domingo, 28 de abril de 2013

Aquilo que é. Aquilo que não é. O senso de valor pessoal no cristianismo das origens


Nos tempos do Novo Testamento, a predominante escola estoica de filosofia tinha elevado a estima [do valor da glória] a um nível muito alto, ao que parece em resposta ao culto da gloria na nobreza romana. Acreditava-se que a conquista da gloria era a única recompensa adequada para o mérito na vida pública, e que, dada a incerteza sobre o estado do homem após a morte, era a efetiva garantia da imortalidade. Tornou-se, por isso, um objetivo primário e admirado das pessoas públicas cultuar-se a si mesmas, definindo realmente sua própria glória, na memória imortal da posteridade. Mais ainda, era considerado inferior aquele que não se empenhasse nessa procura da glória. [1]


Vasos de barro

Comumente uma abordagem próxima do positivismo histórico passa ao lago de questões de identidade e autoexpressam nos estudos das origens cristãs. Costuma-se descartar muitas vezes como “psicologização”. Encontra pouco aparato em suas ferramentas.

Felizmente, podemos encontrar hoje um bom suporte em análises e investigações com a antropologia social e estudos culturais. Estas apresentam instrumentais para nos aproximarmos de ambientes de vida com as interações, conflituosas e/ou sinergicas entre as comunidades do cristianismo nascente e diferentes expressões do judaísmo, sua matriz, bem como, com o clima cultural, apelos simbólicos e estruturas sociais do mundo imperial romano.

É muito intrigante refletir sobre como os cristãos foram delineando sua identidade, ante as clivagens inerentes de sua crença com modos de vida, apelos, e mesmo o caráter social do sistema histórico em que viveu, considerando a necessidade de sobreviver, e, vivendo ainda na sociedade urbana, obter seu mínimo de convivência civilizatória e inserção social. Nos ajuda a investigar também quais seriam as “pontes” para alcançar “gentios”, que não fossem próximos da fé judaica, conseguindo suas conversões e os mantendo no ambiente comunitário da fé que até então lhes era estranha e lhes causava agora certos transtornos sócio-políticos, com implicações econômicas. Afinal, passaram a professar que a honra, confiança e lealdade a César deveria ser dada não a ele mais, mas a um judeu Yeshua, que morrera crucificado [2], e que não mais deviam conceber a “paz” como derivada do poder e estabilidade imperial, mas a uma aliança exclusiva com esse Messias, sabendo do risco que corriam... 

Sendo que era óbvio que suas necessidades econômicas e sociais, a segurança pessoal, direitos, dependiam diretamente de César, mesmo (ou sobretudo) entre os pobres (que pareciam ser menos pobres do que os pobres dentre os cristãos judeus [3].

Aderir ao cristianismo naquele contexto significava experimentar um choque com a aglutinação religiosa-sociológica do ambiente, em que alguém se situava para se estabelecer. Os ritos e confraternizações tinham uma função conspícua para os jogos de respeito, solidariedade e competições sociais. E há muito abandonou-se a ideia de que a vivência espiritual comunitária estava em declínio do período do emergir do cristianismo.

Quero enfatizar quanto a prática da religião era diversificada, proeminente e generalizada, provavelmente para um grande número de pessoas. (…) Talvez a primeira coisa a ressaltar seja a penetração da religião no mundo romano. Na verdade, é difícil apontar algum aspecto da vida naquele tempo que não fosse explicitamente relacionado à religião. Nascimento, morte, casamento, a esfera doméstica, civil, a vida política em geral, o segmento militar, a vida social, o entretenimento, as artes, a música – tudo estava carregado de significado e associações religiosas. -[4]

Desta forma, não se superestima o temor da queda no ostracismo e o risco da anomia para indivíduos e famílias cristãs. Risco para aqueles com inexpressivo status social, de aumentar a estigmatização, ver cortadas as possibilidades de ascendência; risco de declínio e aviltação por parte dos de melhores posições.


Quero ser considerado !!


Na busca humana por reconhecimento, por uma abertura de um horizonte de possibilidades melhor, para si, família, descendentes; do alívio de sofrimento por parte de camadas mais exploradas na hierarquia social; da fuga ante ao medo de perder-se o que tem, por parte dos que têm relativamente uma condição melhor e ante ao suplício de exposição vexaminosa, censura social e violência moral, em que termos podemos pensar uma reação por parte dos convertidos à nova religiosidade?

Buscarei um recorte que proporcione lidar com com um bom panorama, cauteloso mas com valiosos elementos para análise. Tratarei de alguns elementos, na preocupação com os sentidos de valor próprio, afirmação e identidade, significativos na relação dos cristãos com expressões de valor próprio naquele contexto, com destaque ao mote da “honra”, averiguando a diferenciação construída no labor de tratar com as comunidades e seus conflitos e traumas, apelando para dispositivos compartilhados internamente nelas ainda que suscitando mudanças de paradigmas; também com elementos próprios levantados por elas para destacar sua particularidade, como “santidade” e “comunhão”. Farei uma breve defesa da relevância dos temas da honra e do respeito, com a dignificação dos inseridos na comunidade, para o senso de valor próprio importantes no contexto.


Marcando o caminho

Evitar-se à uma abordagem eminentemente fenomenológica, para uma que tanja os estados internos das pessoas tratando de como as expressão e pelo quê buscam se pautar. Estes fatores subjetivos das pessoas são examinados na comunicação dentro do contexto semântico na cultura de seu ambiente histórico.

Sem embargo, estudando aqui um fragmento no amplo tema do sentido de valor próprio nas comunidades cristãs nascentes, farei uma aproximação pelas cartas aos coríntios, mostrando como um missionário cristão, Paulo, atenta sensivelmente para tal dilema e trabalha com as pessoas a quem se vê incumbido de evangelizar e pastorear. O recorte na comunidade dos coríntios se dá pelo contexto histórico da cidade, a composição da comunidade, com predominância de gentios de classes mais baixas mas também com presença de classes de maior status; por como as fontes das cartas neotestamentárias proporcionam uma vívida e rica fonte de recursos para vermos o debate das pessoas com os temas do nosso trabalho; e o conflito dela com o pregador, em que o pregador teve que fazer valer todos os recursos que fosse capaz para confrontar o reflexo das dissonâncias sociais e culturais nas ameaças que sacudiam a comunidade.


Não é irrelevante novamente insistir: não buscar-se-á pautar-se por uma análise psicológica, inquirindo sentimentos e emoções, mas em termos de linguagem e costume. Contudo, não é possível evitar interfaces com interesses psicológicos, lidando com reações e com atribuição mútua e auto-atribuição de respeito, com motivações de se buscar ou evitar comportamentos e atribuições; falando de reconhecimento e dignidade, trata-se também de senso de estima e busca de ter algum valor diante de algo ou alguém importante e considerado.

Honra e valor próprio: “o valor de uma pessoa a seus próprios olhos (…) mais o valor dela no seu grupo social. Honra é uma pretensão de valor junto com o reconhecimento social do valor”. [5]

Assim o proeminente professor de Novo Testamento e Cristianismo Nascente da Universidade de Creighton, Bruce J. Malina, autor de importantes estudos neotestamentários sob o enfoque antropológico e dos estudos culturais, apresenta a questão da significância da honra no mundo do Novo Testamento como um dos “valores culturais fundamentais”. Ele levanta questionamentos como fios metodológicos a quem se propor a discutir, no tocante ao papel da honra: 

  • O que é vem a ser honra?
  • Como a honra pode ser ganha ou perdida?
  • O que é considerado honroso ?
  • O que se espera de uma mulher ou homem honrado, de classe baixa, ou membro da elite?
  • Que tipo de exemplos na história demonstram a honra e vergonha em ação?

Honra e Glória, Vexame e Desprezo


Trago aqui uma das mais importantes contribuições para a discussão da problemática da honra nas sociedades, em que um proeminente filósofo e expert reconhecido em estudos culturais a trabalha sob o enfoque do quanto ela pode mexer com os comportamentos, padrões e sensos comuns das sociedades. O ponto nevrálgico que Kwame Anthony Appiah, professor de filosofia no Centro Universitário para Valores Humanos da Universidade de Princeton e de Estudos Afro-americanos da Universidade de Harvard levanta é que o conceito envolve as propriedades consentidas e motivacionais para atribuir e/ou retribuir dignidade e respeito, auferindo status social e plasmando a imagem da auto-avaliação pessoal no contexto cultural vivido.
    Como tenho senso de honra, também quero preservar meu direito ao respeito. Desse modo, tenho mais uma razão para abster, isto é, preservar minha honra. Quero ser digno de respeito,
     quer efetivamente me respeitem ou não. Assim, o dever e a honra me fornecem, ambos, razões que não têm nada a ver com as reações efetivas de qualquer outra pessoa a mim – razões que, neste sentido, são internas”. [6]

Desta forma o conceito traz à tona sua carga de relevância para podemos tratar das motivações externas relacionadas com os impulsos interiores das pessoas, inseridas no bojo de um sistema social em que buscam se imprimir e viver, que lhes oferece padrões de valores os quais são assimilados e individualizados, agindo a partir de fora e ressoando as respostas subjetivas, dado o prestígio que contém sua representação; sem necessidade de ter de fazer uma análise dos processos internos da mente não tendo instrumental para chegar-se tão próximo.

A psicologia da honra tem uma ligação profunda com a autoconfiança e com olhar o mudo nos olhos”. [7]

“Psicologia da honra”? Sim, pela força interna que impele a pessoa para além de apenas ajustamento social, mas o senso de estima própria e valor.

Uma forma de garantir que você está mantendo corretamente sua honra talvez seja lembrar aos outros de que você conhece seu valor”. [8]

Justamente trabalhando em cima do senso e escalas de valores que entretecem os atores sociais que funcionam os mecanismos de designação daquilo que honra e desonra, o que é digno de se exaltar e o que é digno de humilhar, no ambiente social.

Falei mais acima sobre “dispositivos compartilhados internamente”. Isso é o que se observa na dinâmica do Bullying.

(…) Se você quebra os códigos, a resposta apropriada dos outros é, em primeiro lugar, deixar de respeitá-lo, e, em seguida, tratá-lo ativamente com desrespeito.” [9]

O impacto do bullying só existe porque há um “acordo” introjetado entre expectadores, vítimas e agressores quanto a expectativas, aceitações, símbolos, conotações, e sintagmas que significam e projetam sentimentos e diferenciações de humilhação e exaltação, orgulho e ridicularização. Se não fosse assim, chamar alguém constantemente de apelido ou expô-lo publicamente não faria efeito, pois não haveria o entendimento mútuo. É preciso que a linguagem expresse a carga conotativa que transmita a comoção emocional. As vítimas possuem expectativa de aceitação social, e estigmatizações a inferiorizam e isolam ou infligem conflito interno, desprezo e auto-flagelação.

Pois a pessoa sente os efeitos da aviltação mesmo quando não mais presente entre os agressores e expectadores, pois a maneira de se enxergar passa a refletir a sua vexação, à medida que compartilha dos códigos de honra e se vê fracassando em conseguir afirmar sua dignidade. [10]
É importante entender que, embora a honra seja um título de direito ao respeito – e a vergonha surge quando você perde esse título – uma pessoa de honra se preocupa em primeiro não em ser respeitada, mas em ser digna de respeito. Alguém que só quer ser respeitado não se importa se esta realmente vivendo de acordo com o código; quer apenas que pensem que vive conforme o código.(…)Você sente vergonha quando não atende aos critérios do código de honra; e se sente envergonhado […] mesmo que ninguém mais saiba que você falhou. [11]

Neste âmbito ainda, também adquirimos uma instrumental visualizador para os arranjos socialmente legitimados de recompensa e punição para aqueles que se saem mais habilidosos em trafegar nas vias dos códigos de honra. Nossa necessidade de dignificação nos reflexos das relações com aqueles a quem desejamos obter reconhecimento, recai em nossa autoestima. Como o filósofo Charles Taylor coloca, “ninguém adquire as linguagens para autodefinição por si mesmo. Somos apresentados a elas através das trocas com outros que importam para nós – o que George Herbert Mead chamou de 'outros significativos'. A gênese da mente humana, neste sentido, não é 'monológica', não é alguma coisa que cada um conquista sozinho, mas dialógica”. [12]. “A projeção de uma imagem inferior ou degradante sobre outrem pode realmente distorcer e oprimir, na medida em que é interiorizada”.[13]

Eis, então, o quadro: ter honra significa ter direito ao respeito. Em decorrência disso, se você quiser saber se uma sociedade se preocupa com a honra, primeiro procure ver se essas pessoas pensam que alguém tem direito a ser tratado com respeito. A próxima coisa é ver se esse direito é dado com base num conjunto de normas compartilhadas, um código. Um código de honra diz como as pessoas de certas identidades podem ganhar direito ao respeito, como podem perdê-lo e ainda, como o fato de ter e perder a honra muda a maneira como elas devem ser tratadas.”(...)“Um código de honra exige um comportamento específico das pessoas com determinadas identidades. (…) Mas as pessoas que respeitam um mesmo código pertencem a um mesmo mundo da honra, quer compartilhem ou não uma identidade. O que elas têm em comum é o fato de aceitarem as exigências que lhes faz o código em virtude de suas identidades e esperarem que os outros façam o mesmo.”(...)“Sejam qual for a maneira como chegou à sua honra – pelo êxito que levou à estima ou pelo reconhecimento de algum fato saliente que lhe concerte -, você pode perdê-la caso deixe de atender ao código. Se você se atém a um código de honra, não só reagirá com respeito àqueles que o cumprem, como também reagirá com desprezo àqueles que não o cumprem. [14]

Há também a situação do conflito entre exigências morais que a pessoa acredita, aceita e se orienta, que podem se firmar em convicções da consciência individual ou dos consensos e motivações de grupos em que o indivíduo faz parte e divide esperanças e sentidos de vida, onde neles não se vê nem “atomizado” nem “diluído em uma massa”, mas com uma identidade corporativa afim mais estreita, e as exigências da sociedade mais ampla; não implica diretamente em rebelião aberta junto a autoridade política maior, mas reivindicações de direitos e reconhecimento de modos de ser, junto a ela. 

Os códigos de honra também podem exigir que as pessoas de determinadas identidades façam coisas que são efetivamente imorais: os assassinatos por honra são os mais óbvios”. [16].

Podem ser grupos de origens de vida, étnicos, religiosos, filosofias de vida, dentre outros. Um exemplo clássico recente deste conflito fora a desobediência civil dos movimentos negros estadunidenses, que sofriam discriminação e estigmatização generalizada de segmentos mais amplos da sociedade. Entra em choque aí a legitimidade da exigência de lealdade e serviço.[15] Mencionaremos mais à frente que tal situação não era bem vista, e muitas vezes duramente reprimidas, pelas autoridades imperiais de Roma.
Conforme já foi aludido, havia a temida pena da infâmia, inicialmente social, posteriormente estatal, aplicada contra aqueles que houvessem andado contra os ditames da moral, do direito e da honradez. [17]


Aceitação Social, Distinção e Opóbrio no Sistema Histórico dos Coríntios:
Corinto é chamada 'próspera' por causa de seu comércio, em razão de estar situada no istmo e de controlar dois portos, dos quais um leva diretamente para a Ásia e o outro, para a Itália; isso torna fácil o intercâmbio de mercadorias entre duas nações assim distantes uma da outra. (…) Os Jogos Ístmicos ali realizados regularmente atraíam multidões. (…) E o templo de Afrodite era tão rico, que possuía mais de mil escravos e cortesãs. (…) Os capitães de navios esbanjavam desenfreadamente seu dinheiro, e daí o provérbio: 'Não é para qualquer um a viagem para Corinto'. [18]
Placa de madeira pintada, encontrada em Corinto. Século VI a.C. Museu Arqueológico Nacional de Atenas
No estudo clássico do autor português Júlio Baroa, sobre a configuração sociocultural da honra e vergonha no mundo antigo, ele apresenta que na tônica geral, a fama e a infâmia eram as expressões socialmente configuradas do que, com a honra e a desonra, se era produzido nas subjetividades. “A honra tem a sua expressão social naquilo a que se chama fama e a desonra, na infâmia”. [19] 

A consequência é que o caráter do zelo pela honra impelia à apreensividade com a reputação, que balizaria também as sanções sociais, fomentando a competição pelo renome. Assim, Renato de Souza Marques em sua dissertação de mestrado assinala “com efeito, existia a turpidudo que é por alguns autores chamada de infâmia fact. Tratava-se da má reputação de uma pessoa em virtude de práticas de ações menos dignas que, embora não lhe acarretassem a infâmia, traziam sobre ela o desprezo da sociedade”. 

Em Corinto, tais fenômenos se manifestavam num contexto de uma cidade em ascensão econômica dinâmica devido à localização estratégica para o fluxo comercial, pouco mais de duzentos anos após ser assolada pelo general romano Mummius; extremamente desigual, cosmopolita, religiosamente pluralista, centro de diversas imigrações, desde o envio de pobres urbanos de Roma após o começo de sua reconstrução, até pessoas atraídas de toda a bacia mediterrânea devido ao comércio; a cidade tinha engendrada uma sólida organização de sistemas de patronato; estes sistemas atuavam para conter os conflitos inerentes a advir dessa formação social, fazendo com que subgrupos situados nos níveis inferiores da hierarquia social conferissem legitimidade à estrutura de autoridade enxergando a necessidade disto para sobreviver dada a coerção, almejando, graças às propagandas ideológicas, possíveis oportunidades de longo prazo de alguma mudança de condição dentro da pirâmide hierárquica. Os grupos e subgrupos eram constituídos desde camponeses a proprietários de terras, de soldados a oficiais e magistrados, de almoxarifes, comerciantes a agiotas, de mascates a artesãos a coletores de impostos, a sacerdotes e burocracia governamental. [20] 

ruínas da antiga cidade de Corinto
“Corinto era considerada uma cidade rica, na qual floresciam o comércio, negócios financeiros e a produção artesanal, e onde havia um grande número de cultos helenista-orientais.”. [21]


Socialmente, Corinto era uma cidade cuja população cosmopolita procedia de todos os horizontes da bacia mediterrânea, consequentemente, ali se exerciam todas as profissões e se praticavam inúmeras religiões” [22]


Uma adequada atividade de relações públicas era um importante fator de sucesso na busca da fama e poder.
Em suma, o patronato era uma das maneiras por meio das quais se organizava a sociedade de Corinto. Devido a essas relações, pessoas de diferentes níveis, do imperador ao cidadão de uma dada cidade, achavam-se ligados, ainda que seus interesses pudessem não ser os mesmos”.[23]


As relações, imergindo no cotidiano, dinamizada pela criatividade das pessoas, suas ambições e disputas, criava uma simbiose entre lados opostos no diâmetro do poder que estabilizava o status quo.

Os indivíduos habitantes do império romano viviam em relações verticais de dependência. Essas relações eram caracterizadas pela troca recíproca de serviços e bens entre os da faixa social inferior e os que estavam acima. Com efeito, essas relações verticais definiam a identidade da pessoa mais do que seus contatos sociais no nível horizontal. 'Eu pertenço à casa de César' ou 'Este senador é meu patrono, eu apoio suas causas políticas, enquanto ele protege meus interesses econômicos e legais'. Tais afirmações definiam a identidade da pessoa (…). [24]

Tratava de um fator aglutinador entre os membros da sociedade complexa e estratificada, e um certo grau de adesão e modelando desejos ou entendimentos de ser necessário ou no mínimo conveniente adaptar-se em conformidade às exigências da cultura e mantendo o funcionamento das normas estabelecidas. 

Para sobreviver, a pessoa precisa desenvolver capacidades a fim de maximizar a possibilidade de ajuste bem-sucedido, fazendo uso de aptidões naturais ou adquiridas e de treinamento adequado.(…)Numa sociedade patronal orientada para o estado, na qual as convenções sobre a posição social e a profissão estavam firmemente estabelecidas, as questões sobre a extensão permissível da variabilidade em ultrapassar os limites sociais eram prementes. Como deviam associar-se adequadamente com outros de posição social diferente? As barreiras criadas pela função social da pessoa não deviam ser superadas levianamente. Essas barreiras não se limitavam ao status social, mas se aplicavam também à estatura moral. [25]


Conflitos e Desintegração - “Não vou me adaptar”:

Não entendemos o culto cristão primitivo se não mantivermos diante dos olhos o fato de que, para o cristão gentio, o cristianismo era um culto substituto. Ele era, ao mesmo tempo, uma renúncia, um posicionamento devocional firme e exigente com profundas repercussões. [26]

Dentre os elementos integradores e de coesão social, os sistemas cultuais desempenhavam um papel precípuo. A interligação da estrutura política, as regulações sociais e as práticas ritualísticas conferia uma estabilidade dentro de um equilíbrio oscilante entre a coerção social e compulsão a partir de dentro dos atores sociais, no papel prestigioso das representações, crenças e práticas agindo a partir de dentro de cada um e das famílias e comunidades cultuais, inter-relacionando-se com as imposições político-sociais agindo a partir de fora.

(...) Ou seja, o culto ao imperador formou uma grande parcela da rede de poder que constituía o tecido da sociedade.
O culto ao imperador estabilizou a ordem religiosa do mundo. O sistema do ritual era cuidadosamente estruturado; o simbolismo religioso evocava uma representação do relacionamento entre o imperador e os deuses. O ritual também tinha um caráter estruturante; ele impunha uma definição do mundo. O culto imperial, junto com a política e a diplomacia, construiu a realidade do império romano. [27]

Desta forma a reverência e o culto imperial, centrado na imagem do imperador mas amalgamado a todas as estruturas de poder de sua sustentação, permeava e se entranhava na vida social com vigorosa capilaridade.

Os festivais imperiais não eram por certo eventos casuais e mal planejados. Algumas celebrações estavam agregadas a festivais de divindades locais; outras eram cuidadosamente organizadas de modo regular; duravam um período significativo de tempo e, nos festivais provinciais, a cidade ficava repleta de visitantes. O culto ao imperador era sem dúvida parte da vida da cidade. [28]

Não é de subestimar o confronto que resultaria com os cristãos, tendo estes entregado-se a um apelo e visão de mundo em que se comprometiam a um monoteísmo marcado pela rejeição a todas as formas de culto que não ao seu Deus Criador, no qual unicamente depositavam sua adoração e esperança, com um perigoso sinal a ser interpretado pela sociedade, que era a elevada devoção e dedicação de vida prestada a um crucificado pelo Império. [29]

Em 1 Co 8 e 10, Paulo lida detalhadamente com algumas questões inevitáveis para os cristãos que viviam em cidades romanas, questões sobre sua participação em atividades religiosas pagãs; e suas orientações exigem evitar essas atividades completamente. (…) Em 10,14-22, Paulo novamente exige que seus convertidos evitem completamente a participação no “culto aos ídolos” ( eidõlatria) e insiste que a participação na refeição sagrada cristã ( 'o cálice do Senhor […] a mesa do Senhor') é incompatível com misturar-se nas festividades religiosas dedicadas a essas outras deidades que ele chama aqui de 'demonios' (10,20-21). [30]

Abre-se o palco para o acionamento de todas as sanções sociais e culturais possíveis e imagináveis – além das políticas. Aos mais bem educados e prósperos, minoria, a exclusão dos ambientes de prestígio, ridicularização intelectual (haja vista que com os pobres esta era dispensável). Aos de condições economicamente exploradas, portas de mudança de status fechadas, imputação de maior desonra, estigmatização, ostracismo. Todo o peso do que concebemos como “bullying”. Em face de se tornarem párias sociais, os cristãos se sentiam pressionados a responder à situação; anomia, abandono do mundo urbano, cooptação, capitulação, confronto aberto... ou rearranjar a hierarquia de valores com uma reorganização, ou mesmo subversão, da lógica interna das representações do que é importante e significativo para a constituição da identidade e motivações de vida e esperança que alimentam reinterpretações dos elementos constituintes da integridade, importância e estima.


Talvez devêssemos começar examinando uma comparação entre o arranjo gregário na condução da comunidade com a organização da condução do sistema social oficial.


Reversão do ideal aristocrático:


Na Antiguidade, o papel do indivíduo na sociedade era determinado pelo seus status. Os opulentos e poderosos, em matéria de religião, filosofia e política, preferiam as ideologias que dessem sustentação à base de seu poder. [31] 


Na extensão religiosa do sistema social,

Sugere a existência de associações em Corinto na virada do século I d.C., se não antes, um monumento erigido pela associação das divindades tutelares da casa imperial no começo do século II.
Membros dessa associação coríntia, sob a liderança de dois de seus membros mais destacados, reuniram-se para prestar culto às divindades tutelares da casa imperial. (…) A estrutura da associação era hierárquica. Havia as divindades, os patronos ou líderes e os membros.Não por acaso, a estrutura de base de muitas outras associações lembra a de uma hierarquia patronal. [32]

Na formação da comunidade cristã, em contraste, conforme I Co. 12 -14 a direção das comunidades era descentralizada e mais como coordenadora do que hierárquica. Como vemos em 11,17-37, havia uma espontaneidade com certa lógica de organização, pautada pela ideia do Espírito ( I Co. 12,28), sem subordinação diretiva. Desses que faziam o papel de coordenação, o senso de legitimação era dado pelo abnegação em prol do crescimento do outro -I Co 8,13, sendo este o norte também ao qual a comunidade deve aspirar para seu crescimento, como mostra a incisividade de Paulo na coleta para os “pobres de Jerusalém” - como em II Co 8 e 9.

Apreende-se fortes sugestões de que um processo de reversão de valores fora suscitado.  Agora, o "gloriar-se" era despojado arrogar de autossuficiência ou brilho pessoal próprio; era o "gloriar-se no Senhor" - I Co. 1,30. O esplendor agora não era mais na jactância pessoal, mas na participação comunitária na humilhação e vindicação perpassadas pelo Messias. II Co. 4,7: Trazemos, porém, esse tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós.  



Respostas compensatórias e auto-afirmativas nas comunidades cristãs



Nas comunidades do cristianismo em formação, foi-se, naturalmente, sentindo a necessidade de constituir um senso de demarcação, delineamento, de um “nós próprios” ante “os outros”. A comunidade de Corinto compartilha na sua orientação os princípios que norteavam as diversas comunidades cristãs formadas nos centros urbanos do império. Entretanto, aqui podemos apresentar com uma tônica peculiar contrapondo com a contextualização feita.

Os termos com os quais Paulo define a identidade dos membros da ecclesiae são principalmente dois: “os santos” (hoi haghioi) e “os irmãos” (hoi adelfoi). O primeiro parece pertencer a um âmbito de natureza extra-humana, porque implica, antes de tudo, uma noção que faz referência direta ao fato de que Deus é haghios (santo). [33]

A “Santidade” era o mais poderoso apelo enquanto meta moral para cada um e para todos, inclusive, enquanto cada um ajudasse a todos buscarem-na, e todos ajudassem a cada um, como balança para sua fidelidade ao chamado existencial a serem cristãos: 1,2, 30. O vórtice que engendrava a herança de onde brotava a fonte para essa referência pode ser visualizada utilmente na passagem de Deuteronômio, 14, 2 versão grega da Seputaginta, em que o termo indicava aspectos identitários de serem “Consagrados a Deus”; “pertencer a Ele como povo próprio”.

A concepção de Santidade então para aquele ambiente de vida cristão estabelece que ela provém de Deus, é outorgada, não algo essencial da pessoa ou meritório dela, no que estabeleceria noções aristocráticas ou competitivas.

I Co 1,2: “àqueles que foram santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos, como todos os que em qualquer lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso.”
I Co 1, 29-31: “o que no mundo é aviltado e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura possa vangloriar-se diante de Deus. Ora, é por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor”.
I Co 6,11: “Mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus”.

Os professores da Universidade de Bologna, Adriana Destro e Mauro Pesce, respectivamente de Antropologia Cultural e História do Cristianismo, conjugam muito bem a ótica da antropologia com inquirição histórica e exegese textual no seu livro conjunto “Formas Culturais do Cristianismo Nascente” na preocupação de fornecer modelos conceituais que possam ser intercambiáveis entre as áreas de pesquisa e discussão. Nesta linha procederam um comentário de informação extremamente relevante sobre a questão do conceito de “santidade” para o cristianismo em formação:


“Os termos com os quais Paulo define a identidade dos membros da ecclesiae são principalmente dois: “os santos” (hoi haghioi) e “os irmãos” (hoi adelfoi). O primeiro parece pertencer a um âmbito de natureza extra-humana, porque implica, antes de tudo, uma noção que faz referência direta ao fato de que Deus é haghios (santo).”

“ É importante que em todos os quatro casos citados o substantivo “os santos” esteja precedido pelo particípio passado “chamados”. (…) Como a expressão “chamado apóstolo” indica que Paulo foi constituído em sua função mediante uma escolha de Deus, analogamente a “santidade” é divinamente comunicada aos fiéis. Já por esse modo de usar o termo vê-se que a santidade, segundo Paulo, parece definir uma condição recebida, que vem de fora graças a uma intervenção divina. Não se trata de uma qualidade produzida ou conquistada, efeito do comportamento moral do indivíduo”.

O termo 'os santos' não pode ser entendido a partir de concepções atuais ou recentes do que é tido por santo ou do que seja a santidade. (…) Em primeiro lugar, ele é aplicado a todos os membros da ecclesia, o que significa que todos os membros são iguais sob esse ponto de vista, porque todos participam de uma condição compartilhada. No cristianismo dos séculos posteriores, pelo contrário, somente alguns serão considerados santos.” [34]

A perspectiva da “santidade” então era vetorial, podia responder a dois desafios difíceis de serem lidados sem ambivalência: ser um especial campo de contorno identitário e um termo para autoafirmação, para que fosse um contraponto de se enxergarem de maneira positiva, não apenas por contraste. Era dizerem um “sim” à existência, em intersecções com o plano da história, do cosmos e da transcendência, e não apenas um “não” à cultura do ambiente. Através dele se veem ligados a um plano redentor histórico, de um Deus Criador, em uma união cósmica atemporal com um Deus da História. Já não seriam apenas uma associação de um grupo de afins, mas um povo, unidos a despeito das separações e fronteiras de nacionalidades, classe, gênero, estabelecidas pela ideologia imperial. Reimaginavam e se redefiniam enquanto um povo, com raiz histórica e esperança para o culminar da história. Já não sendo apenas cidadãos de Corinto, mas “Povo de Deus”, com uma referência de identidade transfronteiriça, têm o caminho aberto para reimaginar os valores de importância pessoal a partir de novas bases e fundamentos.
Muitas vezes me causa grande impressão o modo como em 1 Coríntios 10,1 Paulo se dirige a uma grande Igreja de gentios afirmando que “nossos pais” estavam todos sob a nuvem e atravessaram o mar. Ele não precisa dar explicações, ele pode dar como certo que família de Deus em Cristo em Corinto é simplesmente a família que Deus resgatou do Egito, agora transformada e ampliada, mas sempre o mesmo povo.
O tema principal que caracteriza a teologia de Paulo sobre o povo de Deus renovado através do Espírito é o chamado renovado à santidade, uma santidade não definida pela Torá. (…) É esta uma santidade vinda do coração, como os profetas sempre quiseram, e também uma santidade que deve fazer as nações pagãs verem quem é, de fato, o Deus vivo. [35]
Importante então a discussão paulina quanto aos “charismas” - especialmente I Co. 12,1-11. Pois as ideias quanto aos dotes e qualidades eram fundadas em termos aristocráticos de nascimento, ou plutocráticos de conquista de riquezas, ou em termos de subjugação do outro, legitimando-se uma visão essencialista da desigualdade e hierarquia. A exibição de dotes e qualidades era para realçar os valores emuladores de poder e rivalidade. A pressão para aqueles que não se destacassem em preponderar e causar inveja era por demais intensa, sempre pairando a guilhotina da “ninguendade”, do sentimento de inferioridade e desfuncionalidade. A pressão era dupla pois cumpria a função de estimular competências na competição tanto para a vanglória pessoal, quanto uma plenamente utilitarista na valia da pessoa para a sustentação do poder imperial.

1 Coríntios 1:26-29 - “Porque, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; Para que nenhuma carne se glorie perante ele.

As novas referências e reimaginações que se incitava e reivindicava em Coríntios colocava os dons e competências como somente tendo valor em edificar a comunidade, no bem de todos, em referência a união de cada um com o Messias que por sua vez, os unia através do Espírito com o Criador. Eles não tinham do que se vangloriar, pois nenhum destes dons fora adquirido ou era essencial à pessoa, mas via de participarem na eleição histórica e cósmica da Divindade Criadora e Redentora. A participação na comunhão mútua da comunidade, com o Messias, dava acesso à Santidade – hagia, que Deus outorgava, e por sua vez, nesta se legitimava a manifestação de dons.

De fato, no entendimento paulino, o acesso àquilo que é haghios somente pode se dar através de uma nova maneira de se associar, a “assembleia de Deus” (ecclesia thou theou). (…) “Não se trata de comunidades 'escriturísticas', mas de formas de associação que, juntamente a uma mensagem, têm a certeza de terem obtido um dom divino particular (que Paulo chama de 'santificação'). É isso o que distingue o caráter desse modo de se associar e de se diferenciar do restante da coletividade, de outros núcleos ou grupos. [36]

Vendo assim, a visão moral da comunidade se referenciava no entendimento de serem vocacionados, não mais para buscarem a glória dada pela funcionalidade ao status quo, mas uma vocação comunicada pela “Doxa” Glória de Deus. Paulo entendia que isto era um substrato compartilhado pela comunidade por fazer parte do anúncio da evangelização a qual aceitaram, e ratifica isto neles lembrando que estava no núcleo da sua concepção quanto a fonte de sua honra e autoridade: 2 Co 3, 1-8 -
Porventura começamos outra vez a louvar-nos a nós mesmos? Ou necessitamos, como alguns, de cartas de recomendação para vós, ou de recomendação de vós?Vós sois a nossa carta, escrita em nossos corações, conhecida e lida por todos os homens.Porque já é manifesto que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração.E é por Cristo que temos tal confiança em Deus;Não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus,O qual nos fez também capazes de ser ministros de um novo testamento, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica.E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, veio em glória, de maneira que os filhos de Israel não podiam fitar os olhos na face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, a qual era transitória,Como não será de maior glória o ministério do Espírito?


Dela brota a esperança ante a desalentos presentes: 4,17 - “Pois vossas tribulações momentâneas são leves em relação ao peso de glória que elas nos preparam até a abundância”.

De onde vem então os laços de fraternidade, não enxergados enquanto membros de um clube que conjuga interesses e afinidades em comum. Se concebiam agora como irmãos, hoi adelfoi, por terem o mesmo Pai Celeste, a quem deviam se reportar para manterem sustentada a unidade na diversidade.

Paulo enxerga e combate o perigo de não se compreender a natureza da ecclesia, seja como uma unidade provinda de Deus, seja como uma fraternidade articulada em variedade de comportamentos.
A necessidade de assumir comportamentos coerentes com a qualidade de 'irmãos' aparece no epistolário com as denúncias de comportamentos específicos que contrastam com o amor recíproco. [37]

A noção de honra então amplia-se para a coletividade; deviam se pautar não apenas pela honra pessoal, mas em honrar a comunidade, evitando a vergonha dela ante “os de fora”. I Co 5, 9-13. Depunham contra os laços fraternos reais, transformando-os apenas em efeito de retórica, se a auto-organização da comunidade não fosse capaz de mediar suas contendas internas e suscitar um espírito de alteridade : I Co. 6, 1-8. Os laços de solidariedade não podiam se dar apenas no íntimo dos membros, apenas em manifestos emocionais, mas deveria repercutir em compleições comunitárias efetivas, atitudes e posturas novas na conformação desta, que poderia fazê-los entrar em choque com apelos a costumes na cidade que lhes fizesse uma demanda contrária.

Em sua preocupação com a 'construção' da assembleia de santos em contraposição às redes de relações de poder mediante as quais se constituía a sociedade imperial, ele não podia permitir que quem tinha ingressado na assembleia participasse dos banquetes sacrificiais por meio dos quais essas relações sociais eram ritualmente estabelecidas. Em 1 co 10,14-22, Paulo insiste na solidariedade político-religiosa contra a sociedade dominante, constituída precisamente nesses banquetes ou 'comunhão/parceria' com os deuses. Para os membros da nova comunidade alternativa, isso significava afastar-se por inteiro dos próprios recursos por meio dos quais suas relações socioeconômicas essenciais eram mantidas antes”. [38]


A atitude da comunidade então se expressava com uma inversão da hierarquia de valores; mas não eram convocados a desconsiderar os valores. Não cabia ignorar o discurso romano da virtude, diligência e valor, o que implicaria em desintegração social. II Co. 1,12: Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência, de que em santidade e sinceridade de Deus, não em sabedoria carnal, mas na graça de Deus, temos vivido no mundo, e mormente em relação a vós.
 Também, em
Porque, ainda que eu me glorie mais alguma coisa do nosso poder, o qual o Senhor nos deu para edificação, e não para vossa destruição, não me envergonhareiII Co.10,8, ou em II Co 3,10 – uma glória não passageira, mas perene, da 'aliança do Espírito' - dentro do contexto em que retoma-se a tradição de Moisés, a glória aí significa expressão visual extraordinária da honra dada a pessoa]; apenas os princípios de importância e consideração tinham sua carga conotativa reimaginada, reelaborando as proporções de méritos e considerações a partir do fundamento no Messias Crucificado. Os termos ainda possuíam indispensável relevância para a ética e moral, inclusive provocando estímulos para manterem a fidelidade aos seus princípios identitários.

“Paulo nega o valor da opinião dos não cristãos com os termos mais veementes, erigindo um tribunal alternativo da fama, formado por Deus, Cristo, a Igreja supra local e a comunidade cristã local. Ele reafirma sua credibilidade e fidedignidade dos membros de sua equipe, de modo que as atribuições de honra e a censura deles terão o peso necessário para guiar a comunidade”. [39]

Por exemplo, as noções de honra e vergonha eram aplicadas para inibir comportamentos que ameaçavam a santidade; confira I Co 4,14; 5,11;11,4-6,17;15,34. O crucial era manterem avivada sempre a compreensão de que é no Messias de Deus é a nova fonte de prestígio: 1 Co 4,7. Deus concorre com as reivindicações da cultura imperial.

Aquele, porém, que se gloria, glorie-se no Senhor.Porque não é aprovado quem a si mesmo se louva, mas, sim, aquele a quem o Senhor louva. II Coríntios 10:17-18 [ interessante ler sob a luz de João 8,50]

“Enquanto os crentes julgarem apelando para os padrões mundanos, a opinião deles fica, evidentemente, excluída. Sempre que eles aceitam o critério de medida da semelhança à Cristo e do aprazimento de Deus, eles podem tornar-se importante fonte de apoio e de correção para o fiel em particular. Primeiramente, os fiéis precisam honrar-se mutuamente: transmitir um ao outro a honra que cada membro recebeu de Deus”. [40]


Indignamente


Mas a situação estava longe de ser configurada como a ideal. Além do repto para reorganizarem sua orientação existencial, o desafio de reidear a vida social e seus arranjos de vida em comum muitas vezes em termos dissimilares e insólitos aos padrões estabelecidos e que eram mais universais, o natural estranhamento ao que lhes era requerido na escala de valimentos, os hábitos não deixam de ser arraigados apenas por uma irrupção decisão volitiva, quando mais considerando que eles continuavam a viver urbanamente, mantendo suas profissões, relações familiares e deveres cívicos. Os apelos da sociedade não são desconsideráveis, as tentações recaiam que as formas acomodadas de estruturar as relações sociais conferiam mais estabilidade e previsibilidade à vivência, e por serem incutidas ao longo da vida de forma difusa, intensiva e expressiva, estavam introjetadas no inconsciente as fórmulas e processos de recompensa, submissão, satisfação e dependência. Poderia acontecer dos cristãos serem cooptados e com formatos particulares à sua religião, reproduzirem as lógicas de aspirações, dilecções e deferências nobiliárquicas imperiais.

Isto estava subjacente e permeando as divisões em facções na comunidade de Corinto: I Co. 1,1-4,9. O caráter desses partidos era articulado em torno de identificação com status de classe e afinidades com hierarquias de valorizações intelectuais em Corinto. Desta forma perdia-se de vista o discernimento da fonte do valor próprio brotando da união com o Messias Crucificado, dos dons serem outorgados por Deus por meio do Espírito para edificar a comunhão plena dos vocacionados, independente de qualquer reivindicação de mérito inato ou conquistado.

I Co.4, 7: Pois quem te distingue? Que possuis que não tenhas recebido? E se recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não tivesses recebido?
Na sociedade greco-romana, os patronos acomodavam os membros de sua própria classe social elevada no triclinium (cômodo especial, o melhor da casa), ao passo que os demais eram servidos bem à vista do triclinium, isto é, no atrium (os divãs que podiam acomodar, sentados, até quarenta pessoas). Aos convidados acomodados na sala mais espaçosa eram servidos comida e vinho inferiores, e com frequência se queixavam da situação. [41]

A expressão máxima da assimilação dos motivos e medidas de valor, do discurso de legitimação dos poderes imperiais e modus operandi nobiliárquico romano se dava no encontro de principal significação para a comunhão cristã nascente, a “Ceia do Senhor.” - I Co. 11,17-34. Nela se vê engendrada a estruturação dos tratos interclassistas. Se incorporava as representações e sentidos de status, dignidade de estima, valor humano, nos jogos de posições, ostentações, classificações, de acordo de como se dispunham os membros das comunidades, e os comes e bebes do encontro sagrado. Os papeis de cada indivíduo eram distribuídos segundo estereótipos estabelecidos nas convenções sociais, assim como simbolicamente, as porções e usufrutos daquilo que deveria ser partilha de boa-vontade e alegria para expressar a novidade de vida.

"Embora fosse o lugar de o patrono exibir sua riqueza, elogiar a si mesmo e recompensar o serviço de seus clientes, a mesa do jantar era o lugar em que os clientes tinham de cumprir seu dever, ainda que lhes causasse inconvenientes. O alimento era o primeiro testemunho de suas posições desiguais. Não era incomum que os satiristas protestassem contra o oferecimento a clientes de comida e vinhos inferiores, enquanto se serviam comida e vinho superiores ao anfitrião e seus honoráveis amigos. A distribuição dos lugares contava a mesma história. O lugar de honra ou a terceira posição na mesa do meio, às vezes próximo do anfitrião, era reservado ao principal convidado. Os clientes comuns teriam compreensivelmente de ocupar lugares menos honrados, o mesmo ocorrendo com os libertos. Os escravos e os pobres tinham simplesmente de jantar sobre um tapete ou encostados na parede. Mas a diferença entre o patrono e seus clientes ia além disso. Porque para ser um cliente bem-sucedido, era preciso seguir a regra de ouro, ou seja, agradar o patrono e tentar adaptar-se à sua opinião. “ [42]

Reproduzindo essas relações oligárquicas, o Encontro se deslegitimava como espaço de culto, de comunhão com o sagrado – 11,20, se convertendo em profanação – 11,27, 29. Incorporando os critérios de sucesso do discurso do status quo, incorriam em fracasso com a santidade, fraternidade e honra sob o prisma de serem um novo povo, 11, 28-30.



Não se alegra com a injustiça: considerações em ética


Em muitos períodos da história vive-se essa tensão nas comunidades cristãs, entre o que se renega dos padrões de valor próprio da sociedade, o que se contrapõe e como, o que pode ser mantido como referencial válido. A grande tentação é a de capitular, fazendo o inverso da orientação evangelista: instrumentalizar signos, termos, símbolos e retóricas cristãs para legitimar e saudar discursos de valores pessoais, méritos, dignificações, superioridade, influência, supremacia, elitismo; “naturalizações” de poderes hierárquicos que incitam estigmatização, soberba, exploração, humilhação, inveja, a primazia em sobrepujar e levar vantagem sobre o próximo para conquista de conveniências, para o orgulho ostentatório, para sobrepujar social e economicamente, para adquirir privilégio e preponderância de classe.

A vontade de dominar, estigmatizar, bem como uma configuração social desigualitária e inequânime estruturada neste norte, muitas vezes é travestida, paradoxalmente, de “defesa dos valores e da tradição cristã”, quando acaba sendo realmente uma negação do que se constituía a grande subversão da mensagem evangélica ante ideais sociais assim. Se o cristianismo antes virava o discurso de legitimação imperial contra si mesmo, pode ocorrer de cristãos inverterem a coisa.

A contraposição, calcada em fundamentos da adoção e vocação em graciosidade pelo Deus em quem esperavam participar de um projeto renovador da criação (II Co. 5,17), pautando desta forma a compreensão igualitária, empática e altera, se diferenciando da sociedade oposta a isto na compreensão da “santidade”, das novas noções de honra e vergonha opostas as que eram usadas pra justificar a nobiliarquia da sociedade patriarcal e plutocrática romana, se perdida de vista, acarreta em despedaçar o “Corpo” do Messias no espírito corporativo da comunidade.

Espero que este estudo ajude nesta tarefa, em que isso deve ser constantemente evocado e refletido entre os que se consideram cristãos, quando veem ampliar as oportunidades econômicas e sociais; quando se diversifica a composição das condições econômicas e de “status” social, entre os membros, as posições na sociedade se ramificam e capilarizam, e seu poder de influenciar e de afetar a feição política se amplia. Deveriam se pôr no lugar de grupos estigmatizados e marginalizados, e entender sob o prisma do que já sofreram, não simplesmente pensando “agora nós podemos” e descontando em outros. Considerar se estão sendo pautados pela sede de brilho e destaque elitista. Se reforçam as estratificações sociais baseadas em estereótipos. Sem ceder aos apelos que predominam de chauvinismo e acepção de pessoas. Isto é adorar “o Deus deste mundo”, pois é a lógica de poder, representação e estima do sistema histórico vigente.

O exemplo de Corinto é vigoroso; infelizmente mostra como transigir com a busca de poder e honra competitiva se torna uma tônica; no final do século I, algumas poucas décadas após a morte de Paulo, novamente se escrevera uma Carta aos Coríntios, desta vez por parte de Clemente, um dos presbíteros da igreja em Roma:

Capítulo 1, vs 1:
Por causa das desgraças e calamidades que repentina e continuamente se abateram sobre nós, talvez estejamos a tratar tardiamente dos acontecimentos que se deram entre vós, meus caros, e daquele motim, não conveniente a eleitos de Deus, iniciado por algumas pessoas irrefletidas e audaciosas, de uma forma sórdida e ímpia, surgido de tal ponto de loucura, que o vosso nome, dantes estimado, acatado e celebrado por todos, fosse seriamente denegrido.
Capítulo 46:
5 - Por que entre vós existem disputas, ódios, contendas, cismas e guerras?
6 - Acaso não temos um só Deus, um só Cristo e um só Espírito da graça derramado sobre nós e uma só vocação em Cristo?
7 - Por que insistimos em separar e despedaçar os membros de Cristo, nos
revoltando contra o próprio corpo, chegando a uma loucura tal que nos esquecemos que somos membros uns dos outros? Lembrai-vos das palavras de Nosso Senhor Jesus,
9 - Vosso cisma perverteu a muitos, atirou muitos no desânimo, colocou muitos na dúvida, entristeceu-nos a todos. E vossa revolta se prolonga...
47:
7 - E tal rumor não chegou apenas até nós, mas atingiu também a outros que possuem as mesmas convicções que nós, a ponto de se proferirem blasfêmias ao nome do Senhor por causa da vossa insensatez, por armar perigo para vós próprios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS

1 - E. A Judge, citado por JEWETT, Robert, “Paulo, a vergonha e a honra”, em SAMPLEY, J. Paul (org.), Paulo no mundo greco-romano: um compêndio. São Paulo: Paulus, 2008. Pg. 488

2 – O estudo mais proeminente sobre a crucificação e sua carga no imaginário dentre os povos no império romano continua sendo o clássico: HENGEL, Martin. Crucifixion in the Ancient World & the Folly of the Message of the Cross. Philadelphia, PA. Fortress Press, 1977

3 – HENGEL, Martin. Property and Riches in the Early Church: Aspects of a Social History of Early Christianity, Philadelphia Fortress Press, 1974.


4 – HURTADO, Larry. As Origens da Adoração Cristã: o caráter da devoção no ambiente da igreja primitiva. São Paulo: Vida Nova, 2011. pgs. 18 e 23.

5 – MALINA, Bruce J. The New Testament World: Insights from cultural Anthropology.  Louisville: Westminster John Knox Press, 1981 (3rd Revised Edition, 2001). pg 27.

6 – APPIAH, Kwame Anthony. O Código de Honra: Como ocorrem as revoluções morais. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. pg 185

7 – ibid, pg 17.

8 - ibid, pg. 35

9 – ibid, pg. 34

10 – SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Bullyin: Mentes perigosas na escola. São Paulo: livraria da Folha, 2010.

11 - APPIAH, op. cit., pg. 34

12 – TAYLOR, Charles. A Ética da Autenticidade. São Paulo: Realizações Editora, 2011. pg. 43

13 – ibid, pg. 58

14 – APPIAH, op. cit., pgs. 181, 182, 183

15 - WALZER, Michael. Das Obrigações Políticas: Ensaios Sobre Desobediência, Guerra e Cidadania. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. pgs 20-27.

16 – APPIAH, op. cit., pg. 181.

17 - CRAVEIRO, Renato de Souza Marques. O direito à honra Post Mortem e sua tutela. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. USP, São Paulo, 2012. pg. 26

18 - Estrabão, Geografia 8, 6-19.

19 - BAROJA, Júlio C. 1971 [1965]. “Honra e Vergonha: exame histórico de vários conflitos”. In J.G. Peristiany (org.). Honra e Vergonha: valores das sociedades mediterrâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

20 - SHIPLEY, G. 2000. The Greek World After Alexander 323-30BC. London: Routledge pg 384-385

21 – SCHENELLE, Udo. Paulo: vida e pensamento. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2010. pg. 236

22 - CARREZ, M. Primeira carta aos coríntios. São Paulo: Paulinas, 1993. pg. 56

23 – CHOW, John K. “Patronato na Corinto Romana”, em HORLSEY, Richard H. (org.) Paulo e o império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004. pg. 122

24 – LEMPE, Peter. “Paulo, os Patronos e os Clientes”, em SAMPLEY, J. Paul (org.), Paulo no mundo greco-romano: um compêndio. São Paulo: Paulus, 2008. Pg. 429.

25 - GLAD, Clarence E.. “Paulo e a Adaptabilidade”, em SAMPLEY, J. Paul (org.), Paulo no mundo greco-romano: um compêndio. São Paulo: Paulus, 2008.

26 – HURTADO, op. Cit., pg 18

27 – PRICE, S.R.F. “Rituais e Poder”, em HORLSEY, Richard H. (org.) Paulo e o império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004. pg. 76.

28 - PRICE, S.R.F. op. cit. pg. 66

29 – Em uma passagem escrita no século I a.C. Pelo o filósofo e advogado Marco Túlio Cícero, podemos ver a expressão máxima de vergonha e horror que representava ser crucificado: "um castigo muitíssimo cruel e repugnante". (...)"Atar um cidadão romano e crime, chicoteá-lo e abominação, matá-lo e quase um ato de assassínio: crucificá-lo e — o que? Não ha palavras que possam descrever ato tao horrível". Em um discurso advogando pelo senador Gaio Rabirio, acusado de homicídio: "a própria palavra cruz deve ser removida para longe não apenas da pessoa do cidadão romano, mas também de seus pensamentos, olhos e ouvidos. Pois não e somente a ocorrência destas coisas ou a capacidade de suportá-las, mas a possibilidade delas, a expectativa, deveras, a mera menção delas, que e indigna de um cidadão romano e de um homem livre". Em: Against Verres II. V. 64, paragrafo 165. e V. 66, paragrafo 170. Observa-se que a preocupação condenatória se restringiu a cidadãos romanos.


30 – HURTADO, Larry. Senhor Jesus Cristo: devoção a Jesus no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2012. pg. 82

31 – KEENER, Craig. S. Comentário Bíblico Atos: Novo Testamento. Belo Horizonte: Atos. 2004. pg. 469.

32– CHOW, op. cit. pg. 123

33 – DESTRO, Adriana e PESCE, Mauro. Formas Culturais do Cristianismo Nascente. Aparecida: Editora Santuário, 2010. pg. 68

34 – ibid, pg. 68, 70 e 71.

35 – WRIGH, N. T. Paulo: Novas Perspectivas. São Paulo: Edições Loyola, 2009. pgs. 146 e 155.

36 – DESTRO e PESCE, op. Cit., pg. 76

37 – ibid, pg. 85

38 – HORSLEY, Richard. H. “I Coríntios: estudo de caso da assembleia de Paulo como sociedade alternativa”, em HORSLEY, op. cit, pg. 244.

39 – DeSILVA, Daniel A. A Esperança da Glória: Reflexões sobre a honra e a interpretação do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2005. pg. 237

40 – ibid, pg. 227

41 – KEENER, op. cit., pg 494.

42 – CHOW, op. cit. pg. 127

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