sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A Significância de Jesus e a Escala Richter de Impacto Histórico Parte 3: Qual o Impacto de um Fato Histórico?

Continuando nossa série Jesus na Escala Richter de Impacto Histórico (ano novo, vida nova), gostaria de falar um pouco de fatos históricos e suas consequências.
O ponto de partida da série, foram as afirmações que volta e meia, e principalmente na Internet, encontramos :

Se Jesus pregou para multidões, teve doze discípulos, realizou curas e todas aquelas coisas da Bíblia, porque quase nenhum historiador judeu ou gentio falou sobre ele?
É so isso temos para o Filho de Deus? Ninguém lembrou dele? Será que ele existiu mesmo?
A Bíblia diz que multidões seguiam a Jesus, que sábios vinham de vários lugares para ouvir Jesus. Porque nenhum deles escreveu nada sobre ele?
Se Jesus tivesse realmente existido, escritores como Filo de Alexandria, Veleio Paterculo, Justus de Tiberíades, Sêneca, Plínio o Velho, Lucano e Plutarco teriam dito algo sobre ele.

No primeiro post da série nós conversamos um pouco sobre os problemas associados a esse tipo de argumento, de que a falta ou escassez de referências não cristãs a Jesus seria uma prova de sua inexistência ou irrelevância histórica. As vezes são apresentadas listas de autores que viviam no Império Romano nos 100 seguintes a morte de Jesus (em uma dessas listas, elaborada no final do séc. XIX pelo escritor Jonh Remsburg, são mencionados 43 autores) e pergunta-se "se Jesus existiu, se realizou tão grandes feitos, como pode não ter sido notado por esses escritores"? Como pode ter sido mencionado apenas por 3 ou 4 autores, em textos que não maiores que um parágrafo?.

Naquela ocasião mostramos como o consenso dos historiadores é justamente o contrário, e de que os evangelhos são usados como fonte histórica. Discutimos o fato de que se a avaliação dos pesquisadores varia muito e apresenta extremos, havendo aqueles que aceitam a tradição evangélica como basicamente confíavel até aqueles que defendem uma visão muito mais cética, concluindo que cerca de 10 % do que é atribuido a Jesus nos evangelhos teria sido provavelmente dito ou realizado por ele, e que entre estes extremos, a maioria dos críticos se posiciona em um amplo espectro de opiniões. O fato é que mesmo mesmo nessa visão bem minimalista teriamos por volta de 50 feitos e ditos de Jesus considerados como provavelmente autênticos, mesmo utilizando os critérios históricos de forma extremamente rigorosa. Na sequência, analisamos o testemunho de Josefo sobre Tiago, "irmão de Jesus chamado o Cristo", e sobre o próprio Jesus (o Testemunho Flaviano, ou TF), do qual concluimos pela autenticidade parcial, e analisamos as objeções mais comuns. Vimos também a relevância das afirmações dos historiadores romanos, Tácito, Plínio e Suetônio.

Mas dito isso qual o impacto de Jesus deixou no registro histórico? Qual a relevância das fontes que temos (cristãs ou não cristãs)? O que temos é o que poderíamos esperar?

No primeiro post da série "prometemos":
Além de analisar os relatos (ou falta deles) para pessoas e eventos contemporâeos a Jesus (um século antes e depois de sua morte), vamos comparar o impacto e atestação deixado por esses eventos e pessoas nas fontes literárias, com aquele deixado por Jesus de Nazaré. Uma espécie de "Escala Richter de Impacto Histórico"

Neste post, vamos começar com eventos que alteraram completamente a natureza do mundo antigo, verdadeiros marcos históricos, e sua atestação - Pedimos, porém, aos leitores para aumentar "um pouco" o período que haviamos proposto inicialmente, para incluir eventos que ocorreram vários séculos anteriores ou posteriores a Jesus (serão exemplos interessantes, prometo). Vamos falar um pouco também de como os textos literários foram produzidos e conservados na antiguidade, e porque muitas vezes não chegaram até nós.

1) Travessia do Rubicão
O Rio Rubicão, no final da República Romana, era a fronteira entre a provincia da Galia Cisalpina e a província da Itália (onde ficava Roma). As Lei Romana proibia os oficiais comandantes de movimentar suas legiões fora dos limites de sua provincia, sem autorização do Senado [1]. Na Itália (como prevenção contra possíveis golpes militares), tal proibição era, obviamente, muito mais séria. Somente consules e pretores podiam comandar tropas na Itália. Assim, um general que deixasse sua provincia e invadisse a Italia cometia crime capital, e os soldados que o seguissem também seriam condenados a morte.

No ano 49 AC graves tensões sacudiam a República Romana. O proconsul Gaio Julio César havia obtido sensacionais vitórias militares, conquistando as Gálias (atuais França e Bélgica) , submetendo milhões de pessoas ao domínio de Roma. Para muitos, porém, Cesar não era bemvindo . O General vitorioso, que acumulara riqueza incalculavel, e com legiões de soldados veteranos e extremamente leais era considerado uma ameaça. Seus maiores inimigos, uma facção de senadores liderada por Catão, o Jovem o acusava de varios crimes (reais, supostos e imaginários) e queria que ele fosse processado e julgado. O sucesso de Cesár não lhe trouxe muitos amigos, muito pelo contrário. Senadores mais moderados, como Cícero, e o antigo aliado de César, e seu companheiro de consulado, Pompeu "Magno", se voltaram contra ele. César queria condicionar seu retorno a Roma, com a possibilidade de uma nova eleição, que lhe daria imunidade legal. O Senado, de modo geral, se voltara contra Cesar. No entanto, Gaio César tinha o apoio do povo e, com massivas injeções financeiras, tivera suporte do consul Lucio Emilio Paulo e do Tribuno do Povo Gaio Escribônio Cúrio, em 50 AC, além de eleger seu comandado Marco Antônio como Tribuno do Povo no ano seguinte, o que lhe dava o poder de vetar algumas medidas do Senado. Em janeiro de 49 AC, a situação se tornou insustentavel. Pompeu e o Senado deram um ultimato para que César rendesse suas tropas e se submetesse a julgamento. Os tribunos aliados de Cesar se declararam ameaçados e fugiram da cidade. César, que estava em Ravena, soube das notícias e usando como pretexto as ameaças contra a sagrada figura dos tribunos do povo, atravessou o Rubicão com a XIII Legião e invadiu a Itália.

Pompeu e a maior parte do Senado fugiram de Roma, para não serem capturados. Seguiram-se quatro anos de Guerra Civil. Em sequência, César derrotou Afranio, na Espanha, depois Pompeu, na Batalha de Farsália (Grécia), que fugiu e foi assassinado no Egito; depois Catão, o Jovem, em Tapsos (Numídia, atual Tunisia), que se suicidou, e, finalmente, Pompeu, o Jovem, em Munda (Espanha). Cesar então voltou a Roma, perdou seus inimigos, tornou-se o senhor inconteste da República, e foi assassinado. Após a morte de César, Augusto e Marco Antônio lutaram entre si, depois contra Cassio e Bruto, e depois novamente entre si, para dominar o Império. Augusto venceu e instituiu o principado, depois de quase 20 anos de Guerras.

Então a Travessia do Rubicão é algo como o Grito do Ipiranga, o Ataque as Torres Gêmeas, a Bomba de Hiroshima, o homem chegando na Lua. Um evento que marcou o fim de uma era. O fim da República e o início do Império.

Uma descrição da Travessia do Rubicão nos é dada por Suetônio, com toda a pompa e circunstância:

"Quando chegou ao conhecimento de César a notícia de que o direito de intercessão dos tribunos havia sido derrogado e que estes se haviam retirado da cidade, rápida e secretamente, fez marchar na vanguarda algumas coortes (...) e arremoessou-se, acompanhado apenas de uma pequena escolta, pela estrada mais deserta. quando a chama dos archotes se extinguiu, perdeu-se e, por um longo espaço tempo, vagou absolutamente sem rumo. Quando a manhã já ia alta, apareceu, subitamente, um guia: caminhou a pé por veredas deveras estreitas e, nas ribas do Rubicão, que traça a fronteira com sua província, reuniu-se então com as coortes. Permaneceu lá por alguns instantes e, ao computar a magnitude de seus planos, dirigiu a palavra para os que acompanhavam, dizendo-lhes:
"- Hoje, ainda podemos recuar. Mas caso passarmos aquela pequena ponte, cabe à sorte das armas decidir o resto"
Permanecia ainda vacilando quando, de repente, deparou-se com a seguinte visão: um homem de corpo e beleza singulares apareceu ali por perto, tocando avena. Os pastores, como também numerosos soldados dos postos mais vizinhos, correram ao seu encontro para ouvi-lo, entre os quais alguns corneteiros. Assim que os avistou, o jovem músico arrancou o clarim de um deles e, de um salto, atirou-se ao rio. Fazendo-o soar com um vigor extraordinário, dirigiu-se para a margem oposta. Diante disso, César falou, então: "Vamos para onde nos chamam os prodígios dos deuses e a iniquidade dos nossos inimigos. A sorte esta lançada"

Suetônio nos dá um relato bastante "embelezado", e tardio, pois foi escrito 175 anos depois do fato. Mas esse deve ser o tipo de evento que as criancinhas em Roma aprendiam na escola. César comandava uma legião 5000 soldados, 300 cavaleiros, (ou seja, milhares de testemunhas oculares), e dezenas de oficiais. Centenas de senadores tiveram que sair de Roma e da Itália. assim, deve haver dezenas de referências e descrições detalhadas em livros, cartas, poesias... Certo?

Errado, como vc pode ver aqui, neste resumo do Prof. Jeffrey Benaker, da Universidade de Wiscosin:

"Caesar’s crossing of the Rubicon in 49 BC is well known as an important milestone in the demise of the Roman Republic. It is also the case that we lack contemporary or even near-contemporary accounts. Caesar himself, in his Bellum Civile, makes no mention of the river. The history of his lieutenant, Asinius Pollio, has been lost, as has Livy’s 109th book (the periocha for 109 does not mention the Rubicon). Velleius Paterculus, then, when he writes that Caesar crossed the Rubicon after being frustrated by the Senate, is the earliest extant author to refer to the crossing, even if he does not comment on the event’s significance. The first thorough treatment of the Rubicon in the surviving literature does not appear until more than a century after the fact, in Lucan’s Pharsalia, a work of epic poetry rather than historiography. This version is followed by the detailed accounts in the biographies of Caesar by Plutarch and Suetonius. Appian’s history also includes the story of the crossing, but Dio shows that a historian could still write about Caesar’s civil war without mentioning the Rubicon.
My aim in this paper is to examine the four extant narratives of Caesar at the Rubicon (Lucan 1.183-232; Plutarch, Caesar 31-32; Suetonius, Caesar 30-32; and Appian 2.35.5).
(tradução) "A Travessia do Rubicão por Cesar em 49 BC é conhecida como um dos eventos mais importantes na queda da República Romana. É também um caso de típico de falta de relatos contemporâneos ou semi-comtemporâneos. O próprio César, em seu livros Bellum Civile (Guerras Civis), não faz menção ao Rio. A história de seu oficial, Asinio Polio, foi perdida, assim como o 109° livro de Livio (o periocha para o livro 109 não menciona o Rubicão). Veleio Paterculo, ao escrever que César cruzou o Rubicão em resposta as ações do Senado, é nosso relato remanescente mais antigo, embora não comente a importância do evento. O relato detalhado mais antigo da travessia do Rubicão hoje existente esta em Farsália, de Lucano, escrito mais de um século depois do fato, e que é mais um trabalho de poesia épica do que historiografia. Esta versão é seguido pelas narrativas detalhadas nas biografias de César por Plutarco e Suetônio. A história de Apío também inclui a história da travessia, mas Dio mostra que um historiador ainda poderia escrever sobre a guerra civil de César, sem mencionar o Rubicão.
Meu objetivo neste paper é analisar as quatro narrativas hoje existentes da Travessia do Rubicão por César (Lucano 1.183-232; Plutarco, César 31-32, Suetônio, César 30-32; e Apiano 2.35.5)"

Ou seja, uma vez que o próprio Cesar (48 AC) não menciona o Rio, os relatos sobreviventes desse fato marcante são Veleio Paterculo (30 DC), Lucano (61 DC), Plutarco (80 DC), Suetônio (125 DC) e Apiano (150 DC). Ou seja, cinco relatos em 200 anos. Se considerarmos um período de 100 anos temos apenas Veleio Paterculo. Provavelmente, todos esses relatos se baseiam na história escrita por Asinio Polio, um dos oficiais de César, narrativa esta que se perdeu. Com excessão de Lucano, nenhum deles gasta mais de uma folha descrevendo a história. Veleio Paterculo escreve uma unica linha "Cesar concluiu que a Guerra era inevitável e cruzou o Rubicão com seu exército" ( Historia Romana, 2:49.4).

(Agora, onde estavam os quarenta e tantos escritores antigos que viveram nos 100 ou 150 anos depois da travessia do Rubicão, que não mencionaram esse fato?)

Outro problema é geografico. O Rubicão não era um rio caudaloso, mas um riacho cujo nascente era nos montes Apeninos e seguia até o Mar Adriático, passando pelas cidades de Rimini e Cesena. Em cerca de 40 AC, Augusto anexou a Galia Cisalpina a província da Itália, e a "relevância" do Rubicão foi em muito diminuida. Os séculos se passaram, o relevo da região foi alterado por ação natural e humana, e os cursos d'agua varias vezes tiveram seu curso alterado, de sorte que não se tem certeza onde exatamente o Rio se localizava [3]. (Em 1933, o Rubicão foi identificado, oficialmente, como sendo, muito provavelmente, o Rio Fiumicino [3]).


Apesar desses problemas geográficos e de atestação histórica, não há duvida de que havia um rio Rubicão na fronteira e César o atravessou. Primeiramente, César evita dizer que cruzou a fronteira entre a sua provincia e a Itália, e portanto não menciona o Rubicão, uma vez que ele estaria admitindo uma situação constrangedora, e confessando um crime [4]. César, astutamente, diz que foi informado dos tumultos e ultrajes sofridos pelos tribunos, quando estava em Ravena esperando a resposta de suas propostas de pacificação (Guerras Civis 1:5), e vendo Pompeu e seus aliados se preparando para Guerra e espoliando colonias, cidades e Templos em busca de recursos (1:6), convocou suas tropas e lhes rememorou as injurias recebidas, a inveja de seus inimigos, os ultrajes sofridos pelos tribunos, e suas boas intenções (1.7), e se assegurando da boa vontade dos soldados, marchou para Rimini (1.8). Ravena ficava na Galia Cisalpina, Rimini na Itália. (Cesár, magistralmente, escreve um relato em que faltam as palavras "província" "Galia", "Cisalpina", "fronteira", "Rubicão", "ilegal" e "Itália", e como em uma espécie de "teletransporte" da Antiguidade, surge na Itália como suas tropas).

Além disso, o fato que Cesar estava na Galia na década de 50 AC, que tomou a Itália no ano seguinte, e que houve uma Guerra Civil entre ele e Pompeu são fatos conexos é atestados por multíplas fontes literarias (como Cícero e Tito Lívio) e arqueológicas. Por fim, a travessia do Rubicão (que implica em invasão não consentida da Itália) é coerente com esses e os outros fatos que conhecemos. A travessia do Rubicão é um evento histórico que explica o curso dos acontecimentos de que temos conhecimento, e sem o qual nossas fontes não fariam sentido.
A ilustração apenas mostra que é imprudente fazer juízos históricos baseado apenas na falta de evidência, uma vez que mesmo acontecimentos de repercussão extraordinária e que mudaram a vida de milhões de pessoas de forma definitiva muitas vezes tem atestação reduzida nas fontes que chegaram até nós. Sob o ponto de vista de um cidadão do Império a travessia do Rubicão seria muito, mas muito, mais relevante do que a crucificação (e os feitos) de um pretendente messiânico, na distante Judéia, principalmente se ele não estivesse acompanhado de hordas de rebeldes sob seu comando.

2) Grecia Antiga, século III AC

É lugar comum apontar a Grécia clássica como o "berço da civilização ocidental". Filósofos como Pitagoras, Socrátes, Platão e Aristóteles logo vem a mente; também os passos importantes para o desenvolvimento futuro da ciência dados por Tales de Mileto, Demócrito, Hipócrates e Euclides; assim como experiências politicas como a democracia ateniense; bem como a berço de disciplinas como a História, com Herodoto e Tucidiades. Os idéias da Grécia Clássica foram importantes, principalmente, pela influência que exerceram sobre seus conquistadores, do Helenismo de Alexandre Magno, e posteriormente em prover a base cultural sobre o qual se desenvolveu o Império Romano, e, em grande parte, o cristianismo.

A wikipedia observa astutamente que a cidade de Atenas, nos séculos V e IV AC, está no epicentro de toda essa civilização. Lá estavam a Academia de Platão, e o Liceu de Aristóteles, e onde viveram inúmeros filósofos, politicos e escritores, nós é muito bem conhecida. O mesmo não pode ser dito do período posterior, já na fase helenistica (323 - 146 AC). No entanto, o Professor Pierre Cabanes, da Universidade de Paris X Nanterre, ao ilustrar os problemas de fontes que o historiador se depara de falta de documentação mesmo onde menos se espera.

"O historiador da Antiguidade deve frequentemente admitir sua ignorância sobre pontos importantes da vida dos antigos, pois nosso saber é fragil, limitado, construido a partir de uma documentação fragmentária, muitas vezes lacunar. Se a documentação é relativamente abundante para a cidade de Atenas , nos séculos V e IV AC, não o é mais para os séculos seguintes, e a história ateniense do século III AC sai do esquecimento graças a achados de inscrições. As regiões mais distantes sofrem ainda mais desta precariedade de documentos, que só aparecem na maioria das vezes , na tradição literária, por ocasião de uma guerra na qual tomam parte os exércitos atenienses. No resto do tempo reina o silência completo. Só as excavações arqueológicas podem fazer falar esses sítios que testemunham uma civilização interessante. E o que dizer da Gália pré-romana, dos etruscos cuja escrita ainda não foi completamente decifrada e tantas outras populações cuja lingua, puramente oral, só deixou poucos trações na toponímia e onosmática? O que dizer também das multidões que viveram na escravidãoou formas de dependência coletiva? Aqui e ali aparecem algumas, graças a uma decisão de alforriagravada no muro de um santuário. Mas esta pobreza de documentação não deve provocar a decepção diante da falta de informação; Ela deve, ao contrário, aguçar o espírito de observação metódica para extrair o máximo de cada aporte antigo. É desta busca permanente e tenaz que pode nascer um melhor conhecimento da antiguidade [5]

Ou seja, mesmo no "centro" do mundo antigo, no lugar em que escritores e cultura não faltavam, temos um período importantíssimo em que a documentação é escassa, ou até inexistente. Cabanes adiciona outro exemplo: o desaparecimento quase completo da tradição literária para certos períodos, como o século posterior as conquistas de Alexandre, o Grande (360-323 AC). Os registros primarios, como o relato do historiador da corte de Alexandre se perderam. As fontes secundárias, escritas por oficiais de Alexandre, como Ptolomeu, Nearco e Aristobolo, além do escritor Cleitarco, se perderam, e nossas fontes se resumem a relatos terciários de autores do período romano que se basearam nesses relatos secundários. (Uma boa introdução sobre os problemas das fontes nos é dada também por Jona Lendering, aqui e aqui [6])

"Poderíamos prosseguir esta constatação desastrosa multiplicando os exemplos, mas vamos nos limitar a observar o desaparecimento quase completo de toda a tradição literária para algumas épocas. Assim, para o século subsequente à morte de Alexandre o Grande, em 323, a tradição histórica é um vasto campo de ruínas. Nenhuma das grandes obras históricas contemporâneas é conservada, seja a de Jerônimo de Cardia ou a de Filarco. Elas foram utilizadas posteriormente, a primeira por Diodoro, Ariano e Plutarco, e a segunda por Políbio, Troge Pompeu e Plutarco. O próprio relato do reinado de Alexandre não consta mais nos escritos de seus contemporâneos, cujas obras desapareceram todas, mas nas obras do tempo de Augusto (Diodoro da Sicília e Troge Pompeu), do reinado de Vespasiano (História de Alexandre, de Quinto Curcio), ou do século II (A Anabasis de Arriano de Nicomédia, ou a Vida de Alexandre, de Plutarco). É preciso levar em conta essa defasagem cronológica entre os eventos narrados e as datas que ocorreram. Três ou Quatro séculos de distância não convencem ninguém a tomar este autor como Testemunho direto. Como se, em nossos dias, as guerras de religião emergissem simplesmente do nada" [7]
Ou seja, nossos registros literários para alguém que virou o mundo de cabeça para baixo, é limitado. Mais ainda para o período seguinte a morte de Alexandre, quando mudanças importantíssimas ocorreram e suas conquistas foram divididas entre seus generais. De novo, "é imprudente fazer juízos históricos baseado apenas na falta de evidência, uma vez que mesmo acontecimentos de repercussão extraordinária e que mudaram a vida de milhões de pessoas de forma definitiva muitas vezes tem atestação reduzida nas fontes que chegaram até nós".

3) Mais porque temos tão poucas fontes?

Devemos aqui fazer uma considerações a essa falta de fontes e relatos da Antiguidade. Milhares de livros foram produzidos na Antiguidade, a questão é que a grande maioria não chegou até nosso tempo. O problema se dá em virtude de como os textos antigos eram produzidos e conservados para a posteridade.

O professor Steve Mason, da York University, faz algumas consideração sobre a produção de livros e sua distribuição na Antiguidade observa abaixo que apenas uma ínfima parcela da população lia e escrevia no período romano e helenístico. Destes poucos letrados, somente alguns tinham condição de contratar um escriba profissional para fazer cópias dos textos que escreviam. Não havia, imprensa, maquinas de xerox, impressoras. A maioria dos livros era composta por seus autores para serem compartilhados entre seus amigos. Havia, é claro, excessões.

Most of the thousands of books that were written in the ancient world did not survive into the Middle Ages, let alone into the modern world. In the absence of paper, printing presses, and photocopiers, it was not a foregone conclusion that any given book would live beyond its author’s own generation. Publication of books was in general the prerogative of a small and literate elite. Books were often published (“made public”) in oral form, by recitation before a group of interested friends. Book manuscripts, on papyrus or occasionally parchment1 rolls, were relatively rare because they had to be copied individually by hand—usually the hand of a wealthy man’s slave. Libraries and booksellers existed, but they, too, were few and far between. Therefore, only those books that enjoyed a lively readership or some sort of official sponsorship could remain accessible. Only such committed readers would invest the necessary effort to have lengthy manuscripts copied and recopied. [8]
(tradução) A maioria dos milhares de livros que foram escritos no mundo antigo, não sobreviveu à Idade Média, e muito menos chegaram a nossa época. Na falta de papel, impressoras e fotocopiadoras, não havia garantia nenhuma de que determinado livro chegaria a ser lido pela geração seguinte a de seu autor. A publicação de livros era, em geral, prerrogativa de uma pequena elite e alfabetizados. Frequentemente os livros eram publicados ("tornados públicos") em forma oral, pela recitação diante de um grupo de amigos interessados. Manuscritos do livro, em papiro ou ocasionalmente rolos de pergaminho, eram relativamente raras, porque eles tinham que ser copiados à mão, um a um, normalmente pelo escravo de um homem rico. As bibliotecas e livrarias existiam, mas também eram poucos e distantes entre si. Portanto, somente aqueles livros que conseguiam um público devotado ou algum tipo de patrocínio oficial se mantinham acessíveis. Só esse leitores comprometidos iria investir o esforço necessário para que manuscritos extensos fossem copiados e reproduzidos.

O Professor Jona Lendering, por sua vez, observa as decisões econômicas que tiveram que ser feitas para manutenção e conservação de textos antigos. Uma vez que o papel e os escribas (insumos de produção) eram escassos e caros - e de tempos em tempos se deveria escolher quais os textos seriam copiados e quais não - se um determinado manuscrito tinha o "patrocinio" de um nobre rico (ou seja, havia demanda), ele sobreviveria, enquanto que os outros, "sem mercado", não. O mesmo pode ser dito de textos de interesse (ou desinteresse) das autoridades religiosas e políticas do momento.

Ancient texts were typically written on papyrus, which is vulnerable. As a rule of the thumb, we can assume that a scroll had to be copied every century. If parchment was used, replacement could take place less frequently. However, preparing a skin and making parchment was extremely expensive. Most texts were, therefore, written on papyrus and subject to decay and disappearance. If there were many copies of the same text, the chances of survival were greater, but professional writers were expensive and texts usually circulated in small numbers. A surprisingly great number of ancient texts has survived in only one copy, which shows how vulnerable the process of transmission was. The best way to conceptualize the process is, therefore, that ancient texts always disappeared, unless a rich lord or lady decided to hire a scribe and copy a scroll. Inevitably, selections were made. There was no need to copy the Histories of Valerius Antias once Livy had published the History of Rome from its Foundation; there was no need to copy the speeches of Greek orators of the third and second centuries BCE because the sophists of the second century CE were so much more eloquent; and there was no need to copy archaic poetry like Sappho’s because it was written in a poorly understood, archaic language. The publication of new texts was the greatest danger for the survival of older texts.
(tradução) Os textos antigos eram tipicamente escritos em papiro, que é vulnerável. Como regra geral , podemos supor que um livro tinha de ser copiado em cada século. Se pergaminho foi utilizado, a substituição poderia ocorrer com menos freqüência. No entanto, a preparar peles de animais para fazer um pergaminho era muito caro. A maioria dos textos foram, portanto, escritos em papiro e sujeitos à deterioração e desaparecimento. Se houvesse muitas cópias do mesmo texto, as chances de sobrevivência eram maiores, mas os escritores profissionais eram caros e os textos normalmente distribuídos em pequenas quantidades. Um número surpreendentemente grande de textos antigos chegou até nós em um único exemplar, que mostra o quão vulnerável o processo de transmissão foi. A melhor maneira de compreender o processo é ter em mente que textos antigos sempre desapareceriam, a menos que um rico senhor ou senhora decidisse contratar um escriba para recopia-los. Inevitavelmente, escolhas foram feitas. Não se julgou necessário copiar as histórias de Valerius Antias uma vez Lívio já havia publicado a história de Roma desde a sua fundação, não havia necessidade de copiar os discursos dos oradores gregos dos séculos III e II AC, pois os sofistas do século II DC foram muito mais eloqüentes, e não havia necessidade de copiar poesia arcaica como Safo, porque foi escrito em uma língua de díficil compreendida, arcaico. A publicação de novos textos era o maior perigo para a sobrevivência dos textos mais antigos.


Ou seja, os textos hoje existentes sobreviveram a um longo processo de seleção por séculos a fio. Tal processo facilitava a sobrevivência de textos de determinados autores (era mais fácil um livro atribuido a um mestre famoso como Aristoteles, Galeno ou Santo Agostinho, de que de um desconhecido Escribonio da Silva ou Theopompus de Souza). Além disso, determinados períodos foram catastróficos para conservação dos livros antigos, como os séculos seguintes a queda do Imperio Romano. Por fim, esse processo de seleção e escolha, que era racional do ponto de vista das limitações dos antigos, é desfavorável para os historiadores atuais. Entre copiar cada um dos relatos mais antigos, escritos próximos a epoca dos fatos, e um síntese e/ou resumo desses relatos feita por um escritor bem posterior, a escolha dos antigos tendia a ser pela segunda opção. É o caso das histórias de Valério Antias, Fábio Pictor, e Catão, o Velho, que foram fontes da narrativa de Tito Lívio, o grande sucesso da última significou que primeiras não foram conservadas, temos conhecimento de Antias, ou Catão ou Pictor apenas pelas citações em Lívio ou outros autores antigos (para desespero dos historiadores atuais).

4. As referências a Jesus na literatura antiga dificilmente seriam conseravdas


Por fim, devemos lembrar as condições de vida e morte de Jesus. Ele exerceu seu ministério em áreas rurais e pelo interior da Galiléia. Para os escritores romanos ou gregos, isso era tão remoto quanto Burkina Faso. Para os seus oponentes, ele e seu grupo eram uma seita obscura do judaísmo, um culto estrangeiro, uma "superstição nova e maligna" (Suetônio), entre centenas que existiam no Império. Jesus entrou em conflito com as autoridades políticas e religiosas da Judéia e foi crucificado, por ser acusado de ser o Messias, além de ter na cruz o explosivo título de "O Rei dos Judeus". Como nos diz Paulo, os poderosos deste mundo não compreederam Jesus "porque se o tivessem compreendido, não teriam crucificado o Senhor da glória." (I Cor. 2:8). Pregar a idéia de um Messias crucificado era "loucura para os gregos, e escândalo para os judeus" (I Cor. 1:23).

Logo, se algum autor não cristão fizesse menção Jesus, ou aos cristãos, seria, provavelmente, para ataca-los. As menções a Jesus e seu movimento por Tácito, Plínio e, Suetônio se referem a tumultos em que os cristãos estavam envolvidos, e onde sempre são descritos como superstição, com adjetivos nada lisonjeios como nova, depravada, irracional, mortal ... . A seção em que Jesus aparece em Josefo relata tumultos, tensões e calamidades, e, portanto, a versão original do Testemunho Flaviano provavelmente relatava uma atrocidade cometida contra Jesus (a crucificação de um inocente), ou um Tumulto causado por ele. Autores como Galeno e Luciano criticam a credulidade dos cristãos.

Ocorre que a Igreja, desde o século IV foi a principal (se não a única) mantenedora da herança literária da Antiguidade. Logo, textos e autores hostis ao cristianismo, ou que fizessem comentários desabonadores contra Jesus seriam menos propensos a serem recopiados a cada século, e, portanto, terem chegado até nós. É verdade que quase todos os autores citados acima fazem críticas ao cristianismo, mas quase todos eles ponderam que os cristãos eram inocentes das acusações inicialmente feitas contra eles (Tácito, Plínio) , tinham uma conduta correta e cuidavam uns dos outros (Luciano), ou percebiam elementos de sabedoria nos ensinos de Jesus ou do evangelho (Josefo e Galeno).

Ocorre que, principalmente para os primórdios do cristianismo, a maioria dos críticos não deve ter sido tão compreensivo. Como já dissemos em um post em que mostramos "Jesus pelas lentes de seus adversários", citando o Professor Maurice Goguel, que através de Luciano, Celso, das várias apologias do século II (Justino, Taciano, Aristides) e pelo Dialogo entre Justino e o judeu Trifo, podemos ter uma visão bem detalhada dos críticos do cristianismo naquele período. Da mesma forma que há uma tradição apologética existe um outra polêmica, a qual a primeira tentava refutar. Então, vemos já por volta de 130-140 DC Justino Martir constata em circulos judaicos "eles atribuiram [os milagres] a utilização de poderes mágicos, porque eles se atreveram a dizer que Jesus era um mágico e enganador do povo" (Dialogo com Trifo 69.5). Décadas depois, por volta de 175 DC, o crítico pagão Celso, em seu livro "o Verdadeiro Discurso" lança um violento ataque sobre vários aspectos da vida de Jesus - ancestralidade, concepção, nascimento, infância, ministério, morte, ressureição e influência posterior, baseado em informações que circulavam entre os judeus.

"De acordo com Celso, os pais de Jesus eram de uma aldeia judia (Contra Celso 1.28), e sua mãe era uma pobre mulher que obtinha seu sustento como fiandeira (1.28). Ele realizou seus milagres através de feitiçaria (1.28; 2.32; 2.49; 8.41). Sua aparência física era de um homem feio e pequeno (6.75). Para seu descrédito, Jesus manteve todos os costumes judaicos, inclusive o sacrifício no Templo (2.6). Ele reuniu apenas dez seguidores e ensinou a eles seus piores hábitos, como mendigar e furtar (1.62; 2.44). Seus discipulos, que contavam só "dez marinheiros e coletores de impostos" foram os únicos a qual ele convenceu de sua divindade, mas agora seus seguidores convertem multidões (2.46). Os relatos de sua ressureição vieram de uma mulher histérica, e a crença na ressureição foi o resultado da mágica de Jesus, os desejos de seus seguidores, ou alucinação coletiva, tudo com o propósito de impressionar outros e aumentar as chances de outros tornaram-se mendigos (2.55).” [10]

Justino e Celso atestam várias tradições já existentes de polêmicas e ataques contra Jesus. Um vez que ambos escrevem em meados do século II, é razoavel concluir que já havia, pelo menos no início do século II, uma literatura polêmica, incipiente, contra o cristianismo. Logo, provavelmente, existiram muito mais menções a Jesus e aos cristãos do que possuímos hoje. Sua natureza agressiva resultou em sua não conservação, ainda que seus ecos sejam percebidos na literatura apologética que tentou refuta-la.

Conclusão

É imprudente fazer juízos históricos baseado apenas na falta de evidência, uma vez que mesmo acontecimentos de repercussão extraordinária e que mudaram a vida de milhões de pessoas de forma definitiva, muitas vezes tem atestação relativamente reduzida nas fontes que chegaram até nós. Sob o ponto de vista de um cidadão do Império a travessia do Rubicão ou eventos posteriores a Alexandre Magno, seriam infinitamente mais relevantes do que a crucificação (e os feitos) de um pretendente messiânico, na distante Judéia, principalmente se ele não estivesse acompanhado de hordas de rebeldes sob seu comando. Nesse contexto, levando em conta a importância proporcional desses eventos para seus contemporâneos, a vida de Jesus pode ser considerada como relativamente bem atestada nas fontes não-cristãs. Além, é claro, da extraordinária quantidade de tinta que os seus seguidores utilizaram para registrar sua significância e seus feitos. Cabe ressaltar novamente, a análise só pode ser feita do ponto de vista proporcional e relativo, e não absoluto. Temos muita mais registros, diretos e indiretos, da Travessia do Rubicão do que da crucificação de Jesus, simplismente porque foram eventos de escalas muito diferentes de repercussão entre seus contemporâneos.

Como escreve o Professor John P. Meier, da Universidade de Notre Dame:

"A dificuldade de conhecer algo sobre Jesus deve ser colocada no contexto maior de saber algo sobre Tales, Apolônio de Tiana, ou qualquer outro nome do mundo antigo (...) Portanto o problema não é exclusivo de Jesus ou das fontes que contam sua história. Na verdade, em comparação com as inúmeras figuras indefinidas da história antiga, é surpreendentemente a quantidade de informações que temos sobre Jesus" [11].

Assim como o historiador israelense David Flusser, da Universidade Hebraica de Jerusalém,
"Realmente, possuimos registros mais completos sobre a vida dos imperadores seus contemporâneos e de alguns poetas romanos. Entretanto a excessão do historiador judeu Flávio Josefo, e possivelmente de São Paulo, Jesus é o judeu, de épocas posteriores ao Antigo Testamento, sobre quem nós mais sabemos" [12]

Referências Bibliográficas:
[1] Adrian Goldsworthy, Caesar's civil war, 49-44 BC, fl. 29
[2] Jeffrey Benaker (2007), Caesar on the Brink:Writing about the Rubicon in the Early Empire, 103th Classical Association of the Middle West and South, Cincinnati, Ohio, Abril 2007.
[3] Jona Lendering (2003), Rubico (49 BCE), http://www.livius.org/ro-rz/rubico/rubico.html, acessado em 18.01.2011.
[4] Kurt Raauflaub (2009) Bellum Civile In Miriam Tamara Griffin (2009) A companion to Julius Caesar, fl. 186.


[5] Pierre Cabanes (2001), Introdução a História da Antiguidade, fl. 16
[6] Jona Lendering , "Alexander the Great: the 'good' sources" http://www.livius.org/aj-al/alexander/alexander_z1b.html e "Alexander the Great: the 'vulgate' tradition, http://www.livius.org/aj-al/alexander/alexander_z1a.html, acessado em 18.01.2011
[7] Pierre Cabanes (2001), Introdução a História da Antiguidade, fl.
[8] Steve Mason (2003) Josephus and the New Testament, fl. 8, 2ª ed., excertos disponíveis http://www.hendrickson.com/pdf/chapters/156563795x-ch01.pdf, acessado em 21.01.2011
[9] Jona Lendering (2009), Common Errors (9): The Gnostic Gospels, postado em 15.05.2009 http://rambambashi.wordpress.com/2009/05/15/common-errors-9-the-gnostic-gospels/, acessado em 21.01.2011.
[10] Robert Van Voorst, Jesus Outside of New Testament, fl. 66

[11] John P. Meier (1991), Um Judeu Marginal, Repensando o Jesus Histórico, Vol. I, fl. 34
[12] David Flusser (1998), Jesus, fl .01

1 comentários:

Frankmar Corrêa disse...

Eu Sinceramente credito que Jesus de Nazaré é um personagem Histórico real!

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