sexta-feira, 29 de maio de 2009

Os antigos cristãos também pichavam!


É o que relata Ben Witherington III neste artigo da Biblical Archeology Review. De acordo com o texto, a pichação era um fenômeno frequente na antiguidade. Contrariando os meus próprios supostos de que a pichação era um fenômeno dos meios urbanos modernos, o texto mostra como exemplo os achados de Pompéia, no qual foram contabilizados mais de 10 mil pichações notadamente de cunho político.

Escavações em Esmirna revelaram as possíveis mais antigas pichações cristãs, datadas do século II d.C. Em um destes escritos, podemos ler "aquele que nos tem dado o Espírito" como referência a Jesus.

Estas descobertas mostram um grau bem mais elevado de capacidade literária no mundo antigo, transcendo as estimativas de até então. Surpreendente e intrigante!

Ps. Maiores informações também podem ser encontradas no blog do Ben Witherington.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Cito um absurdo


Trago um pequeno comentário para desfazer um grande mal-entendido a respeito de uma suposta citação de um importante sistematizador da fé cristã. Muitas vezes tal citação, distorcida, tem sido usada para postular comentários de teores diversos.

Atribui-se a Tertuliano de Cartago a frase “Creio porque é absurdo”. Às vezes, chegam a dizer que deriva do original “credum ad absurdum”. Delfim Neto, ex-ministro da economia, chegou a atribuir a frase a Santo Agostinho, numa de suas colunas na revista Carta Capital.

A citação original em Latim, encontrada no livro A Carne de Cristo, 5, é:

Crucifixus est dei filius; non pudet, quia pudendum est. Et mortuus est dei filius; credibile prorsus est, quia ineptum est. Et sepultus resurrexit; certum est, quia impossibile.


A tradução seria:

O Filho de Deus foi crucificado: não me envergonho, porque vergonhoso é. O Filho de Deus morreu; é absolutamente crível, porque é insensato. Ele foi sepultado, e se levantou novamente; é certo, porque impossível.



Quinto Sétimo Florêncio Tertuliano nasceu na atual Tunis, por volta de 160 d.C. Se convertera ao cristianismo por volta de do ano 197. Trabalhara como advogado em Roma. Escritor prolífico e dotado de uma retórica extremamente arguta, teria sido responsável pela criação de 509 novos substantivos, 284 novos adjetivos e 161 verbos na língua latina[1]. Foi o criador do termo “Trindade”, do latim, Trinitas; introduzira o termo latino Persona para traduzir o grego Hypostasis.

Ele se engajara num debate acirrado acerca do relacionamento das matizes de racionalidade das filosofias gregas com a fé cristã. Tertuliano era bem cético a respeito, temendo uma deturpação do cristianismo, e se posicionou de forma bem crítica, de forma diametralmente oposta a de Clemente de Alexandria.

Escreve em Prescrição de Hereges, 7:

Ele [Paulo] esteve em Atenas e teve em sua entrevista com os filósofos familiarizando-se com aquela sabedoria humana que pretende conhecer a verdade. De fato ela apenas corrompe e está ela mesma dividida em suas próprias heresias múltiplas pela variedade de suas seitas mutuamente hostis. O que de fato tem Atenas a ver com Jerusalém? Que harmonia há entre a Academia e a Igreja? Que tem os hereges a ver com os cristãos? Nossa instrução vem do pórtico de Salomão, o mesmo que ensinou que o Senhor deve ser buscado com simplicidade de coração. Fora com todas as tentativas de produzir um cristianismo estóico, platônico, e dialético. Nós não queremos nenhuma disputa curiosa senão possuir a Cristo Jesus, nenhuma especulação senão desfrutar o evangelho. Com nossa fé, nós não desejamos nenhuma crença incrementada. Porque esta é a nossa crença fundamental: não há nada mais que não deveríamos crer além desta.


Nessa passagem que abrange a distorcida e desgastada citação, ele polemiza especialmente com o sistema aristotélico. Tertuliano declarara: Infeliz Aristóteles! Que inventou para estes homens a dialética, a arte de edificar e de demolir; uma arte tão evasiva nas suas proposições, tão forçada nas suas conjeturas, tão áspera nos seus argumentos, tão produtora de contendas...retraindo tudo e realmente não tratando de nada!

E usa o texto supracitado em latim para ironizar, ao estilo da retórica indissiocrática de Tertuliano, um argumento de Retórica, de Aristóteles, que justamente apregoava que uma afirmação pode vir a ter um caráter tão extraordinário que precisamente por isso pode atingir a verdade.


[1] – McGRATH, Alister. TEOLOGIA: sistemática, histórica e filosófica – uma introdução à teologia cristã. Shedd Publicações, Santo Amaro. 2007. pg 375.

Jesus como Mestre e Sábio: Na visão das fontes não cristãs do século I e II - Parte 4 - Galeno

Com este post chegamos ao final de nossa série sobre Jesus, como mestre e sábio. Após Josefo, Mara Bar-Serapion e Luciano, é a vez de Galeno, o filósofo, médico da corte imperial e eminente figura, que viveu na segunda metade do século II DC.

Galeno

Claudio Galeno ou Galeno de Pergamo (129-199 DC), iniciou-se na filosofia no ano 143. Quatro anos depois, ele passou a se interessar pela anatonia, e após a morte de seu pai, foi estudar medicina em Esmirna, Corinto e Alexandria. Em 157 DC ele se tornou médico da Escola de Gladiadores em Pergamo. Já no ano 161, ele deixou Pergamo e foi para Roma, onde trabalhou por cerca de 40 anos como Médico da Corte Imperial, nos reinados de Marco Aurélio, Cômodo e Sétimo Severo. Neste período, ele escreveu numerosos tratados, sobre vários assuntos, como anatomia, medicina e filosofia. [28]

Galeno fez quatro breves referências aos cristãos em seus escritos [28]:

"Pode-se ensinar coisas novas com mais facilidade aos seguidores de Moisés ou Cristo do que aos médicos e filósofos que se apegam a suas escolas" (De pulsuum differentiis, iii.3)

"Melhor seria apresentar alguma demonstração, boa ou má, mas uma razão suficiente, a fim de que logo e desde o início não se ouça falar - como quem se põe na Escola de Moisés ou de Cristo - de leis não demonstraveis e justamente na área em que são menos apropriadas" (De pulsuun differentiis, ii. 4) "

O parágrafo abaixo é encontrado apenas em citações em arábico:
"Se eu tivesse em mente aqueles que ensinam a seus pupilos da mesma forma que os discípulos de Moisés e Cristo ensinam os deles - pois eles os ordenam a aceitar tudo pela Fé-- Eu não teria dado uma definição."

Assim como esta referência, do Sumário elaborado por Galeno da República de Platão, (uma obra perdida), que é encontrado apenas em citações em textos em árabe.

"A maioria das pessoas não é capaz de acompanhar qualquer demonstração racional contínua; Assim, eles precisam de parábolas, para seu próprio benefício (...) Da mesma forma, nos vemos hoje essas pessoas chamadas de cristãos, que extraem sua fé de parábolas e milagres, ainda que algumas vezes agindo da mesma maneira (daqueles que filosofam). Pois seu desprezo da morte (e suas consequências) nos é manifesto todos os dias, assim como sua continência em coabitar. Por que eles incluem não só homens, mas também mulheres que se dedicam ao celibato, assim como numerosos indivíduos que, em auto-disciplina e auto controle em questões de bebida e comida, e por sua sedenta busca pela justiça, que atingiram uma condição não inferior a dos verdadeiros filósofos"[28]

Galeno foi contemporâneo de Luciano de Samosata e Celso. Assim como estes, foi crítico do que ele considerava a falta de bases racionais da fé dos cristãos. Contudo, ele também reconheceu alguns méritos da nova religião.

Prof. Margareth Y. MacDonald, da St. Francis University (Canadá), observa que o último texto de Galeno, (o mais longo, e mais relevante) se baseia em uma fonte arábica traduzida e publicada por Richard Walzer em "Galen on Jews and Christians" (Londres, Oxford University, 1949). Ainda que exista o risco teórico do texto se tratar ou conter interpolações cristãs, os estudiosos, como Stephen Benko e Robert L. Wilken, tem tratado o texto, consistentemente, como genuíno [29]. Em vista da autenticidade do texto não ser contestada seriamente, passamos agora a análise de seu conteúdo.

Margareth Mac Donald:
"Ainda que Galeno tenha sido crítico da falta de uma base racional para as crenças cristãs, sua rigorosa devoção a abstnência o levou a descrever seu modo de vida como característico daqueles que eram filósofos. O fato que Galeno se referia ao cristianismo como escola filosófica e não superstição, como outros critícos haviam feito, nos lembra a aceitação que os primeiros cristãos podem ter recebido no mundo greco-romano, mesmo nos círculos elitizados" [30]

Professor Stephen Benko, Universidade do Estado da California
"Poderíamos listar ainda mais apologistas, mas o ponto central já esta claro: estes cristãos queriam que a igreja fosse respeitada como um dos muitos movimento filosóficos existentes.
Galeno realmente considerava a igreja dessa forma, marcando assim uma mudança substancial da visão dos pagãos relativa ao cristianismo. Para Galeno, os cristãos não eram conspiradores perigosos ou canibais abomináveis, mas seguidores de uma escola filosófica. Dessa forma, Galeno (embora não o público em geral) conferiu ao cristianismo uma certa respeitabilidade, e os cristãos tornaram-se socialmente aceitáveis. Entretanto, Galeno não estava satisfeito com a filosofia cristã. Ela lhe parecia sem uma base racional, ainda que os cristãos se apegassem a um modo de vida peculiar. Para o cientista e estudioso, acostumado a demonstrar a verdade e rejeitar evidências "de ouvir falar", esta aceitação de tudo pela fé parecia infantil e primitiva.
(...) Ainda assim, Galeno foi um observador simpático ao cristianismo. Ainda que ele criticasse a falta de treinamento filosófico dos cristãos, ele apreciava suas virtudes morais. Ele louva a coragem deles diante da morte, sua aceitação da privação física, e sua continua busca pela justiça. Segundo Galeno, a despeito de suas limitações, os cristãos agiam como verdadeiros filósofos"
[31]

Prof. Robert M. Grant, da Universidade de Chicago, também observa a insatisfação de Galeno com as bases racionais e filosóficas do cristianismo, e também seu louvor ao comportamento moral dos cristãos.

"Galeno escreve em três ocasiões diferentes, sobre leis não demonstradas aceitas pelos discípulos de Moisés e Cristo, possivelmente entre 176-180, mas já diferencia os cristãos por volta de 180. Ainda que não fossem filósofos, eles desprezavam a morte, exerciam auto-controle na sexualidade, comida e bebida, e buscavam a justiça. Walzer compara a admiração de Galeno por escravos incultos que em 185 foram torturados mas não trairam seus mestres. Ainda mais importante, Galeno trata o comportamento dos cristãos de forma similar ao encontrado nas "Exortações atribuidas a Pitágoras", que ele lia duas vezes por dia; Eles favoreciam não só o desapego de Epicuro da raiva, mas sua pureza no que concerne a glutonaria, luxúria, embriaguez, intromissão e inveja. Por essa época, ditos morais Pitagóricos eram atribuidos ao autor cristão Sextus" [32]

Galeno, a respeito de suas reservas quanto a solidez filosófica e racionais do cristianismo, tinha os valores morais da nova religião em alta conta, e atribuia isso ao ensinos encontrados nos evangelhos. A "Escola de Cristo" conseguia transformar pessoas simplórias em seres humanos disciplinados, corajosos e ansiosos pela justiça, "verdadeiros filósofos".

Sobre o impacto que a figura de Cristo e seus ensinos tiveram, vale observar que algumas décadas depois de Galeno, já em meados do século III, Mani (216-276 DC), um filósofo que vivia na distante Mesopotâmia (atual Iraque), então sob dominio do Império Parto, fundaria um sistema religioso que combinava ensinos de Jesus, Zoroastro e Buda, chamado Maniqueismo, que rapidamente se tornaria popular entre as elites do Império Romano, e se expandiria da China ao confins ocidentais do mundo Romano nos séculos seguintes.

Outro caso é citado por John P. Meier, que observa que já no início do século III, o Imperador Alexandre Severo (222 a 235 DC), mantinha em sua capela particular imagens de vários imperadores divinizados, de Alexandre Magno e de vários homens santos, como Apolônio de Tiana, Jesus Cristo, Abraão e Orfeu [33]. Meier faz a significativa ressalva de que a fonte dessa informação é a problematica e, muitas vezes, pouco confíavel, "História Augusta" - uma coleção de biografias de Imperadores entre Adriano (117-138) e Numeriano (283-284), supostamente escrita por seis diferentes autores no início do séc. IV, hoje considerada pelos estudiosos como produto de um único autor por volta do final do século IV [33][34]. No entanto, apesar de suas limitações "Historia Augusta" ainda é uma das fontes principais ( e as vezes a única) de informações históricas para muitos os Imperadores Romanos dos séculos II e III, mesmo para figuras como Marco Aurélio, Adriano, Antonino Pio e Lucio Vero, trazendo informações que variam do "preciso e acurado até o evidentemente fictício" [34]

Concluindo, é fato que os cristãos nos séculos II e III foram vistos com desconfiança e hostilidade pelas elites judaicas e greco-romanas. O cristianismo era, na visão de muitos observadores externos, uma superstição; nova e maligna (Suetônio, De Vita Nero, 16:2), depravada e irracional (Plínio, Cartas 10:96) e "daninha" (Tácito, Anais 15:44).

No entanto, esta não é história completa. Temos em Galeno um eco do Jesus o "homem sábio" de Josefo, e da surpresa de Plínio, que mesmo sendo hostil ao cristianismo e o considerando uma "superstição irracional e sem medida", nada encontrou além de pessoas que se reuniam para cantar hinos ao seu Mestre se comprometendo "sob juramento, não com algum crime, mas a abandonar o furto, o roubo, o adultério, a infidelidade e não se apossar dos bens a eles confiados".

Ao passo que muitos dos membros da elite do Império frequentemente tinham uma visão pejorativa dos cristãos, os seus méritos não passaram desapercebidos. Vemos em Galeno, um membro distinto da elite romana, a continuidade de uma tendência, já incipiente em observadores anteriores de ver algumas virtudes no cristianismo, principalmente na figura de Cristo como Mestre de verdades morais. E que se intensificaria um pouco mais (em críticos como Porfírio). Nesse contexto, é possível entender Josefo se referindo a Jesus como "homem sábio" e mestre.

O Jesus Mestre e Sábio é apenas uma das facetas de sua personalidade, o elemento que parece mais ter chamado a atenção de observadores simpáticos ou neutros. Não nos atrevemos, no entanto, a descrever tal figura na sua totalidade, pois, suspeitamos, parafraseando aqui o evangelho, "que nem toda a tinta e papel do mundo seriam suficientes".

Bibliografia e Referências:
[28] Robert M Grant (2003), "Second Century Christianity", fls. 10-12 (2ª edição revisada e expandida do original de 1945).
[29] Margareth Y. MacDonald (1996), Early Christian Women and Pagan Opinion, fl. 82, nota de rodapé
[30] Margareth Y. MacDonald (1996), Early Christian Women and Pagan Opinion, fl. 82
[31] Stephen Benko (1986), Pagan Rome and Early Christians, fls. 144-145
[32] Robert M. Grant (2003), Second Century Christianity - A Colection of Fragments, fl.11
[33] John .P Meier (1994), O Judeu Marginal, Volume II, Livro 3, fl. 93
[34] Herbert W. Benario (2001), Marcus Aurelius In: De Imperatoribus Romanis:An Online Encyclopedia of Roman Rulers and their Families http://www.roman-emperors.org/marcaur.htm, acessado 02.06.2009)

sábado, 23 de maio de 2009

Belas Imagens Cristãs na Capadócia

Eu tive a felicidade de receber algumas belíssimas fotos tiradas de capelas cristãs encrustradas nas cavernas da região da Capadócia na Turquia. A autoria dos registros é da minha amiga polonesa Marta Zielinska que andou perambulando pelas terras das Anatólia nas últimas semanas. As fotos foram tiradas na cidade de Goreme. Eu não consegui especificar exatamente o lugar e a datação destas pinturas. Se alguém quiser saber mais sobre a região, aqui está uma lista com as igrejas e capelas de Goreme. Uma outra possibilidade, é acompanhar as fotos de Goreme no Panoramio. No mais, bom deleite para com está fantástica região que planejo um dia ainda conhecer.













segunda-feira, 18 de maio de 2009

Jesus como Mestre e Sábio: Na visão das fontes não cristãs do século I e II - Parte 3 - Luciano

Luciano de Samosata (165-175 DC)

Luciano de Samosata (125-180 DC, aproximadamente), escreveu a biografia zombeteira de um converso ao cristianismo e depois apóstata, Proteus Peregrino, em "A Passagem do Peregrino". Proteus era um fílosofo adepto da corrente cínica (não confundir com a concepção moderna, pejorativa, do termo). Os cínicos acreditavam que a felicidade dependia do desapego aos bens materiais e convenções sociais (status, poder..). O texto que menciona Jesus, como o "sofista crucificado" que era adorado pelos cristãos é apresentado abaixo:

“Foi então que ele [Proteus] conheceu a maravilhosa doutrina dos cristãos, associando-se a seus sacerdotes e escribas na Palestina. (...) E o consideraram como protetor e o tiveram como legislador, logo abaixo do outro [legislador], aquele que eles ainda adoram, o homem que foi crucificado na Palestina por dar origem a este culto.(...) Os pobres infelizes estão totalmente convencidos, que eles serão imortais e terão a vida eterna, desta forma eles desprezam a morte e voluntariamente se dão ao aprisionamento; a maior parte deles. Além disso, seu primeiro legislador os convenceu de que eram todos irmãos, uma que vez que eles haviam transgredido, negando os deuses gregos, e adoram o sofista crucificado vivendo sob suas leis." (Passagem do Peregrino, 11 e 13) [19]

Segundo Luciano, Peregrino (100-165 DC), fugiu de sua cidade em sua juventude, acusado de matar seu pai. Tornou-se então um filosofo itinerante, tendo contato com várias idéias e filosofias. Quando estava na Palestina, ele se converteu ao cristianismo. Entre os cristãos, obteve rapidamente grande prestígio, se tornando "profeta", "presbítero", "chefe de sinagoga", compondo livros e os comentando, sendo reverenciado como mestre, legislador e até como um deus ("logo abaixo logo abaixo do outro, aquele que eles ainda adoram, o homem que foi crucificado na Palestina por dar origem a este culto"). Em suma, Luciano acusa Peregrino de usar seus conhecimentos de filosofia para abusar da credulidade dos cristãos. Ainda na Palestina, Peregrino é preso, e na cadeia recebe a atenção e cuidado de seus companheiros cristãos, que, segundo Luciano, "tudo fizeram para livra-lo, mas como isso não foi possível, dispensaram assistência constante para com ele" (Passagem do Peregrino 12) . Entretanto, o governador romano, também admirador da filosofia, o libertou após algum tempo. Anos depois, Peregrino rompeu com o cristianismo, tornando-se discípulo do renomado filósofo cínico Agatobulo, de Alexandria (Egito). Em seguida, ele viveu em várias cidades reunindo um grande grupo de seguidores, envolvendo-se em atividades anti-romanas. Em 161 DC, ele anunciou que se imolaria em uma fogueira nos jogos olímpicos seguintes, o que ocorreu no ano 165. Luciano, que presenciou o evento, escreveu então a "biografia" de Proteus por volta do ano 175.

O relato de Luciano é bastante hostil em relação a Peregrino, que tinha contudo seus admiradores, mesmo entre os letrados e ilustres. Luciano faz referência no texto ao filósofo Theagênes de Patras, ardoroso defensor de Proteus. Também o autor e gramático romano Aulio Gelio (125-180 DC), relata em seu livro "As Noites Áticas", que visitando Atenas, foi encontrar várias vezes o fílósofo Peregrino, chamado Proteus, um "homem de dignidade e coragem, que vivia fora da cidade" e que ouviu de Proteus "muitas coisas verdadeiras, úteis e nobres" [20]. É justamente para tentar refutar essa percepção, que parecia ser bastante popular, que Luciano escreve.

O texto estabelece paralelos entre Peregrino e Jesus, a quem Luciano retrata como um filósofo, sofista e primeiro legislador e mestre dos cristãos, acusado e preso (e realmente executado) como criminoso e acusado de envolvimento em ações contra Roma. Luciano não nega a reputação de Proteus como filósofo, nem seu conhecimento e credenciais, o que ele ataca é o uso que ele faz da filosofia, aproveitando-se da credulidade das pessoas. Da mesma forma, não é posta em dúvida a reputação de Jesus como filósofo, mas o fato de que os crédulos cristãos o elevaram injustificadamente a condição de grande legislador e digno de adoração, como também fizeram com Peregrino. Assim, a visão de Luciano em relação a Jesus, era de um simples sofista ou filósofo, que ensinou seus seguidores a abandonar os deuses gregos, condenado e crucificado como criminoso, a quem pessoas humildes e simplórias, como os cristãos, tinham como Deus e supremo legislador.

Luciano observa que Proteus tinha grande reputação, muitos discípulos e notaveis admiradores. Ele relata que entre alguns filósofos cínicos, a admiração a Proteus já começava a se transformar num verdadeiro culto. Considerando a comparação que Luciano faz entre Cristo e Proteus, pode ser inferido que Jesus também tivesse uma reputação de meste e sábio bastante disseminada, mesmo entre os mais instruídos. Aqui, é útil lembrar o comentário do Prof. Mark Alan Powell (Trinity Lutheran Seminar)- em relação a frase do celebrado Testemunho Flaviano de que Jesus era "um homem sábio" - de que pode implicar tanto como um elogio a qualidade de seus ensinos, quanto de que ele era um fílosofo, mestre ou rabi por profissão ou ofício [21].

Professor David Flusser (1917-2000), da Universidade Hebraica, comenta
"A palavra grega para "sábio" tem uma raiz comum com o termo grego "sofista" termo este que não possuia então a conotação negativa atual (...) O autor grego Luciano de Samosata (nascido em 120 e falecido após 180 DC) refere-se similarmente a Jesus como "o sofista crucificado". [22]

Mas alguém tão crítico do cristianismo como Luciano, poderia considerar Jesus como um filíosofo ou sábio?

De qualquer forma, Luciano alude ao reconhecimento comum de Jesus como sofista/filósofo, legislador e mestre dos cristãos. Mas, para aprimorar nossa resposta, temos que ler "nas entrelinhas" o que Luciano escreve, e também comparar suas opinões com outros críticos do cristianismo daquele período.

Um ponto interessante é o cuidado que os cristãos dedicavam aos seus. John Dominic Crossan (De Paul University) e Jonathan Reed (La Verne University), citam o ensaio de Luciano de Samosata chamado "Da Amizade", no que se refere a assistência de Demétrio a Antífilo na prisão[23]:

"Pediu-lhe que não tivesse medo, e dividindo sua capa em duas, vestiu-se com uma parte e deu outra metade a Antífilo, depois de lhe desvestir das roupas rasgadas e fétidas que usava. Daí para frente compartilhou sua vida em tudo, cuidando dele com carinho: trabalhando de manhã até o meio-dia como estivador no porto, ganhamdo bom dinheiro. Ao retorno de seu trabalho, dava parte de seu salário para o guarda, tornando-o tratável e pacífico. O que restava era suficiente para manutenção de seu amigo. Passava as tardes com Antífilo, com afeição, de noite durmia junto a porta da prisão onde arranjara um colchão de folhas para si (Da Amizade, 30-31)

Luciano também menciona serviços assistências como os oferecidos ao profeta cristão peregrino, mas nesse caso com certo menosprezo:

[Peregrino] recebia toda a forma de atenção, não esporádica mas assídua. Desde o amanhecer viúvas idosas e crianças orfãs podiam ser vistas esperando perto da prisão, enquanto seus oficiais dormiam junto a ele depois de subornar os guardas. Traziam-lhe refeições elaboradas e livros sagrados de onde liam passagens em voz alta. O notável Peregrino - pois ainda conservava esse nome - era chamado por ele de "o novo Sócrates" (Passagem do Peregrino, 12)"
[23].

Apesar do evidente menosprezo de Luciano aos cristãos, retratados como criaturas ingênuas e iludidas, a comparação com a atidude de Antífilo e Demetrio mostra suas virtudes. Eles ajudam um dos seus na prisão, com carinho, provendo roupas e comida, e até subornam os guardas, para permitir que Peregrino pudesse ser assistido (assim como Demétrio cuidou de Antífilo na prisão). Tais atitudes eram consideradas virtuosas, assim como a coragem mesmo diante da morte que os cristãos demonstravam. O problema não reside na falta de virtude dos cristãos, mas em sua (suposta) ingenuidade (que permite que qualquer espertalhão se aproveitasse). Mas teriam sido as virtudes apreendidas com os ensinos do "primeiro legislador"?
.
Cerca de 100 anos após Luciano ter escrito a Passagem do Peregrino, o fílosofo neoplatônico Porfírio de Tiro (232-305 DC), elaborou um violentos ataque a religião cristã, chamado Adversus Christianos ("Contra os Cristãos") em 15 volumes, e uma defesa a religião pagã, "Da filosofia dos oráculos". Estas obras não sobreviveram, mas partes significativas são citadas por autores cristãos posteriores como Eusébio, Metódio, Macário de Magnésia e Santo Agostinho. Em sua crítica aos cristãos Porfirio observa:

"O que nós diremos agora, certamente surpreenderá alguns. Pois os deuses declararam que Cristo foi muito piedoso, e se tornou imortal, e que eles prezam sua memória. Mas, os cristãos, no entanto, são impuros, contaminados e chafurdam no erro. E muitas outras coisas, dizem os deuses contra os cristãos
Mas a aqueles que questionaram [deusa] Hecate se Cristo era Deus, ela respondeu: Tu conheces a condição da alma imortal (...) a alma a qual tu te refere e de um homem reconhecido por sua piedade, eles [os cristãos] o adoram porque são ignorantes da verdade (...) este homem virtuoso, assim, Hecate afirma que sua alma, como a alma de outros homens bons, foi coroada com a imortalidade, e que os cristãos, em sua ignorância, o adoram".
[24]

Agostinho observa também outra afirmação de Porfirio: "Os homens sábios entre os hebreus, dentre os quais esse Jesus, como ouviste dos oráculos de Apolo citados acima, acabaram transformando pessoas religiosas nestes demônios impíos e espíritos menores, ainda que eles tenham ensinado na verdade a veneração aos deuses celestes e especialmente a Deus Pai".[25]

Trifo, um filósofo judeu que protagonizou um debate com São Justino Martir, por volta de 130-140 DC, afirma que tomou "conhecimento e leu com atenção os preceitos dos evangelhos cristãos, os considerou maravilhosos e grandes, de tal forma que suspeitava que ninguém seria capaz de cumpri-los"; No entanto, lamentava o fato de que os cristãos "dizendo serem piedosos, e considerando-se melhores que os outros, não haviam se separado dos impíos, ou alterado seu modo de vida em relação aos gentios, não observam as festas e o sabath, não se submetem ao rito da circunsição; e, mais, colocam suas esperanças sobre um homem que foi crucificado, e ainda assim esperam obter bençãos de Deus, mesmo não obedecendo seus mandamentos. Vocês não leram que serão apartados do seu povo, aqueles que não se circuncidarem no oitavo dia? (...) Mas vocês, desprezando os mandamentos, rejeitando seus deveres em consequencia, e tentando convencer a si mesmos que conhecem a Deus, quando, no entanto, não cumprem os deveres daqueles que são tementes a Deus" [26]

Na mesma linha, a visão de Galeno, contemporâneo de Luciano, e médico da corte do Imperador Marco Aurélio também pode nos ajudar a entender a percepção de pagãos cultos dos ensinos e pessoa de Jesus, como veremos com mais detalhes adiante. Mais ou menos na mesma época em que Luciano escreveu, Galeno observou, em seu sumário da República de Platão (a obra esta perdida, mas o fragmento é preservado em citações de autores árabes), que os cristãos assim como "a maioria das pessoas não eram capazes de seguir uma linha contínua de raciocinio", no entanto, "mesmo extraindo sua fé de parábolas e milagres, agiam como aqueles que filosofavam". Galeno elogia também o fato dos cristãos desprezarem a morte, se dedicarem a abstnência e controle na sexualidade, comida e bebida, e sua ânsia pela justiça "assim como os verdeiros filósofos". [25] Claramente, apesar de criticar os da "escola de Cristo" por serem pessoas simplórias e pouco letradas, que aceitam tudo pela Fé, tem em alta conta os valores morais extraidos do seu evangelho de "parábolas e milagres". Os ensinos de Cristo permitem aos seus discipulos atingirem as virtudes fundamentais de coragem, temperança e justiça.

Então, tanto o contemporâneo de Luciano, Galeno, quanto Porfírio, cem anos depois, e Trifo, quarenta anos antes, apontam alguns dos "defeitos" dos cristãos. Os quatro destacam o fato dos cristãos serem pessoas simplórias, até mesmo ingênuas. Mas o mais importante é o fato dos Cristãos deixarem de adorar os deuses gregos, tal como os outros gentios, ou não seguirem as leis mosaícas, tais como os judeus e prosélitos do judaísmo, era imperdoável. Logo, temos um eco das críticas de Luciano aos cristãos que "adoravam ao sofista crucificado" a ponto de cometerem a grave transgressão de abandonar os deuses gregos e costumes ancestrais, bem como de sua excessiva credulidade.

Por outro lado, Trifo, Galeno e Porfirio, reconhecem, em maior ou menor grau, os méritos dos cristãos e de seu líder. Porfirio chega a dizer que Jesus foi um homem e virtuoso e sábio, querido até mesmo pelos deuses. Trifo, reconhece os ideais elevados dos preceitos éticos dos evangelhos. Galeno admira o fato de que os seguidores de Cristo, embora inaptos a compreensão do raciocínio filosófico, eram virtuosos e se comportavam como filósofos fossem. Nisso temos um eco de Luciano, que é menos generoso que os outros, os cristãos, embora ingênuos, são corajosos diante da morte e são extremados em cuidar dos seus em situação adversa.

O grande desafio dessas afirmações para os apologistas cristãos, é que, ainda que reconhecendo alguns méritos nos evangelhos e na figura de Jesus, eles questionavam porque os cristãos transformavam um simples filosofo ou mestre (na melhor das hipóteses) em Deus, e, principalmente, porque eles romperam com os deveres cívicos, a religião e práticas de seus antepassados para seguir os preceitos do Evangelho. Vemos aqui como era difícil a vida dos primeiros cristãos.

J. P. Meier avalia o valor da fonte:
"Luciano sabe que o "sofista" reverenciado pelos cristãos - os nomes Jesus ou Cristo nunca são usados - foi executado na Palestina e, como Josefo, ele especifica a forma da morte, crucificação. Como Tácito, ele supõe que este mesmo crucificado introduziu a nova religião chamada cristianismo. Como Plínio, ele conta que os cristãos adoram seu fundador crucificado. Mais uma vez, ficamos sabendo o que um pagão culto do século II poderia conhecer sobre Jesus, mas sem dúvida Luciano reflete a informação que corria na época". [27]

Referências
[19] Luciano de Samosata, Passagem do Peregrino, 11 e 13
http://www.tertullian.org/rpearse/lucian/peregrinus.htm (Inglês)
[20] Aulio Gélio, Noites Àticas, Livro XII, cap11 http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Gellius/12*.html (Inglês)
[21] Mark Alan Powell, Jesus as a Figure in History: How Modern Historians View the Man from Galilee, page 33
[22] David Flusser (1998), Jesus, fl. 13
[23] John Dominic Crossan e Jonathan Reed (2004), Em Busca de Paulo, fl. 253
[24] Porfírio, Da Filosofia dos Oráculos, citado por Santo Agostinho em Cidade de Deus, Livro 19, capítulo 23
[25] Justino Martir, Dialogo com Trifo, capítulo X.
[26] Robert M. Grant, Second Century Christianity - a Collection of Fragments, fl 11-12.
[27] John. P. Meier (1991), Um Judeu Marginal, Repensando o Jesus Histórico, Vol. 1

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Jesus como Mestre e Sábio: Na visão das fontes não-cristãs do séc. I e II - Parte 2 - Mara Bar Serapion

No post anterior analisamos a imagem de Jesus como um mestre e homem sábio na principal fonte não-cristão, Flávio Josefo. Agora vamos continuar a contextualizar a visão de Jesus como homem sábio(...) mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer", utilizando uma fonte um tanto desprezada, mas que pode bem ser a mais antiga referência não-cristã a Jesus. A Carta do estóico sírio Mara Bar Serapion.

Mara Bar Serapion (73 DC - 150 DC)

A (provável) menção a Jesus se dá em uma carta de exortação a excelência da sabedoria que sobrevive mesmo com as injustiças e eventual morte que sofre o sábio. Jesus é comparado a Pitágora e Sócrates.

"O que diremos, quando os sabíos são arrastados pelas mãos dos tiranos, e sua sabedoria os leva a perda da liberdade, e são despojados por causa de sua inteligência superior,sem a oportunidade de se defender? Mas eles não devem ser objeto de pena. Pois qual benefício obtiveram os atenienses por condenarem Socrátes a morte, uma vez que eles receberam em troca fome e peste? Ou os cidadãos de Samos por lançar Pitágoras as chamas? Num instante seu território se viu coberto de areia. Que vantagem obtiveram os judeus matando seu sábio Rei. Logo depois, seu reino foi destruido. Pois com justiça Deus vingou esses três sábios. Pois os atenienses morreram de fome, o povo de Samos foi coberto pelo mar, e os judeus, desolados e expelidos de seu reino, vagam dispersos por todas as terras. Socrates não morreu, por causa de Platão, ou Pitagoras, por causa da Estátua de Hera, nem tampouco o Sábio Rei, continuou a viver nos ensinamentos que transmitiu." [14]

Professor Gerd Theissen , da Universidade de Heidelberg (Alemanha), e Professora Annete Merz, Universidade de Utrecht (Holanda), fazem uma descrição da fonte:
"Curiosamente, o testemunho pagão supostamente mais antigo sobre Jesus é pouco conhecido. Encontra-se numa carta pessoal do estóico sírio, originário de Samosata, Mara Bar Serapion, que escreveu de uma prisão romana (em lugar desconhecido) ao filho Serapion. A carta tem por conteúdo numerosos conselhos e advertências que Mara faz ao filho em face de sua possível condenação" [15]

Theissen e Merz [15] observam que a datação da carta é controversa. A referência a dispersão dos judeus pode ser encaixada na Revolta de Bar Kochba (135 DC), ou na destruição de Jerusalém (70 DC). Ele acrescenta, que há na carta uma menção a fuga dos cidadãos anti-romanos da cidade de Samosata para Selêucia, que parece ser idêntico ao da destruição e expulsão do Rei Antioco IV de Comagene (que tinha por capital Samosata) pelos romanos no ano de 73 DC, relatado do Josefo em Guerras Judaicas 7:219-243.

Ainda segundo Theissen e Merz [15], "os dados sobre Pitagoras, os sâmios e os atenienses são historicamente muito imprecisos. Talvez Mara considere o filósofo e o escultor Pitagorá a mesma pessoa".

Mara não menciona Jesus pelo nome. A associação é feita baseada nas características:
1) Ele era judeu
2) Era um sábio
3) Ele era um "Rei"
4) Ele continuou vivo por meio de seus ensinamentos
5) Ele foi morto por seu povo
6) O reino judeu foi destruído após sua morte.

1) Jesus era judeu;
2) Era considerado como um sábio ou filósofo (Luciano; Evangelho de Tomé 13: Tu és como um sábio filósofo);
3) Era o "Rei dos Judeus"; (Titulus Crucis nos quatro evangelhos)
4) Seus seguidores mantiveram vivo seus ensinamentos após sua morte, e mesmo depois da destruição de Jerusalém. Trinta anos após a morte de Jesus, estavam solidamente estabelecidos em Roma ( Tácito, Suetônio).
5) Jesus foi morto sob Pôncio Pilatos, mas as autoridades do Templo exerceram uma papel importante. De qualquer forma, a pregação cristã logo tendeu a minimizar a responsabilidade romana e enfatizar a judia.
6) Cerca de 40 anos depois da morte de Jesus, Jerusalém foi destruida. (Elemento também presente na pregação cristã).

A identificação do sábio Rei referido por Mara com Jesus de Nazaré não é completamente certa. Contudo, que outro "candidato" preenche esses requisitos? Josefo lista quase uma dezena de pretendentes messiânicos, mas eles foram mortos pelos romanos, e seus ensinamentos, quando existiram, não sobreviveram a sua morte. Judas Galileu, inspirador dos zelotes e outros radicais anti-romanos, manteve seguidores após sua morte. Contudo, até onde se sabe, se ele foi executado, o foi pelos romanos e não pelos judeus; não foi chamado de "Rei dos Judeus"; e seu movimento não sobreviveu a queda de Jerusalém e, portanto, a época em que Mara escreveu.

Como observa FF Bruce (1910-1990), ex-Professor das Universidades de Sheffield e Manchester:
"Este escritor dificilmente poedria ter sido cristão; tal fosse o caso , haveria declarado que o Cristo continuou vivo e que ressuscitou dos mortos. Maior probabilidadee há de que fosse um filósofo gentio, pioneiro no que se veio depois tornar rotina comum - colocar Jesus em pedestal de igualdade com os grandes sábios de antanho"[16]

Tudo indica que Mara foi influênciado pela pregação cristã, embora se mantivesse como pagão pois faz referência em alguns lugares da carta a "nossos deuses". Era, possivelmente, um simpatizante do cristianismo.

Theissen e Merz [17], observam que as afirmações de Mara são parcialmente dependentes dos evangelhos. Primeiro, apenas os judeus são responsabilizados (ver I Tes. 2:15; Atos 4:10). Segundo, a derrota judaica perante os Romanos é resultado da crucificação de Jesus (cf Mt 22:7; 27:25). Terceiro, Jesus é chamado de Rei Sábio (ver Mt 2:6).

Thiessen e Merz complementam,
"Mara permite reconhecer em alguns pontos uma perspectiva externa em sua avaliação de Jesus e do cristianismo:
Na série de paradigmas de Mara, Jesus aparece como um de três sábios Mara não sabe nada da ressureição de Jesus, ou a reinterpreta tacitamente no sentido de sua cosmovisão caracterizada em sua carta da seguinte forma "A vida do homem, meu filho, sai do mundo, seu louvor e seus dons permanecem na eternidade". Isso se aplica da mesma forma a Socrátes como a Jesus. Para Mara, Jesus é importante sobretudo como novo legislador. Ele continua a viver em suas leis. Ao que parece, Mara vê os cristãos como aqueles que vivem segundo a lei do Rei Sábio, o que explica bem a postura do estóico em relação a eles" [17]

Professor Robert Van Voorst, Western Theological Seminary, acrescenta:
"A mais antiga referência filosófica ao cristianismo de que se tem conhecimento, a carta de Mara Bar revela a atração que o cristianismo era capaz de exercer sobre alguns intelectuais. As observações positivas a Cristo e ao Cristianismo, no entanto, não devem ser lidas como um endosso, da mesma forma como sua menção a Sócrates e Pitágoras significam que ele era adepto de suas respectivas escolas filosóficas" [18]

Admitindo a provável menção a Jesus de Nazaré como sábio Rei em Mara Bar Serapion, temos um retrato que é semelhante a descrição de Galeno e, até mesmo, com o de Luciano de Samosata (Samosata, inclusive, fica na mesma região daonde Mara é proveniente). Jesus é visto como um filósofo, que deixou leis e ensinamentos, que foi executado, mas cujo legado permanece, tendo díscipulos que vivem segundo suas leis. Luciano interpretou essas tradições de forma depreciativa aos cristãos. Galeno de forma positiva, embora condescencente. Mara, por sua vez, também as toma de maneira positiva, mas vê em Cristo um modelo de sabedoria.

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CONTINUA

[14] Carta de Mara Bar Serapion http://www.earlychristianwritings.com/text/mara.html
[15] Gerd Thiessen e Annete Merz (1996), O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 95
[16] F. F. Bruce (1965), Merece Confiança o Novo Testamento, fl.148-149
[17] Gerd Thiessen e Annete Merz (1996), O Jesus Histórico, Um Manual: fl. 97
[18] Robert Van Voorst (2000), Jesus Outside of the New Testament, fl. 58
Jona Lendering http://www.livius.org/men-mh/messiah/messianic_claimants00.html (excelente site!!!)

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Jesus como Mestre e Sábio: Na visão das fontes não-cristãs do séc. I e II - Parte 1 - Josefo

Jesus como homem sábio e mestre é uma das imagens mais presentes nos evangelhos. Ao fim do sermão do monte as "multidões maravilhavam-se de seu ensino porque as ensinava como tendo autoridade, e não como os escribas" (Mateus 7:27). Também na sinagoga de Cafarnaum (Marcos 1:22). Em uma das mais antigas confissões credais da Igreja Primitiva, Jesus é chamado de profeta poderoso em palavras e atos (Lucas 24:19; Atos 2:22 e 10:38). A fonte Q, assim chamada por conter material comum a Mateus e Lucas, não encontrado em Marcos, é formada basicamente por ditos e ensinos. Na literatura apócrifa temos também importantes testetemunhos dessa imagem. O Evangelho de Tomé, que data provavelmente da primeira metade do sec. II, é composto de 114 ditos e ensinos de Jesus (em significativa parte paralelos aos evangelhos sinóticos.

"Jesus o Homem Sábio": Flávio Josefo (93 DC)

Entre as fontes não-cristãs, a mais importante, sem dúvida, é a referência encontrada em Antiguidades Judaicas 18:63-64, do escrito judeu Flavio Josefo, texto conhecido como Testemunho Flaviano:

"Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio, se na verdade podemos chama-lo de homem. Pois ele foi o autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como dentre muitos de origem grega. Ele era [o] Cristo [Messias], E quando Pilatos, por causa de uma acusação feitas pelos nossos homens mais proeminentes, condenou-u a cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de faze-lo. Pois ele lhes apareceu no terceiro dia, novamente vivo, exatamente como os profetas divinos haviam falado deste e de incontáveis outros fatos assombrosos sobre ele. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve esse nome a ele, não desapareceu"(Antiguidades Judaicas, 18:63-64) [1]

O texto como está hoje é tão bom que levanta suspeita. Como Flavio Josefo, que se dizia fariseu, e que passou os anos finais de sua vida na corte dos Imperadores Romanos, poderia se referir a Jesus como o "Messias" ou que ele havia aparecido ao terceiro dia, ressureto? Isso levou muitos críticos a negarem a autoria josefana da passagem, afirmando que o texto seria uma interpolação cristão posterior.

Embora no século XIX e início do século XX a maioria dos estudiosos estivesse inclinado a crer na hipótese da interpolação total, desde a 1ª Guerra Mundial o consenso vem se alterando dramaticamente, devido a estudos linguísticos, uma nova compreensão da relação entre os primeiros cristãos, os fariseus e o Império Romano, e principalmente o estudo de versões latinas, síriacas, eslavas e árabes, a posição dominante hoje é que o texto é parcialmente autêntico e parcialmente interpolado. Haveria um texto originalmente de Josefo, que foi "embelezado" ou "turbinado" por escribas cristãos posteriores.

Alice Whealey, de Berkeley, no artigo "The Testimonium Flavianum controversy from Antiquity to the present", publicado e apresentado no Josephus Seminar em 2000, que reune alguns dos principais estudiosos de Josefo do mundo:

Fez um "review" da literatura sobre o Testemunho Flaviano, e concluiu:
"A controvérsia sobre o Testemunho Flaviano ao longo do século XX pode ser diferenciada da que houve no início do período moderno, por ser, em geral, mais acadêmica e menos sectária. (...) Em geral, pesquisadores protestantes, católicos, judeus e secularistas tem convergido em suas posições, com uma grande tendência de estudiosos, independentemente de sua filiação religiosa, de considerar o texto como majoritariamente autêntico. [2]

O estudiosos judeu Geza Vermes, Professor Emérito de Judaismo Antigo da Universidade de Oxford, e uma das maiores autoridades vivas em judaismo do 2º Templo, cristianismo primitivo e Jesus Histórico observa:

"Estudiosos hipercríticos consideram a passagem totalmente espúria, isto é, um comentarista cristão inseriu nas Antiquidades para dar uma prova judaica do sec. I da existência de Jesus, que era o messias. Reconhecidamente, no pé em que se encontram as coisas, é improvável que o texto tenha se originado da pena de Flávio Josefo. As afirmações positivas, 'Ele era o Cristo" e de que sua ressurreição ao terceiro dia cumpria a predição dos profetas são estranhas a Josefo e devem proceder de um editor cristão posterior das Antiquidades. Não obstante, declarar que toda a notícia é uma falsificação significa jogar fora o bebê junto com a água suja do banho. De fato, nos anos recentes, a maioria dos especialistas, eu inclusive, tem adotado uma atitude branda, aceitando que parte do relato é autêntica" [3] (grifo nosso).

O Professor Louis Feldman, da Yeshiva University, decano dos estudos sobre Flavio Josefo, afirma categoricamente:

"Quanto ao celebrado Testemunho Flaviano (Ant. 18:63-64) a grande maioria dos estudiosos o consideram como parcialmente interpolado, sendo esta também a minha conclusão. Que o núcleo básico é autêntico é reforçado pelo fato de que aparece em todos os manuscritos (ainda, que o mais antigo destes seja datado do XI século) e todas as versões, incluindo as traduzidas pelo latim pela Escola de Cassiodorus no século VI" [4].

Peter Kirby cita uma análise de Louis Feldmann, já mencionado, que revisou a literatura relevante sobre Josefo entre 1937 e 1980, em seu livro "Josephus and Modern Scholarship"[5].

Dos 52 estudiosos que analisaram o Testemunho Flaviano no período (1937-1980)
4 (8 %) o consideraram totalmente autêntico,
6 (12 %) basicamente autêntico
20 (40 %) autêntico em parte, com algumas interpolações
9 (18 %) autêntico em parte, com várias interpolações
13 (25 %) totalmente falso

Desta forma, poucos aceitam a autênticidade total da passagem, e somente alguns crêem que ela seja uma interpolação completa. Assim, no período, 3 em cada 4 estudiosos creêm em uma menção a Jesus nessa passagem, sendo que a posição dominante (70 %) vê a passagem escrita por Josefo sobre Jesus alterada ou revisada por cristãos. Kirby, "completa" o trabalho Feldmann, de 1980 até 1996. Em sua própria leitura, o "placar" estaria em 10 a 3, favoravel a autencidade parcial [6]. Christopher Price [7] chega a um "placar" parecido, 15 a 1 favorável a autenticidade parcial.

Aceitando que Josefo escreveu algo sobre Jesus, o próximo passo é tentar descobrir o que ele possivelmente escreveu. A descoberta de uma versão em árabe do Testimonium, citada pelo Bispo cristão Agapio, no século X, fornece um interessante controle. Estudos de vocabulario e estilo são citados por G.J Goldberg:

"A passagem como um todo mostra vários exemplos de vocabulario e estilo que são típicos de Josefo, como discutido por Thackeray, Martin, Winter, e, com ajuda da concordância de Rengstorf, por Birdsall e, mais recentemente, por Meier. Destes, somente Birdsall acredita que a passagem foi completamente interpolada. Recentemente, entre os estudiosos cujos trabalhos favorecem a tese que o Testimonium é basicamente autêntico, estão John Dominic Crossan, Raymond Brown e James Charlesworth" [8].

Em vista dos estudos acima, e da tendência acadêmica recente, uma reconstrução que encontrou significativa aceitação, é a do estudiosos católico John P. Meier (que segue, de modo geral, a proposta dos acadêmicos judeus Joseph Klausner e Paul Winter). O texto proposto por Meier segue abaixo:

"Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio. Pois ele foi o autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como dentre muitos de origem grega. E quando Pilatos, por causa de uma acusação feitas pelos nossos homens mais proeminentes, condenou-u a cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de faze-lo. . E até hoje a tribo dos cristãos, que deve esse nome a ele, não desapareceu" (versão de Meier) [9]

A versão acima é aceita por estudiosos de várias orientações religiosas como o protestante N. T. Wright, o católico (bem) liberal John Dominic Crossan (De Paul University, EUA), a judia Paula Frederiksen (Boston University) e o agnóstico Bart Erhmann (Universidade da Carolina do Norte) [10] entre outros. Geza Vermes, de forma independente, chegou a conclusões similares as de J.P. Meier, e enfatiza os adjetivos "homem sábio" e "realizador de feitos controversos", além do relato da crucificação por Pôncio Pilatos e não extinção do movimento cristão, como sendo autênticamente de Josefo [11].

Considerando agora a proposta de Meier. O texto reconstituído poderia mesmo ter sido escrito por Josefo? Que haja uma referência a crucificação de Jesus por Pôncio Pilatos, e de que ele foi o fundador do movimento cristão, que sobreviveu a sua morte, não parece estranho. Tácito nos diz a mesma coisa. Que Josefo diga que Jesus realizou feitos surpreendentes, no sentido de milagrosos, não é tão problemático como pode parecer a primeira vista, uma vez que a palavra utilizada, paradoxa, é ambigua (espetaculares, surpreendentes ou controversos). No século II, mesmo Celso, um violento crítico do cristianismo, não nega Jesus era capaz de realizar tais feitos, mas relata que fontes judaícas afirmavam que Jesus fazia seus paradoxa através do conhecimento de artes mágicas que adquiriu no Egito (Contra Celso 1:6; 16-17), assim como alguns rabinos posteriores no Talmude (bSanhedrin 43b) [12]. Em meados do século II, Justino e Tertuliano defendem Jesus da acusação de ser um mágico [13]. Mesmo entre os mais ferrenhos adversários do cristianismo, a linha de ataque mais comum não era negar a capacidade de Jesus de fazer milagres, mas atribui-los a um suposto conhecimento de mágica e associação com poderes demoníacos.

Mas como Josefo poderia dizer que Jesus era um homem sábio, (...) e mestre de pessoas que recebiam a verdade com prazer?

Será que Josefo ficou maluco? Será que os distintos "scholars" ficaram malucos? Ou será que era realmente possível que um membro da aristocracia romana e judaíca pudesse ter um opinião neutra, ou até ligeiramente positiva de Jesus?

O que segue nos próximos posts é uma análise das opiniões de observadores não cristãos (Mara Bar-Serapion, Luciano e Galeno), no século II, a respeito de Jesus. E como ele e seus ensinos foram considerados de certo valor nos círculos instruidos, nos permitindo entender como Josefo poderia ter admirado Jesus, sem se tornar cristão.

CONTINUA
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BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS
[1] Flavio Josefo, Antiguidades Judaicas, 18:63-64
[2] Alice Whealey (2000), 'The Testimonium Flavianum controversy from Antiquity to the Present", fl. 9 http://pace.mcmaster.ca/media/pdf/sbl/whealey2000.pdf
[3] Geza Vermes (2000), As Varias Faces de Jesus, fls 305-306
[4] Louis H Feldman, Flavius Josephus Revisited, The man, His Writings, and his significance, In Wolfgang Haase & Temporini; Aufstieg und Niedergang der römischen Welt (1984),page 822
[5] Louis H Feldmann, Josephus and Modern Scholarship (1987), in Peter Kirby, Testimonium Flavianum (2001) http://www.earlychristianwritings.com/testimonium.html , acessado em 31.03.09
[6] Peter Kirby (2001), Testimonium Flavianum http://www.earlychristianwritings.com/testimonium.html
[7] Christopher Price (2004), Did Josephus Refer to Jesus? http://www.bede.org.uk/Josephus.htm
[8] Gary G. Goldberg (1995), "The Coincidences of the Emaus Narrative of the Luke and the Testimonium of Josephus" The Journal for The Study of the Pseudepigrapha 13, pp- 59-77.
http://www.josephus.org/GoldbergJosephusLuke1995.pdf
[9] John P. Meier (1991), Um Judeu Marginal, Volume 1, fl.69
[10] ver John D. Crossan (1994), Jesus uma Biografia Revolucionária, fl. 172; Paula Frederiksen (1999), Jesus of Nazareth, King of the Jews, fl. 249; Bart Erhmann (1999) Jesus, apocalyptic prophet of the new millennium, fl. 59-62;
[11] Geza Vermes (2003), Jesus in his Jewish Context, fls. 93 a 95
[12] Geza Vermes (2000), As Varias Faces de Jesus, fl. 306, nota
[13] Justino, Dialogo com Trifo, 69:5 "Eles atribuiram [os milagres] a utilização de poderes mágicos, porque eles se atreveram a dizer que Jesus era um mágico e enganador do povo"; Tertuliano, Apologetica 21:17 "Assim, então, sob a força de sua rejeição se convenceram a si próprios desse seu baixo procedimento: que Cristo não foi mais do que um homem, seguindo-se, como conseqüência necessária, que tivessem Cristo na conta de mágico, devido aos poderes que demonstrou".

Ver Também:
Ben C Smith: "Josephus on the Carreer and execution of Jesus" (citações do Testimonium por vários autores da antiguidade) http://www.textexcavation.com/josephustestimonium.html

terça-feira, 12 de maio de 2009

A virada da postura cristã para com o império


Embora se trata de algo algo bem estabelecido nos círculos ou entre pessoas mais informadas desse contexto histórico, ainda é muito comum encontrarmos declarações no sentido de que o Imperador Constantino teria oficializado o cristianismo. Apesar do apoio pró-ativo deste, em questões como devolução das terras confiscadas, e seu interesse maior em trabalhar a questão religiosa para promover a unidade no império, tal informação é improcedente. O dito foi feito pelo Edito de Teodósio I, em 380 d.C., 47 anos após o Edito de Milão.

Qual foi então, a orientação do famoso Edito de Milão?

Nós, Constantino e Licínio, Imperadores, encontrando-nos em Milão para conferenciar a respeito e da segurança do império, decidimos que, entre tantas coisas benéficas à comunidade, o culto divino deve ser a nossa primeira e principal preocupação. Pareceu-nos justo que todos, cristãos inclusive, gozem da liberdade de seguir o culto e a religião de sua preferência. Desta forma o Deus, que mora no céu, ser-nos-á propício a nós e a todos os nossos súditos. Decretamos, portanto, que, não obstante a existência de instruções anteriores relativas aos cristãos, os que optarem pela religião de Cristo estão autorizados a abraçá-la sem estorvo ou empecilho, e que ninguém absolutamente os impeça ou moleste...Observai, outrossim, que também todos os demais terão garantida a livre e irrestrita prática de suas respectivas religiões, pois está de acordo com a estrutura estatal e com a paz vigente que asseguremos a cada cidadão liberdade de culto, segundo sua consciência e eleição. Não pretendemos negar a honra devida a qualquer religião e a seus adeptos. Outrossim, com referência aos cristãos, ampliando normas já estabelecidas sobre os lugares de seus cultos, é-nos grato ordenar, pela presente, que todos os que compraram esses locais os restituam aos cristãos sem qualquer pretensão a pagamento...

Use-se da máxima diligência no cumprimento das ordenanças a favor dos cristãos e obedeça-se a esta lei com presteza, para se possibilitar a realização de nosso propósito de instaurar a tranqüilidade pública. Assim continue o favor divino, já experimentado em empreendimentos momentosíssimos, outorgando-nos o sucesso, garantia do bem comum.

Há ainda uma observação constante no Edito:
As igrejas recebidas como donativo e os demais lugares que antigamente pertenciam aos cristãos deviam ser devolvidos. Os proprietários, porém, podiam requerer compensação.


Houvera uma Grande Transformação, no cristianismo, após o referido Edito?

Pra mim, O Grande Impacto seria, em termos relativos, para com sua postura ante seu papel social e a cultura. Busco aportes aqui em um constructo articulado pelo sociólogo espanhol Manuel Castells, no livro O Poder da Identidade, com os conceitos:

- Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais ;

- Identidade de resistência: criado por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação;

- Identidade de projeto: quando os atores, utilizando- se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade.

Diria que o cristianismo, que até então se constituía em termos das duas últimas, passou a se ver e portar-se, essencialmente, como uma Identidade legitimadora. É claro que temos que enxergar isso relativamente, tendo em vista que o autor elaborara tais conceitos estudando os movimentos sociais e culturais do período moderno, com ênfase no final do século XX, e a realidade antiga possuía contornos diferentes da modernidade, e assim, não se faz uma transposição automática dessas ferramentas analíticas. Outrossim, podemos ver manifestações no cristianismo antigo também de preocupações com a ordem social enquanto possibilitadora da vida em comum –Romanos 13 – embora seja secundária para com seu ethos e com sua perspectiva cristológica e escatológica que se chocavam com as reivindicações e discursos legitimadores do império, e sua lógica de poder. Também, secundariamente, permaneceram neste período posterior posturas como identidade de resistência - sobretudo nos âmbitos monásticos - e identidade de projeto - Cidade de Deus, de Santo Agostinho.

Uma certa empatia para se compreender a atitude das pessoas no contexto também é importante nesse caso, ou seja, a preocupação de se olhar o passado com uma aproximação das lentes de quem o viveu – sabendo que uma identificação correspondencial é sobremaneira limitada, talvez impossível, podendo levar à megalomania. A discussão do antropólogo Geertz, para com a Fenomenologia da Cultura, pra mim é o que desenvolve melhor a perspectiva de buscar se interagir com o processo, comportamento e fenômeno cultural estudado, com aproximação hermenêutica, sem se pautar pelo relativismo filosófico, debruçando o olhar sobre o entendimento de um tráfego simbólico nas culturas diante dos processos históricos em que estão envolvidas, e sob essa lente entender suas respostas.

Poucos anos antes do Edito de Milão, houvera uma das maiores perseguições, a de Diocleciano, sendo que mal se teve tempo de recuperar das perseguições atrozes de Valeriano e antes, da de Décio. A memória dos cristãos estava impregnada de décadas e décadas de óleos ferventes, crucificações, feras, gladiadores, degolas, esquartejamentos, flagelos.

Pouco depois de Constantino, houvera o Imperador Constâncio, um imperador ariano que perseguia os não-arianos. Constâncio, ainda, ao condenar Anastásio em Milão – 355 – expôs sua concepção sobre igreja/estado, para a Igreja:

Aceite-se minha vontade entre vós e seja ela vossa lei como é lei para os bispos sírios (arianos).


Nesse tempo, Ósio, bispo de Córdoba (256-357 d.C.) redigiu para Constâncio o que poderia ser considerado o primeiro manifesto, melhor, um protótipo, para a autonomia das esferas:

(...) Abandonai, suplico-vos, os vossos procedimentos. Lembrai que também vós sois mortal; temei o dia do juízo e guardai-vos puro na perspectiva daquele dia. Não interfirais em matérias eclesiásticas, nem nos instruas em semelhante questões, mas a respeito delas aprendei de nós. Deus colocou em vossas mãos o império, mas as coisas de Sua Igreja confiou a nós. Se alguém vos arrebatais o império, resistiria à ordem divina; do mesmo modo, deveríeis, vós e os vossos, temer que, assumindo o governo da Igreja, vos torneis réus de ofensa grave. Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Nós não temos permissão para exercer o poder humano e vós, César, não tendes autoridade para queimar incenso. Assim vos escrevo por se tratar de vossa própria salvação.


Pena que, posteriormente, tal interpelação não tenha vingado...

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Como os cristãos arrecadavam recursos?


Uma das coisas mais terríveis que rondam o cristianismo da atualidade pode ser encontrada na chamada Teologia da Prosperidade. De acordo com essa corrente teológica, os fiéis cristãos tementes a Deus devem desfrutar (e muitas vezes requisitar) da riqueza material proveniente de Deus. É deste tipo de mentalidade, por exemplo, que encontramos a aberrante Bíblia de Estudo Batalha Espiritual e Vitória Financeira, elaborada pelo evangelista Morris Cerullo, na qual encontramos o texto bíblico transformado em uma espécie de livro de auto-ajuda financeira, destes que encontramos aos montes pelas livrarias afora.

O mecanismo que está por trás desta teologia é muito simples ---> "fiés mais ricos - dízimo mais elevado - pastores mais ricos". Percebam obviamente que eu não conclui essa rápida equação com o termo "Igreja mais Rica". E por que eu não fiz tal coisa? Porque na verdade a ECCLESIA fica cada vez mais pobre espiritualmente a cada dia em que aumentam essas práticas de extorsão e auto-engano em massa. Cristianismo e riqueza material tipicamente não combinam.

Em uma outra oportunidade, tratarei de mostrar nas escrituras como se dava a relação do protocristianismo com o dinheiro. Neste nosso caso específico, gostaria de postar sobre os registros mais antigos acerca das formas pelas quais os cristãos primitivos arrecadavam. Vou citar textos de dois teólogos cristãos do século II d.C.: Justino e Tertuliano.

Justino, I Apologia, 67

"Depois disso, renovamos sempre entre nós a memória destas coisas, e aqueles dentre nós que possuem bens ajudam a todos os necessitados, e ajudamos sempre uns aos outros. E por tudo o que oferecemos, bendizemos o criador do universo por meio de seu Filho, Jesus Cristo, e do Espírito Santo.

No dia dito do Sol todos se reúnem no mesmo lugar, quer habitem nas cidades, quer nos campos; são lidas as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas, segundo o tempo disponível. Quando o leitor termina, presidente da assembléia, com um discurso, nos convida e exorta à imitação daqueles belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos juntos e fazemos preces; e, como já dissemos, terminada a prece, são trazidos pão, vinho e água, e o presidente da assembléia eleva também ao céu preces e ações de graças com todas as suas forças, enquanto o povo responde dizendo amém; e se realiza a distribuição e repartição dos elementos sagrados, que por meio dos diáconos são enviaos também aos que não estão presentes.

As pessoas de posse e bem dispostas oferecem tudo o que desejam; o que foi recolhido é depositado junto ao presidente [da assembléia], que ajuda os órfãos, as viúvas, os doentes, os presos, os estrangeiros que estão de passagem; numa palavra, ele socorre todos os que precisam."



Tertuliano, Apologético, XXXIX, 5-6

“Presidem [nossas reuniões] anciãos de provada virtude, que alcançaram essa honra não por meio de pagamento, mas pelo comum testemunho de seus méritos: de fato, nenhuma coisa divina pode ser avaliada financeiramente. Embora entre nós exista um caixa comum, ele não é constituído por contribuições honorárias [de honoraria summa], como se fosse o preço de uma religião posta à venda. Cada um, segundo sua vontade e possibilidade, traz uma modesta contribuição mensal: e cada um oferece espontaneamente, ninguém é obrigado a contribuir. Esses são como que os depósitos da piedade comum. Daí não se tira dinheiro para banquetes, bebidas ou fúteis comilanças, mas para dar alimento e sepultura aos necessitados, para socorrer crianças sem meios de sustento e sem pais, e também servos anciãos e náufragos, bem como todos os que, em nome da religião professada e só porque pertencem à seita de Deus, são condenados às minas ou deportados para as ilhas ou abandonados nos cárceres.”


Pode-se ver nas passagens supracitadas o enorme abismo entre as práticas da Igreja Primitiva e os novos "vendilhões do Templo" que encontramos hoje em dia. Tertuliano em pleno século II d.C. já alertava seriamente para essa diferença:

"Embora entre nós exista um caixa comum, ele não é constituído por contribuições honorárias de honoraria summa], como se fosse o preço de uma religião posta à venda."


As contribuições eram, pois, voluntárias e nada havia de honorário[contribuição regular fixa tal como o dízimo]. Tertuliano tipicamente diferencia essas práticas, mostrando a liberdade da vida cristã, diferenciando-a de RELIGIÕES QUE ERAM POSTAS À VENDA.

Percebam que já no século II d.C. havia essa preocupação por parte dos cristãos - se diferenciar das "religiões postas à venda". Tanto Tertuliano como Justino são categóricos em dizer que o dinheiro era uzado para socorrer os mais necessitados: as viúvas, anciãos, crianças, encarcerados, etc.

Neste sentido, encontramos uma diferença brutal entre as práticas caridosas dos antigos cristãos para com a farsa herodiana e hipócrita da teologia da prosperidade hodierna. O que estas duas passagens citadas nos mostram se constitui na essência radical do cristianismo de raiz, calcado na sociabilidade do amor [ágape]. Já o que se vê hoje em muitas destas "igrejas" onde se cobra dízimo obrigatório se chama, em termos bem diretos, estelionato!

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Juizo Final [ atualizado em 15/04/12 ]


(...)e eis que com as nuvens do céu vinha um como Filho de Homem; ele chegou até o Ancião de Dias, e o fizeram aproximar de sua presença. E lhe foi dada soberania, glória e realeza, assim as pessoas de todos os povos, nações e línguas o serviam.

(...)
a seguir, os Santos do Altíssimo receberão a realeza, e possuirão a realeza para sempre e para todo o sempre.

(...) e o julgamento fosse dado em favor dos Santos do Altíssimo, e que chegasse o tempo e os Santos possuíssem a realeza.



A expressão Filho do Homem, aparece no Antigo Testamento em diversos contextos e sentidos. No livro de Daniel, surge com um significado especial. Uma figura que viria executar o juízo em nome do próprio Altíssimo, num julgamento em que tomarão parte os seus Santos. Está inserido em uma grande parte que trata de “visões”, ao estilo da chamada literatura apocalítica. Repercute também em diversos textos importantes da literatura apocalíptica judaica, em destaque no Apocalipse das Semanas de Enoch:

Então interroguei a um dos anjos que estava comigo e que me explicou todos os mistérios relativos ao Filho do homem. Perguntei-lhe quem era ele, de onde vinha e porque acompanhava o Ancião dos Dias. Respondeu-meo nessas palavras: 'Este é o Filho do Homem a quem toda justiça se refere, com quem ela habita, e que tem a chave de todos os tesouros ocultos; pois o Senhor dos espíritos o escolheu preferencialmente e deu-lhe glória acima de todas as criaturas. Esse Filho do Homem que viste, arrancará reis e poderosos de seu sono voluptuoso, fá-los-á sair de suas terras inamovíveis, colocará freio nos poderosos, quebrará os dentes dos pecadores. Expulsará os reis de seus tronos e de seus reinos, porque recusam honrá-lo, de tornarem públicos seus louvores e de se humilharem diante daquele a quem todo reino foi dado. Colocará tormentos na raça dos poderosos; forçá-los-á a se deitarem diante dele'.
Outros textos desse período que refletiam uma imagem semelhante são 4 Esdras ( final do século I) e o contido no papiro 11 Melquisedeque - parte dos Manuscritos do Mar Morto, aplicado ao mesmo [ a respeito das referências em correlação com o livro de Daniel, confira o capítulo "The Messianic Associations of The Son of Man", do livro Messianism among Jews and Christians: twelve biblical and historical studies de William Horbury] .

O Apocalipse das Semanas é uma composição antiga que fora incluída na "Epístola de Enoque",  pertencente ao"Livro de Enoque", que é uma compilação de materiais que vão de período posterior ao regresso judaico sob domínio persa, cerca de três séculos antes de Cristo, até a um período imediatamente anterior ao despontar de Jesus, começo do primeiro século [confira a respeito - James J. Collins, "Books of Enoch" em Dictionary of New Testament Backgrounds, eds. Craig A. Evans e Stanley Porter; também J.J. Colins, "The Apocalyptic Imagination: An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature", pgs 177-8, 192-3] . Neste aspecto, é importante chamarmos atenção para fragmentos do material mais recente, "As Similitudes de Enoque", que foram citados no começo da postagem. A eles também se assomam:

E naquela hora o Filho do Homem foi nomeado na presença do Senhor dos Espíritos; e seu nome perante o Ancião dos Dias. Sim, antes que o sol e os sinais fossem criados, antes que as estrelas dos céus fossem formadas, seu nome foi nomeado perante o Senhor dos Espíritos. Ele será uma fortaleza para os justos,  onde poderão permanecer e não cair, será a luz dos gentios, e a esperança dos amargurados de coração.

Jesus emprega o termo O Filho do Homem, nos evangelhos em diversos sentidos, incluindo passagens que é algo que remete a uma circunlocução de auto-referência, tal como "um homem como eu" - p. ex., Mateus 8.20 e 12.32.

Contudo, essa passagem de Daniel, tomada no conjunto tendo em perspectiva todo o capítulo 7, a partir do sonho atribuído a Daniel durante o reinado de Belshasar até onde ele dá por encerrada, é retomada e/ou aludida em passagens importantes do Novo Testamento, que nos ajuda a refletir sobre a expectativa dos primeiros cristãos, sobre seu entendimento de si mesmos, de quem foi Jesus, e de Jesus sobre si mesmo e o caráter de sua missão.

Não encontramos a passagem-chave de Daniel 7.13 citada explicitamente. Mas nos evangelhos, ela ecoa bem ressonante em Marcos 13.26 Então, eles verão o Filho do Homem vir, rodeado de nuvens, na plenitude do Poder e da Glória. E toda a passagem de Marcos 13.14-27 retoma o capítulo 7 de Daniel, culminando com o vs. 27 Então ele enviará os anjos e, dos quatro ventos, da extremidade da terra à extremidade do céu reunirá seus eleitos. E retomado o tema novamente em 14.62, quando, indagado pelo Sumo Sacerdote se era o Messias, Filho do Deus Bendito, Jesus responde: Eu o sou, e vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo com as nuvens do céu. O que é aparentemente paradoxal na imagem, em que ao mesmo tempo que se está sentado no trono está vindo entre as nuvens, se aclareia pelo fato que, partilhando de um substrato comum com culturas da Antiguidade no Oriente Próximo, no ideário judaico o "Trono de Deus" era também a "Carruagem" de Deus [vide o capítulo 1 e o 10 de Ezequiel, o 4 de Apocalipse, por exemplo].

David Flusser, no capítulo 4 de “O Judaísmo e as Origens do Cristianismo – vl.2” faz uma reconstrução crítica desse dito de Jesus no confronto com o Sacerdote, afirmando que Lucas 22,69 indica com maior acuidade a expressão original e direta de Jesus, ressoando assim sua carga de impacto própria. Ele reconstrói a passagem como “A partir de agora o Filho do Homem estará sentado à direita do Poder”. Acolhe a sugestão das influências do Salmo 110.1, muito utilizado pelas comunidades cristãs mais antigas (O Senhor diz ao meu Senhor: assenta-te à minha direita(...)” e 80.18 “Concede tua ajuda ao homem à tua direita, o filho do homem que tomaste como teu próprio”.

Flusser faz um minuncioso resgate de usos e termos “hipostáticos” acerca de Deus e Seus atributos, com análises de usos de rabinos, de textos na comunidade de Qumrã e comentaristas cristãos da antiguidade como Teodoreto de Ciro, dando destaque à passagem de Isaías 9,5-6, (títulos como Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz) e encontra uma visão no “Pergaminho de Ação de Graças" - encontrado entre os Manuscritos do Mar Morto (1 QH 3:2-18) -, em que a interpretação da combinação de títulos é de que o Messias seria um Maravilhoso Conselheiro do Deus Poderoso, um oráculo sobre o destino da criança. Mais adiante, esse menino é descrito numa visão como “Maravilhoso Conselheiro com Seu Poder [o de Deus]” – 1 QH 3:10. Aponta que “Poder”, do hebraico gevurah e grego dunamis, é o “Grande Poder” de Atos 8,10 – livro do mesmo autor do Evangelho de Lucas [ sendo que a hipóstase "Glória", presente em Marcos, consta no tratado de Enoque 104,1]. Flusser aponta que o hino contendo a expressão dessa interpretação esteve numa tradição que contribuíra de forma importante para o capítulo 12 de Apocalipse.

O contexto [sobre o complexo contexto e uma discussão prolífica da elaboração nos evangelhos, sugiro "The Background to the Son of Man Sayings", de F.F.Bruce] da fala dele, dada como resposta, e a reação do Sumo Sacerdote e demais, nos indicam de forma clara que Jesus referiu-se a si; provocando escândalo ao se colocar numa posição de mesmo plano para com Deus na grande epifania escatológica - sentado à direita. E sendo essa passagem retomada da outra supracitada, com a mesma aplicação e nos mesmos termos (combinando, possivelmente por releitura do evangelista, com o Salmo 110.1 (Oráculo do Senhor ao meu Senhor: Senta-te à minha direita, que eu faça dos teus inimigos o escabelo dos teus pés!) afasta a possível impressão de que na passagem do capítulo 13, Jesus se referia a uma terceira pessoa ou entidade.

Ainda no Novo Testamento, no livro de Apocalipse, podemos enxergar que os cristãos associavam a figura do Filho do Homem ao seu Senhor. Em 1.7, essa passagem de Daniel 7.13 é aludida, combinando com Zacarias 12.10 ( (...) Erguerão, então, o olhar para mim, aquele a quem traspassaram. Celebrarão o luto por ele, como pelo filho único. Chorarão amargamente como se pranteia um primogênico). Outra importante ilustração apocalítica: Ei-lo que vem entre as nuvens e todo olho o verá, até mesmo os que o traspassaram: todas as tribos da terra estarão de luto por causa dele. Fundamental notar que a passagem está integrada a (...) da parte de Jesus Cristo, a testemunha fiel, o primogênito dentre os mortos e o príncipe dos reis da terra.

Também em 1.9-11 está implícito, culminando em 1.13 imiscuído com textos diversos do Antigo Testamento: e no meio dos candelabros, um como Filho de Homem. Ele vestia uma longa túnica, um cinto de ouro lhe cingia o peito.

Observe-se o paralelo entre essa parte do evangelho de João [ que se relaciona intimamente com as perspectivas do grupo cristão oriundo dos chamados “judeus helenistas”, apresentando também uma ligação com conversos de Samaria] 5.25-27 e o quadro apocalíptico de Daniel comentadas aqui:

Em verdade, em verdade eu vos digo, vem a hora – e é agora – em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que tiverem ouvido viverão. Porque assim como o Pai possui a vida em si mesmo, assim também deu ao Filho possuir a vida em si mesmo; ele deu o poder de exercer o julgamento porque é o Filho do Homem.

Nesse caso, há a associação com o título messiânico – na perspectiva do messianismo de realeza [Filho de Deus]–, com a figura escatolótica.

Outra questão importante ressaltada no capítulo de Daniel é sobre a participação dos justos no julgamento. Em 7.22, o julgamento fosse dado em favor dos Santos do Altíssimo, e que chegasse o tempo e os Santos possuíssem a realeza.

Essa expectativa na escatologia, dos mártires e dos fiéis perseverantes tomando parte no Julgamento Final ecoa na perspectiva apocalítica no Novo Testamento. Paulo: Acaso, não sabeis que os santos julgarão o mundo?- I Co. 6.2. Daniel 7.18 a seguir, os Santos do Altíssimo receberão a realeza, e possuirão a realeza para sempre e para todo o sempre, ecoa em Apocalipse 5. 9-10, também nas passagens sobre herdar o reino de Deus, mesmo por contraste, como em I Co. 6.9 – referindo-se aos injustos. Ecoa também no hino de II Timóteo 2.11-14, de forma elaborada em que, de grande importância, podemos ver que a própria liturgia da Igreja assimilara a expectativa do papel de Jesus no que concebiam como a manifestação definitiva da glória de Deus e o reinado do povo eleito e a nova realidade. Reverbera também em Lucas 22.28-30, Vós sois os que perseveraram comigo nas minhas provações. E eu disponho para vós o Reino como o meu Pai dispôs dele para mim: assim, comereis e bebereis à minha mesa em meu reino, e vos assentareis sobre o trono para julgar as doze tribos de Israel, com ecos mais suaves em Mateus 19.28; 25.31. Também, a partir de uma visão maior justapondo essas três passagens, ilumina-se o olhar sobre Apocalipse 3.21, no sentido de entender a leitura escatológica da igreja primitiva.

Em destaque, Daniel 7.18 ressoa mais altissonante na leitura de Lucas 12.32: Não temas, pequeno rebanho, porque foi do agrado de vosso Pai dar-vos o Reino. E de forma mais impactante, logo no início da narrativa de Marcos, 1.15: Cumpriu-se o tempodestacamos o impacto do termo tempo, relacionado a cumprir, em se tratando de expectativa escatológica - e o Reinado de Deus aproximou-se; convertei-vos e crede no Evangelho.

Importante refletirmos nisso tendo em mente que, no registro da concepção para com a ressurreição dos mortos tal como em II Macabeus 7.9 e 7.23, que assinala um aspecto que era decisivo na compreensão das diversas correntes do judaísmo do segundo templo: a associação da ressurreição com a justiça feita aos mortos pela causa da Aliança.

Abstemo-nos aqui de uma discussão, que para ser verdadeiramente imparcial demandaria um bom espaço, a cerca de se as passagens dos evangelhos destacadas seriam plausivelmente autênticas na atribuição a Jesus propriamente. Por um lado, reconhecemos a possibilidade de serem coloridas, trabalhadas ou elaboradas redacionalmente à luz de temáticas da pregação e crença das igrejas. Contudo, achamos, particularmente, que o critério da descontinuidade não tem valor em tal escala, para rechassar a autenticidade como apelo maior. Qualquer pessoa lúcida é capaz de compreender que ditos e ensinamentos de alguém tomado como um mestre excepcional com uma prerrogativa extraordinária tenha impactos sobre seus discípulos e nos movimentos que descendem dele, e que em certos períodos, se concentrem mais ênfase em dados aspectos, e outros, que foram menos destacados antes, podem ser retomados com mais ênfase, ou recapitulados,em outros contextos. Assim se dá com os partidos comunistas e os institutos liberais em relação à Marx e Mises.

De qualquer forma, temos elementos suficientes para depreender que: com toda a certeza, o movimento de Jesus e as igrejas cristãs ligada ao círculo de seus discípulos (assim consideramos também a(s) comunidade(s) de Hebreus e as fundadas por Paulo) lhe atribuíam o papel da figura que exercerá o Juízo de Deus. E que a expectativa deles para a definição final da História é que nesse Juízo, exercido pelo Salvador, tomarão parte os santificados e comissionados de Deus ( retomamos aqui também a reflexão sobre o papel dos 'Doze', simbolizando as doze tribos de Israel – daonde entende-se o dilema descrito em Atos para substituir Judas, só entendida a operação como legítima à luz de sua apostasia – para com os tronos falados em Daniel 7.9, o tribunal, em Daniel 7.10). E que com quase toda a certeza, isso foi consolidado a partir do que Jesus pregava, ensinava e arrogava para si e para o sentido de sua obra.

Estava no cerne da crença do cristianismo apostólico das origens que o sentido para o qual aponta o seu caminho: na consumação da História se dará o julgamento, a deslegitimação e subversão das estruturas, discursos e lógicas de dominação do mundo. Isso constantemente foi e é obnublado.

Para mais a respeito da posição do presente autor ante as controvérsias quanto aos ditos do "Filho do Homem" nos evangelhos, este está alinhado com  Delbert Royce Burkett em "The son of man debate: a history and evaluation".

Obs. citações bíblicas estão na versão da Bíblia Teológica Ecumênica - TEB
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    Este blog tem como objetivo central a postagem de reflexões críticas e pesquisas sobre religiões em geral, enfocando, no entanto, o cristianismo e o judaísmo. A preocupação central das postagens é a de elaborar uma reflexão maior sobre temas bíblicos a partir do uso dos recursos proporcionados pela sociologia das idéias, da história e da arqueologia.
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