariamente nas assembléias. Encontramos também uma importância dos decálogos através dos filactérios encontrados em Qunram contendo o decálogo. Em determinado momento, no entanto, a recitação do decálogo foi proibida dentro da Sinagoga. Por qual razão? O Talmude da Babilônia assim nos fala:

 "Ambos rabi Matna e Rabi Samuel bar Nahmani afirmam que por direito os Dez Mandamentos devem ser recitado todos os dias. Por que, então, é que não se faz? Por causa da antipatia dos Minim. O objetivo era negar a alegação de que estes dez, e não mais, foram ditas a Moisés no Sinai."[Talmude da Babilônia, mTam 5.1.] 

De forma similar assim pontua o Talmude Palestino:

 "Rabi Judá citou Samuel: As pessoas queriam recitar os Dez Mandamentos em conjunto com a Shema fora do Templo, mas a longa prática tinha sido abandonada por causa dos argumentos dos Minim. O mesmo foi ensinado em um baraita: R Nathan disse, as pessoas de fora do Templo queriam ler dessa maneira, mas o costume tinha sido abolido por causa dos argumentos dos Minim. Rabá bar Rabi Huna pensou em instituir a prática em Sura, mas R. Hisda disse-lhe: O costume foi posto de lado por causa dos argumentos do Minim. Amemar pensou em fazer o mesmo em Nehardea, mas Rabi Ashi lhe disse: Ele foi posto de lado por causa dos argumentos do Minim. "[Talmude da Babilônia, mTam 5.1] 

Os minim era um grupo de judeus heréticos que passaram a pregar que a Lei de Moisés não estava mais em vigência. Para eles, somente o Decálogo era o legítimo pronunciamento legal dado por Deus à Moisés. Alguns pesquisadores associam estes Minim aos cristãos. A pregação herética dos Minim foi de tal ordem que os rabinos foram forçados a eliminar a pregação do Decálogo nas Sinagogas, para que os fiéis não pensassem que só estas eram as leis fundamentais para o judaísmo. A questão, no entanto, caso associemos os Minim aos cristãos é que estes não representavam também a própria ortodoxia cristã. A Igreja-mãe de Jerusalém continuou a ser fiel à Toráh, todos os cristãos judeus ortodoxos guardavam a Lei inteira.

 Em sua obra Panarion, Epifânio de Salamis afirma que o grupo dos "Nazarenos" eram plenamente seguidores da Lei, tal como os demais judeus. No entanto, eram profundos inimigos destes:

O fato é que se os minim forem judeus cristãos, estes judeus cristãos eram também heréticos para o próprio Cristianismo Matriz.

Além de cessar a recitação do Decálogo nas Sinagogas, foi implementada a chamada benção dos Hereges, Birkat ha-minim , no qual se os minin eram amaldiçoados dentro das Sinagogas em pé de igualdade com os invasores romanos. É possível que a ação destes minim seja um produto do cristianismo judeu helenizado. Sabemos que o grupo helenista fugiu para as terras da Judéia e da Samaria. É possível que de Lá, da Samaria e também da Síria, tenham se formado grupos de judeus cristãos que pregavam a validade apenas do Decálogo.

Sabemos também que a comunidade formada pela tradição Joanina teve sérios problemas e foi expulsa da Sinagoga. Este é um indício importante. O Evangelho de João é o único que menciona Jesus quebrando a Lei de forma explícita.

"Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não só quebrantava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus." [João 5:18]

É possível argumentar que para a comunidade joanina, a Lei Mosaica já não era um item de relevância, se opondo assim de forma frontal à tradição rabínica das sinagogas. Disso, podemos algumas coisas. A tradição cristã ligada ao decálogo nasce dentro do próprio judaísmo, caso seja possível afirmar que os minim eram cristãos realmente. Em caso positivo, é dos cristãos judeus que essa idéia aparece. Ao mesmo tempo, em contrapartida, se sãos os cristãos judeus que defenderam a idéia da vigência única do decálogo como fonte normativa, essa idéia não veio da tradição apostólica matriz cristã situada na Assembléia dos anciãos e apóstolos em Jerusalém. Estes judeus cristãos continuaram fiéis à torá e aos 613 mitzvot.

2 comentários:

jack hazut disse...

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Jack Hazut
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Alexander Dantas disse...

Excelente a abordagem do tema,trazendo dados históricos relevantes sobre a forma como os primeiros cristãos enxergavam o decálogo e a guarda do sábado em especial. Parece-me que tínhamos diferenças doutrinárias entre essas primeiras comunidades e àquelas que eram formadas de cristãos, que não eram judeus de nascimento, foram aos poucos se afastando de algumas ordenanças mais relacionadas ao judaísmo. Aproveito para parabenizar o trabalho desenvolvido no site, em que se tem a análise de temas teológicos e históricos feita com estudo e em linguagem acessível.

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    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
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