quinta-feira, 9 de abril de 2009

Os Essênios, Qumran e o Movimento de Jesus


A despeito de algumas contradições nos Manuscritos de Qumran, sobre a seita das cavernas e algumas descrições dos essênios nas fontes clássicas – Philo de Alexandria, Josefo e Plínio, o Velho [há que levar-se em consideração que, especialmente Philo e Plínio, eles obtiveram suas fontes sobre os essênios longe de ser em primeira mão] – Geza Vermes apontou três considerações principais que associam-nos:

1 – Não existe outro local, a não ser Qumran, que corresponda ao assentamento essênio descrito por Plínio entre Jericó e Engendi.
2 – Cronologicamente falando, as atividades essênias descritas por Josefo como tendo lugar no período de Jônatas Macabeus (c.150 a.C.) e a primeira guerra dos judeus (66-70 d.C.) coincidem perfeitamente com a ocupação sectária em Qumran.
3 – As semelhanças da vida em comunidade, a organização e os costumes são fundamentais para confirmar a identificação das duas entidades como algo extremamente provável, na medida em que algumas óbvias diferenças entre elas possam ser explicadas [como, p.ex., no movimento essênio nas cidades, não havia a distribuição comunal-igualitária dos bens obrigatória; a que se considerar o isolamento no deserto, e o convívio público e institucional no meio urbano; no isolamento, as exigências para com pureza e total e integral dedicação de bens, tempo, comportamento, era mais rígida].

Considera também que na seita de Qumram, dois movimentos distintos estavam incorporados, contemplando dois séculos de desenvolvimento, havendo também certa maleabilidade na compilação e transmissão literária. Particularmente, considero apenas que se deve ter a ressalva de não os considerar como representativo geral dos essênios.


Sabemos que com os manuscritos do Mar Morto, desabaram algumas vinculações mais estreitas dentre Jesus e os apóstolos com os essênios, que se especulavam antes desde Renan, p.ex., a partir dos estudos dos textos de Josefo.Tal é muito bem apontado por Joseph Fitzmyer. Mas ainda assim, há muitos paralelos e questões importantes para compreendermos o surgimento, do movimento de João Batista, e do movimento de Jesus, e do próprio cristianismo.

Com as cartas Pseudo-Clementinas, tornou-se evidente que à época de Jesus haviam segmentos de gnosticismo judaico; ou seja, precedendo em muito o gnosticismo dissidente do cristianismo.

Vindo à tona os textos mandeos, na década de 20 do século passado, conheceu-se um movimento batista judaico, pré-cristão. Espalhado na Palestina e Síria.

Também temos conhecimentos de mestres itinerantes que se atribuíam poderes excepcionais, tal como nos informa Atos 5 e Josefo; nomes como Judas e Teudas.

A seita dos se auto-atribuía o nome de Nova Aliança, similar à Kainê Diathekê – Novo Testamento. Veneravam o Mestre da Justiça. James Vanderkam apresenta que eles possuiam um banquete comunitário, e há fragmentos aludindo à presença do Messias durante tal, embora em Qumran menciona-se, no Preceito do Messianismo, que tal refeição era presidida por dois Messias.

Se identificavam como a voz que proclamava no deserto para o arrependimento de Israel e a vinda do Messias e a vitória sobre as forças pagãs e vindicação de Israel [4QpSalmo 3.1; 1QSamuel 8.1216; 11.16-12.24]. Lembra-se que em Ezequiel – 47.1,2,12- e Zacarias – 14.8 haviam profecias que associavam os sinais escatológicos emanando através do último Templo para o Deserto e ao Mar Morto, tornando as águas deste potáveis.

Havia um banho batismal para admissão, contudo, eram repetidos, e não uma única vez. Havia a repartição do bem comum, contudo esta era obrigatória, e administrada, havendo um ofício de administrador para tal. Na comunidade cristã primitiva era livre e espontânea, considerada fruto do impulso do Espírito. No episódio de Ananias e Safira, registra-se que não eram obrigados a levar, podiam guardá-los, embora não tentar ludibriar afirmando terem levado tudo, retendo partes secretamente, para angariar prestígio.

O Evangelho de João é o que apresenta mais paralelos. Há uma passagem da Regra que remonta à inteligência divina como mediadora da criação, embora o que se tem é que ambos remetam à reflexões sapienciais, como registrado em alguns Salmos, Provérbios, Sirácida e Sabedoria.

No Evangelho também, parece haver uma dupla sugestividade, entre a Palavra de Deus no judaísmo, com o conceito helênico do Logos, que adentrara no judaísmo helenizado.

Algumas questões chamam a atenção, seriam atitudes de Jesus que provocariam repúdio na seita. Quando ele comentando da Lei, acrescentando eu porém vos digo, isto seria inadmissível para os essênios e sua concepção legalista. Tais antíteses destoam do mestre da justiça, e a questão do sábado oferece uma clivagem bem pronunciada, vide as regras sabáticas dos manuscritos de Damasco. Eles eram especialmente legalistas em relação ao Sabbath, muito rigorosos a este respeito.

O texto joanino apresenta uma polêmica aberta contra o Templo, sendo um de seus motivos. Josefo declara que os essênios enviavam ofertas ao Templo, sem participar do culto nele. Nos manuscritos não se tem nada claro quanto ao relacionamento deles com o Templo. Pode-se indicar que suas preocupações, antes do que com o Templo, eram de não se misturar às outras formas de judaísmo no culto.

O ascetismo deles também não admitiria a postura de Jesus, que era chamado de comilão e beberrão. Nem com sua postura de mandar os discípulos proclamarem sua missão até sobre os telhados.

Um ponto de contato.

Um ponto de contato que poderia ter se dado, seria através do movimento de João Batista.

Houveram primeiros discípulos de Jesus que antes foram de João Batista. Em boa parte da literatura cristã primitiva, como nas Pseudo-Clementinas, podemos ver que nos primórdios da constituição das igrejas cristãs, o grupo de João Batista foi rival da igreja. O Evangelho de João ressalta que João não era o Messias, nem se assumia ou reinvidicava como tal, antes, aguardava a vinda e a vitória definitiva do Messias.*

André – João 1.40, e o discípulo anônimo a quem o evangelho constantemente remete, adviera do círculo de João Batista. Em Mateus 11.10, Eis aí eu envio diante da tua face o meu mensageiro, o qual preparará o teu caminho diante de ti, pode sugerir que Jesus iniciou seu ministério depois de ter se iniciado no círculo de João. Oscar Cullmann, deveras, escreve que Mateus 11.11 é frequentemente traduzido de maneira equivocada, em que corrigindo seria assim Jesus declara: _Aquele que é o menor (isto é, Jesus enquanto discípulo) é maior do que ele (João Batista), no reino dos Céus.

Pelo evangelho de Lucas, somos informados que João, antes de começar também seu ministério e vivera nos desertos de Judá, local onde se encontrava cavernas e o convento dos essênios. Destarte, é plausível constatar seus contatos, de fato quase impossível negar; sendo precipitado afirmar que ele chegara a ser essênio, todavia retiraria dali influências, reflexões, que ele levara para seu movimento e pregação.

O movimento de Jesus, tendo guardado elementos do movimento de João Batista, contudo reelaborou-os e de certa forma, promoveu assim contrastes e até oposições mais nítidas para com a linha essênica. O mestre da justiça era um sacerdote legalista, tendo morrido e depois venerado como profeta. Foi considerado um mártir de sua mensagem. Jesus, entretanto, assumia na sua morte um papel de acordo com os planos de Deus; dizia que dava sua vida voluntariamente para o papel que assumia . O profeta não assumira um papel de redenção. O evangelho de João não só assume uma postura crítica ao Templo, como expõe Jesus assumindo o papel que o Templo deveria assumir, de encontro do Céu com a Terra, da presença de Deus com os homens. Assim, como Oscar Cullmann pondera, não é improvável que homens como o mestre da justiça sejam os que o evangelho tem presente no capítulo 10 [de João] _Todos os que vieram antes de mim são salteadores....

Um importante ponto a notar a respeito, se dá atentando a resposta que Jesus dera aos discípulos de João quando indagado se era quem estavam aguardando, apresentando os sinais do Reino dos Céus:

Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres são proclamadas as boas novas. Lucas 7.22.

Geza Vermes aponta que no fragmento da Ressurreição dos manuscritos do Mar Morto, esses eram apresentados como sinais do advento do cumprimento escatológico. As curas também eram proclamadas assim no Preceito da Comunidade 4:6.

Uma outra questão, é que o movimento essênio não é intrinsecamente indissociável do mestre da justiça. Josefo, Filo de Alexandria, e Plínio, esmiuçando a seita, não comentaram sobre ele. Antes dos Rolos do Mar Morto, mal se tinha o que dizer a respeito de tal personagem. Diametralmente oposto o que ocorre na igreja cristã.

Há um outro importante ponto de contato: o círculo que se integrou ao movimento de Jesus, conhecido como os judeus helenistas, que contava com personagens importantíssimos como Estevão. Posteriormente, comentaremos a respeito.


*Nesse ponto, me afasto de uma opinião de Dominic Crossan, que sustenta que João aguardava a intervenção direta de Deus para consumar a história e inaugurar seu Reino em imediato. Para mim fica claro, até mesmo pelas próprias passagens que Crossan expõe para sustentar sua posição, que João, sim, esperava a iminência escatológica, mas vinda de Deus por parte do Messias. A esse cabia instaurar de vez o Reino de Deus. Quando ele dizia Eu batizo com água; mas, no meio de vós, está quem vós não conheceis, o qual vem após mim, do qual não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias – João 1.26 - ele contrapunha à sua pessoa; ele – quem vinha após ele, ou seja, punha no mesmo plano. Não se imagina que se referiria a Deus nesses termos, antes usaria algumas das alusões convencionais referentes. Por mais que pensemos no antropomorfismo comum para com YHWH, é muito forçado que João remeteria a Deus em termos de desatar as sandálias, antes do que alguém como o Messias, que embora no mesmo plano, fosse de categoria superior. Assim também quando ele envia discípulos a perguntar a Jesus És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?, em Lucas 7.19, se deixa claro que não esperava YHWH vindo de imediato, mas antes seu Messias.

Crossan, Jean Dominic. O Jesus Histórico. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1994.

Cullman, Oscar. A significação dos textos de Qumran para o estudo das origens cristãs, in : Das Origens do Evangelho à Formação da Teologia Cristã Ed. Novo Século. São Paulo, 2000.

Fitzmyer, Joseph A. 101 Perguntas Sobre os Manuscritos do Mar Morto. Ed. Loyola, São Paulo, 1997.

Josefo, Flávio. História dos Hebreus: Antiguidades Judaicas, XVIII, 1,5. CPAD. São Paulo, 2006.

Vanderkam, James C. Os manuscritos do Mar Morto hoje. Ed. Objetiva. Rio de Janeiro, 1995.

Vermes, Geza. Os Manuscritos do Mar Morto. Ed.Mercuryo. São Paulo. 2ªed.,2004.

Wright, Nichollas Thomas. Jesus and the Victory of God, Christian Origins and the Question of God, Vl. 2. Augsburg Fortress, 1996.

3 comentários:

Eduardo Medeiros disse...

Oi Flávio, beleza?

Olha, excelente o teu artigo. Comentá-lo todo ficaria quase impossível, por isso vou me deter no Batista e sua relação com Jesus.

Parece certo que o Batista foi influenciado pelo pensamento essênio, para dizer o mínimo. Isso nos leva a uma questão interessante: a adesão de Jesus ao movimento do seu primo.

Os biblistas que pesquisam o Jesus histórico, como você deve saber, estabeleceram alguns critério para se ter algum grau de certeza que tal dito foi original do Jesus histórico e não construção teológica do autor do texto.

Um desses critérios é o do constrangimento(Schillebeeckx) ou da contradição (Meyer).

Referem-se àqueles atos ou palavras vindas de Jesus que por qualquer motivo, poderiam criar dificuldades na igreja primitiva, e por isso, o provável material constragedor acabaria sendo retirado ou atenuado.

O fato de Jesus, o Messias, o Deus encarnado ser batizado por um profeta do deserto com tendências essênicas é complicador para a figura de Jesus.

Marcos nada explica do superior (Jesus) se submenter a um batismo destinado a pecadores.

Mateus introduz um diálogo que procura amenizar o ocorrido.

Lucas põe o Batista preso antes do batismo e omite quem batizou Jesus.

e João, no quarto evangelho, simplesmente ignora o batismo de Jesus; talvez devido às pendengas com os discípulos de João que não reconheciam Jesus como o messias?

Então, é bem provável que o batismo de Jesus tenha sido realmente histórico.

(continuo após...)

Eduardo Medeiros disse...

(continuando...)

Diante disso, pode-se sugerir que Jesus no início do seu ministério se identificava com a visão do Batista, mas por ser demais radical, ele simplesmente deixa o grupo do seu primo, e parte para a sua "carreira solo", visto que o seu entendimento do Reino fosse diferente de João.

Enfim, esse é um assunto por demais instigante. As considerações sobre o critério do constrangimento que eu citei, estão baseadas em John P. Meier, "Um judeu marginal, repensando o Jesus histórico."

Fico aguardando para ler outros artigos tão interessantes por aqui.

um grande abraço.

Reginaldo Paiva disse...

Não adianta querer tapar o sol com uma peneira: A tradução integral dos Manuscritos do Mar Morto foi editada pela Universidade de Oxford, na Inglaterra. Para aqueles que esperavam pelo menos alguma menção a Jesus ou aos primeiros cristãos, o resultado desse trabalho foi decepcionante. Só fala da vinda do Messias, tanto antes do ano zero, quanto depois, até mesmo 20 anos depois da suposta morte de Jesus, eles ainda esperavam o Messias.

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