domingo, 8 de setembro de 2013

O purgatório dos fariseus e o estágio intermediário da alma




Como é sabido, o cristianismo católico desenvolveu o conceito de purgatório ao longo de seu desenvolvimento histórico-teológico. Mas enfim, estariam os cristãos católicos solitários acerca dessa noção do estágio intermediário da alma? Nos parece que não.

De acordo com o cristianismo da Igreja Ortodoxa, os mortos vão para o chamado Hades. Lá as almas ficarão à espera do julgamento final. No entanto, estarão divididas: os pios estarão no chamado Seio de Abraão e os ímpios estarão em um local de tormentos, bem separados uns dos outros.


No Islamismo temos o Barzakh, um estágio posterior à morte no qual os indivíduos ficam à espera do julgamento final em um processo de descanso [ou de punições]. Também encontramos o Araf. Este estágio se refere àqueles que conseguiram fugir do inferno, mas que não estão ainda aptos a entrar no paraíso. No Zoroastrismo encontramos o chamado Hamistagan, um estágio, de certa forma, neutro semelhante ao Barzakh ou ao Limbo católico.

Como é possível perceber, todas essas antigas tradições: o Cristianismo, o Judaísmo, o Zoroastrismo bem como o Islamismo desenvolveram concepções acerca de um estágio intermediário da alma post mortem. Neste sentido, a postulação da não-existência de um estágio intermediário da alma é pois uma anomalia as essas tradições, as quais, apesar da aparente diversidade, possuem núcleos íntimos de interdependência.

No Judaísmo temos o chamado Gehinon (ou a Geena), “local” de purificação no qual a alma passará por um período máximo de doze meses, de acordo com as faltas cometidas em vida. “A dor espiritual do Guehinon – o sofrimento da alma ao enfrentar a verdade da sua vida – purifica e cura a alma das manchas e falhas que seus erros provocaram nela. Livre desta camada de negatividade, a alma agora está apta a apreciar realmente o imenso bem que sua vida engendrou e "banhar-se na radiância Divina" emitida pela Divindade que trouxe ao mundo.”

Interessante o fato de que, de acordo com o judaísmo, os vivos terem a possibilidade de atenuar o período do sofrimento de seus entes queridos no Guehinon. Isso se dá através das orações do Kaddish em intercessão ao ente que se foi.

Em um pequeno artigo publicado em 2010, elenquei alguns elementos sobre o chamado "Seio de Abraão", comentado sobre a geografia deste "lugar" no post mortem cristão e judaico. Neste novo texto, pretendo desenvolver um pouco mais a questão da geografia do além, procurando enfocar tipicamente o pensamento farisaico sobre o tema.

 
Painel da Sinagoga de Dura-Europos:"anjo" revive 
indivíduos no Sheol. Interpretação pictórica 
de passagem do Livro de Ezequiel.




Tratado sobre o começo do ano (Ros Ha-Sana


"Ensina-se, segundo a escola de Shammay: no julgamento haverá três grupos: os dos justos perfeitos, os dos ímpios perfeitos e dos intermediários. Os justos perfeitos são logo lançados e confirmados para a vida do século; os ímpios perfeitos são logo lançados e confirmados para a geena, segundo o que é dito (Daniel, XII, 2). Quanto aos intermediários, descem à geena, ficam enclausurados e voltam a subir, segundo o que é dito (Zacarias, XVIII, 9 e I, Samuel, II, 6). Mas os hilelitas dizem: aquele que abunda em misericórdia, tende para a misericórdia, e é destes que fala David (Salmo CXVI, I) ao afirmar que Deus escuta e pronuncia em relação a eles todo este trecho... pecadores israelitas e estrangeiros que pecaram no seu corpo, punidos com a geena durante doze meses e depois aniquilados." [citado por LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p.58-9]

Tratado sobre os tribunais (Sanhedrin)

"Os da escola de Shammay dizem: há três grupos, um para a vida do século, o outro para a vergonha e o desprezo eternos; são os ímpios perfeitos, dos quais os casos menos graves descem à geena para lá serem punidos e voltam a subir curados, segundo Zacarias, XIII, 9; é deles que se diz (I Samuel, II, 6): Deus dá a morte e vivifica. Os hilelitas dizem (Êxodo, XXXIV, 6) que Deus abunda em misericórdia; tende para a misericórdia e deles David diz todo o trecho do Salmo CXVI, I. Os pecadores de Israel, culpados no seu corpo, e os pecadores das nações do século, culpados no seu corpo, descem à geena para lá serem punidos durante doze meses, depois as suas almas são destruídas e os seus corpos queimados e a geena vomita-os, tornam-se cinza e o vento dispersa-os sob os pés dos justos (Malaquias 4,3,2,21)."[citado por LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p.59]

Hillel e Shammay são lideranças do protorabinato farisaico que exerceram profunda influência no pensamento judaico, tendo estabelecido duas escolas centrais para o estudo da Torah. A Beit Hillel [Casa de Hillel ou Academia de Hillel] e a Beit Shammay [Casa ou academia de Shammay]. Em termos sintéticos, a escola de Shammay tradicionalmente assumia uma postura mais estrita e rigorosa quanto à interpretação da Torah, atendo-se mais à literalidade do texto. Já a tradição de Hillel é mais liberal, procurando analisar a Torah a partir da essência dos seus conteúdos.

É possível argumentar que Jesus tenha tido contato com o ensinamento destas escolas, dado que podemos verificar "ecos", notadamente de Hillel, nos ditos de Jesus, mas também algumas tendências de Shammay, em menor número. O fato, neste caso, que nos interessa é que tanto Jesus quanto seus seguidores se encontravam neste ambiente do judaismo do Segundo Templo no qual, tal como pudemos perceber através dos dois tratados, a concepção sobre a geena como um local intermediário já era um dado. Havia uma discussão entre as duas escolas, mas a idéia do intermedium já estava posta.

Vamos sintetizar:

Para Shammay:

1 - Existem 3 grupos de indivíduos: justos perfeitos, ímpios perfeitos e intermediários.
2 - Os justos perfeitos são lançados para a vida. Os ímpios perfeitos serão lançados à geena e por lá ficarão eternamente. Os intermediários ficarão um tempo na Geena, ficarão enclausurados, serão punidos, mas após um determinado período subirão de lá curados. 3 - Ou seja, há em Shammay a idéia de que determinados indivíduos, devido ao fato de não serem nem totalmente justos, nem totalmente pecadores, passarão por um processo purgatório de punição e enclausuramento, com vista à cura.

Painel completo da Sinagoga de Dura-Europos - "anjo" revive
mortos e estes migram novamente para a vida. Interpretação
pictórica de passagem do Livro de Ezequiel.
Para Hillel:

1 - Hillel, no entanto, não faz esta divisão tripartite. Para ele a punição para o pecado não será eterna. Ela terá um prazo de doze meses na Geena. Após este período, suas almas serão destruídas e seus corpos serão queimados. 2 - O entendimento misericordioso da concepção de Hillel se dá no fato de que a seu ver não existe punição eterna. Existe um prazo demarcatório de 12 meses para a punição na Geena. Após este período, no entanto, não haverá a cura da alma [tal como proposta por Shammay para os intermediários]. A alma dos pecadores será aniquilada.

A visão tripartite de Shammay confere àqueles casos intermediários uma possibilidade de redenção. Após a punição, as almas serão curadas. Por outro lado, para aqueles ímpios imperfeitos, o sofrimento será eterno na Geena. Hillel é mais brando quanto à punição, demarcando-a temporalmente. No entanto, não há possibilidade de redenção para este rabi.

Vamos ver um relato de Flávio Josefo sobre os fariseus.

"Os fariseus vivem de forma humilde e desprezam as delícias na dieta. Eles seguem a conduta da razão e o que eles prescrevem a eles como bom, eles assim o fazem. Eles pensam que deveriam honestamente se dedicar a praticar aquilo que a razão lhe dita.  Eles também prestam respeito aos de elevada idade de tal modo que nem ousam contradizê-los.  Atribuem ao destino tudo o que acontece, sem, todavia, tirar ao homem o poder de consentir. De sorte que, sendo tudo feito por ordem de Deus, depende, no entanto, da nossa vontade entregarmo-nos à virtude ou ao vício. Eles julgam também que as almas são imortais, e que sob a terra elas serão recompensadas ou punidas, de acordo com o que elas fizeram de forma virtuosa ou viciosa nesta vida. As últimas serão detidas em uma prisão eterna, mas as primeiras terão o poder de reviver e viver novamente. Por tais doutrinas eles são poderosamente capazes de persuadir o corpo da população. E tudo o que eles fazem sobre o culto divino, orações e sacrifícios, eles o fazem de acordo com esta direção. Assim, cidades inteiras dão testemunhos valiosos de sua virtude, de sua maneira de viver e de seus discursos." [JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas, Livro XVIII, cap.I, § 3. Trad. própria]

Cruzando as referências do texto de Flávio Josefo com os dois tratados, temos finalmente uma compreensão clara sobre o que eles nos dizem quando afirmam:

a) " Quanto aos intermediários, descem à geena, ficam enclausurados e voltam a subir, segundo o que é dito (Zacarias, XVIII, 9 e I, Samuel, II, 6)." ou; b) quais os casos menos graves descem à geena para lá serem punidos e voltam a subir curados, segundo Zacarias, XIII, 9; é deles que se diz (I Samuel, II, 6): Deus dá a morte e vivifica.

Trata-se pois da reencarnação???

Os indivíduos nem perfeitamente justos, nem perfeitamente ímpios vão para a Geena passar por um processo de punição e cura. Após este processo, eles retornam para uma nova encarnação.
Josefo fala desta crença com relação aos fariseus em geral. Mas pelo que podemos perceber, esta era uma crença defendida pelos seguidores de Hillel.

Quer nos parecer que a base conceitual da idéia cristã sobre o purgatório já estava assentada na tradição judaica da escola de Shammay.

"E muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão, como o resplendor do firmamento: e os que ensinam a muitos a justiça serão como as estrelas, por toda a eternidade." [Daniel, 12:1-3]

[Ressurreição: Macabeus 7:9+]

"Em verdade, e verdade, vos digo: quem escuta a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não vem a julgamento, mas passou da morte à vida. Em verdade, em verdade, vos digo: vem a hora — e é agora — em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que o ouvirem, viverão. Assim como o pai tem a vida em si mesmo e lhe deu o poder de exercer o julgamento, porque é Filho do Homem. Não vos admireis com isto: vem a hora em que todos que repousam nos sepulcros ouvirão sua voz e sairão; os que tiverem feito o bem, para uma ressurreição de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de julgamento." [João 5,24-30]


Referências Bibliográficas:

JEWISH ENCYCLOPEDIA. Eschatology.
JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas.
LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

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