Seria interessante refletir sobre alguns pressuspostos, que nos parecem equivocados, que encontramos com frequência, (mas, felizmente não na grande maioria das análises acadêmicas) de que os textos cristãos primitivos são imprestáveis para a análise histórica, que por representarem narrativas religiosas, devem ser "jogados para escanteio". Toda fonte histórica, seja na forma de texto ou artefato, foi produzida por alguém ou por um grupo, com um determinado propósito. Ou seja, possui um viés, em maior ou menor grau. Logo, uma vez que todas as fontes são enviezadas, parciais, não se pode "confiar" totalmente, para efeito de análise histórica, em nenhuma delas. Mas, pela mesma razão, não se pode desprezar nenhuma fonte existente, todas têm, a príncipio, pelo menos o potencial contribuir com algo.
Assim, uma proposta interessante é analisar Jesus e os evangelhos a luz de outras narrativas e figuras da antiguidade, no que se refere a objeção muito comum de que folclore e mito, excluem fato histórico. Como veremos mais adiante, muitas vezes é o contrário, quanto mais "histórico" é o individuo mais elementos "míticos" sua biografia atrairá.
Gilgamesh subjuga um Leão. Alto Relevo Assírio do sec VIII AC (Sargão II) no Museu do Louvre, Paris |
Como um exercício, vamos analisar, nesse e em um próximo post, os evangelhos a luz de duas narrativas que estão indissociávelmente associadas a mitologia, a dos semideuses Gilgamesh, Rei de Uruk e Hércules. Embora nossa opinião seja de que os evangelhos NÃO pertencem a este gênero literário, entendemos que a comparação é instrutiva. (A partir do 3° post, vamos comparar com escritos claramente históricos ou biograficos)
Um caso bastante interessante em que uma narrativa essencialmente mítica se desenvolve em torno de um figura provavelmente histórica. no Épico de Gilgamesh. Gilgamesh (em acadiano), ou Bilgames (em sumério), é mencionado na lista dos Reis Sumérios, do final do III milênio AC, como tendo sido o quinto Rei da primeira dinastia da cidade de Uruk (a bíblica Ereque, e a moderna Warak, no atual Iraque), por volta 2500-2700 AC [1]. Bilgames é o personagem principal de cinco textos sumerianos, que teriam surgido a partir do final do III milênio AC, de forma independente. Posteriormente, no Primeiro (ou Antigo) Império Babilônico (2000 a 1600 AC), os textos sumerianos foram compiladas e expandidas, em lingua acadiana, originando a primeira versão dos épicos feitos do Rei de Uruk, agora com o nome acadiano de Gilgamesh . O desenvolvendo da obra continuou por mais um milênio, chegando a versão "padrão", ou tardia, do Épico, elaborada entre 1300-1100 AC [1]
O épico relata como Gilgamesh, filho de Lugalbanda (ou de um fantasma ou demônio, na lista dos Reis Sumérios), e da deusa Ninsun, duas partes divino e uma parte humano, era Rei de Uruk e oprimia seus súditos. O povo de Uruk pediu o auxílio dos deuses, que atenderam criando Enkidu, o homem selvagem, cuja missão era acabar com a arrogância de Gilgamesh. Através de sonhos, e depois por um aviso de um caçador, Gilgamesh é informado da vinda de Enkidu. Engenhosamente, o Rei de Uruk envia a cortesã Shamhat para atrair o homem selvagem e traze-lo a civilização. Shamhat se relaciona fisicamente com Enkidu, por seis dias e sete noites, e o persuade a acompanha-la a Uruk.[2][3]
Os planos do Rei de Uruk, contudo, não conseguem impedir o que fora estabelecido pelos deuses. Gilgamesh e Enkidu se confrontam tão logo se encontram, mas Gilgamesh é vitorioso. No entanto, surpreendentemente, eles se tornam amigos inseparáveis.[2][3] Acompanhado de Eikidu, Gilgamesh deixa o seu reino e parte para grandes aventuras, encontrando ogros, semi deuses e outros monstros mitologicos como o demônio Humbaba na floresta dos cedros. A deusa Inana tenta seduzir Gilgamesh, e como suas investidas são rejeitadas, ela envia Gugalana, o Touro Celeste, marido da deusa Ereshkigal, contra Gilgamesh, mas ele, com ajuda de Eikidu, derrota e mata o Grande Touro. Por ter interferido, Enkidu é amaldiçoado pelos deuses e morre. Gilgamesh cai em profunda tristeza e chora sobre o corpo de seu amigo dias e dias. Gilgamesh perde a alegria de viver. Os feitos heróicos não o motivam mais.[2][3]
Ele então resolve buscar o segredo da imortalidade, que seria conhecido pelo sobrevivente do Dilúvio Utnapishtim. Para chegar até lá, Gilgamesh vai até as montanhas Mâshu para passar pela porta do Sol. A porta é guardada por dois homens-escorpião, "cuja visão é suficiente para causar a morte". O Rei de Uruk fica paralisado de medo e se prostra. No entanto, as feras reconhecem a condição divina de Gilgamesh, e o deixam passar. Gilgamesh cruza então as àguas da morte, com auxílio de Urshanabi, barqueiro de Utnapisthtim. Ao encontrar Utnapishtim, ele conta ao Rei de Uruk tudo o que passou no díluvio e como os deuses lhe deram a imortalidade. Utnapishtim propõe uma prova a Gilgamesh, que deve ficar seis dias e sete noites sem dormir. O herói fracassa retumbantemente, e adormece por seis dias e sete noites. Ao ver a tristeza e arrependimento de Gilgamesh por ter fracassado, Utnapishtim se compadece, e lhe diz aonde encontrar a planta da imortalidade. Gilgamesh vai até o fundo do mar, e obtêm a planta. Logo depois, porém, ele se descuida, e uma serpente, sorrateiramente, rouba a planta. Todo esforço de Gilgamesh para obter a vida eterna havia fracassado. Sua busca se mostrou infrutífera.[2][3]
Os planos do Rei de Uruk, contudo, não conseguem impedir o que fora estabelecido pelos deuses. Gilgamesh e Enkidu se confrontam tão logo se encontram, mas Gilgamesh é vitorioso. No entanto, surpreendentemente, eles se tornam amigos inseparáveis.[2][3] Acompanhado de Eikidu, Gilgamesh deixa o seu reino e parte para grandes aventuras, encontrando ogros, semi deuses e outros monstros mitologicos como o demônio Humbaba na floresta dos cedros. A deusa Inana tenta seduzir Gilgamesh, e como suas investidas são rejeitadas, ela envia Gugalana, o Touro Celeste, marido da deusa Ereshkigal, contra Gilgamesh, mas ele, com ajuda de Eikidu, derrota e mata o Grande Touro. Por ter interferido, Enkidu é amaldiçoado pelos deuses e morre. Gilgamesh cai em profunda tristeza e chora sobre o corpo de seu amigo dias e dias. Gilgamesh perde a alegria de viver. Os feitos heróicos não o motivam mais.[2][3]
descrevendo o Díluvio, em Acadiano.
(Wikipedia)
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No entanto, caros leitores do adcummulus, apesar do Épico ser basicamente um mito, a historicidade de Gilgamesh é geralmente aceita pelos estudiosos.
Como observa Maureen Kovacs [4]:
"There is no doubt that Gilgamesh was a real historical figure who ruled the city of Uruk at the end of the Early Dinastyc II Period (ca 2500-2700 BC). Through no royal inscription are known that would directly estabilish his existence, one person he is associated with in epic is actually attested by contemporary inscription. The Sumerian Epic "Gilgamesh and Agga"mentioned earlier, refer to a war fought between Gilgamesh of Uruk e Agga of the city of Kish, son of Enmebaragessi. This Enmebaragessi is a historically authenticated figure, with two contemporary inscriptions."[5]
(tradução) "Não há dúvida que Gilgamesh foi uma figura histórica que reinou sobre a cidade de Uruk no final do Segundo Período Dinastico Primitivo (2500-2700 AC). Embora não haja nenhuma inscrição real conhecida que estabeleça de forma direta sua historicidade, uma pessoa a qual ele está associado no Épico tem sua existência atestada por uma inscrição contemporânea. O Épico sumeriano "Gilgamesh e Agga" mencionado anteriormente, faz referência a uma guerra entre Gilgamesh de Uruk e Agga da cidade de Kish, filho de Enmebaragessi. Este Enmebaragessi é uma figura histórica atestada em duas inscrições contemporâneas"[4]
Assim não há um texto ou artefato contemporâneo ou semi-contemporâneo que mencione Gilgamesh. No entanto, a historicidade do Rei de Uruk, é geralmente aceita com base em um conjunto de elementos um tanto circunstâncias, o mais importante é fato de que um dos cinco textos sumerianos anteriores ao épico, "Gilgamesh e Aga", relata a guerra entre Gilgamesh de Uruk e o Rei Aga, filho de Enmebaragesi, de Kish. Tanto Aga, quanto Enmebaragesi, são mencionados no Épico de Gilgamesh. O Rei Enmebaragesi é mencionado em duas inscrições contemporâneas.
A Professora Susan Ackerman, do Darthmouth College, nos apresenta alguns detalhes adicionais:
A Professora Susan Ackerman, do Darthmouth College, nos apresenta alguns detalhes adicionais:
"Gilgamesh's rule sometime during the second phase of the Early Dinastic Era (ED II) of Sumerian history, which lasted from ca 2700-2500 BCE. . Unfortunately, there are no historical texts confirming the existence of a King Gilgamesh of Uruk that date from this ED II period. although we do have an Early Dinastic votive inscription that bears the name of a King Enmebaragesi of the city state of Kish. This same King Enmebaragesi is also refered to in the later sumerian texts in conjuction with Gilgamesh: in late third-millenium BCE hymn composed in praise of Gilgamesh, for example, and in the epic text, probably of same date, that tells the story a battle between Gilgamesh and Enmebaragesi's son and sucessor Agga (ou Akka). Most scholars suppose that since the King Enmebaragesi of these late third millenium BCE hymns and epics is a known historical figure, so too must be his hymnic and epic counterpart Gilgamesh" [5]
(tradução) "Gilgamesh reinou em algum ponto durante a segunda fase do início da era Dinastica (ED II) da história suméria, entre 2700-2500 AC. Infelizmente, não há textos históricos que confirmam a existência do rei Gilgamesh de Uruk, datando deste período (ED II), embora nós temos uma inscrição votiva dinastica que leva o nome de um certo Enmebaragesi, Rei da cidade-estado de Kish. Este mesmo rei Enmebaragesi também é referido nos textos sumerianos posteriores juntamente com Gilgamesh: no final do terceiro milênio AC, em um hino composto em louvor de Gilgamesh, por exemplo, e no texto épico, provavelmente, de mesma data, que conta a história de uma batalha entre Gilgamesh e o filho e sucessor de Enmebaragesi Agga (OU Akka). A maioria dos estudiosos acreditam que, uma vez que o Rei Enmebaragesi desses hinos e epicos do final do terceiro milênio AC é uma figura de historicidade comprovada, assim também sua contraparte Gilgamesh "[5]
Assim como o Professor Jeffrey Tigay, da Universidade da Pensilvânia
"Although Gilgamesh existence is not confirmed directly by any contemporary inscription of his own which mention him, the likehood that there was a King of this name has been enhanced by the discovery of inscriptions of contemporaneus rulers of Kish and Ur with whom Gilgamesh is associated in epic and historical tradition (...) this is the extent of the historical and biographical information about Gilgamesh available outside the epic and its sumerian forerunners. It tend to support his existence, his date, and therefore his association with certain historical figures, his reconstruction of a shine, and the epic's statement that he built the wall of Uruk (GE I,i, 9-10). It may be that other details in the sumerian and akkadian narratives have a historical basis, but on these we can only speculate [6]
(Tradução) Embora a existência de Gilgamesh não seja confirmada diretamente por nenhuma inscrição contemporâmea de sua autoria que o mencione, a probabilidade que tenha havido um rei como esse nome foi aumentada pela descoberta de inscrições de governantes contemporâneos de Ur e Kish a quem Gilgamesh foi associado no épico e na tradição histórica (...) assim, os elementos históricos e biográficos disponíveis fora do Épico de Gilgamesh e seus antecessores tendem a dar suporte a sua existência, periodo em que viveu, , em consequência de sua associação com certas figuras históricas, que reconstruiu um santuário, e a afirmação contida no épico de que ele construiu os muros de Uruk (Épico de Gilgamesh I, i, 9-10). Pode ser que outros detalhes nas narrativas sumeriana e acadiana tenham base histórica, mas sobre eles podemos apenas especular.[6]
(Tradução) Embora a existência de Gilgamesh não seja confirmada diretamente por nenhuma inscrição contemporâmea de sua autoria que o mencione, a probabilidade que tenha havido um rei como esse nome foi aumentada pela descoberta de inscrições de governantes contemporâneos de Ur e Kish a quem Gilgamesh foi associado no épico e na tradição histórica (...) assim, os elementos históricos e biográficos disponíveis fora do Épico de Gilgamesh e seus antecessores tendem a dar suporte a sua existência, periodo em que viveu, , em consequência de sua associação com certas figuras históricas, que reconstruiu um santuário, e a afirmação contida no épico de que ele construiu os muros de Uruk (Épico de Gilgamesh I, i, 9-10). Pode ser que outros detalhes nas narrativas sumeriana e acadiana tenham base histórica, mas sobre eles podemos apenas especular.[6]
Busto em Calcário, possivelmente Lugalkisalsi, Rei de Uruk Museu do Louvre, via Wikipedia |
Enmebaragesi, o Rei desta cidade (que é Nippur), edificou a Casa de Enlil. Agga, o filho de Enmebaragesi, fez o Tummal proeminente.
Pela primeira vez o Tummal caiu em ruina.
Mesanepada, o Rei, construiu o 'Bursusua' do Templo de Enlil
Meskiagnuma, o Filho de Mesanepada, fez o Tummal esplêndido e introduziu Ninlin lá.
Pela Segunda vez, o Tummal caiu em ruína.
Gilgamesh construiu o Dunumunbura, nos dias de Enlil,
Ur-lugal, o filho de Gilgamesh, fez o Tummal esplndido e introduziu Ninlil lá. [7]
Como observa o Professor Andrew R George, da Universidade de Londres, embora distante do tempo de Gilgamesh em vários séculos, a inscrição de Tummal, em conjunto com as outras inscrições contemporâneas de pessoas mencionadas no ciclo narrativo de Gilgamesh, ainda que evidências indireta, constituem, em conjunto, forte indicativo da historicidade do Rei de Uruk.
Alguns leitores podem ter ficado surpresos, perguntando " Ora, tudo o que sabemos sobre Gilgamesh vem de um relato mitológico, o peíodo que viveu é incerto (2700-2500 AC), os únicos registros externos de sua existência são inscrições do pai de um Rei contra o qual ele teria lutado, inscrições em que Gilgamesh não é sequer mencionado, ou então um texto escrito séculos depois em que Gilgamesh é citado junto com outros reis que teriam existido, então como a sua historicidade pode ser aceita?"The tummal text is important, neverthelles, because it places Gilgamesh in the company of Enmebaragesi, Mesannepadda, Meskognunna e, talvez, Aannepadda, men who are attested as historical figures by their own inscriptions (...) On the evidence presented above it seems likely that there was once a King Bilgames in Uruk, just as there may have been in Britain a real King Arthur. But the Gilgamesh of the epic traditions is a literary character, to whom any number of originally disparate traditions have accrued. Its a vain hope to find in history such a hero of legend [7]
(Tradução): A inscrição de Tummal é importante, no entanto, pois coloca Gilgamesh em companhia de Enmebaragesi, Mesannepadda, Meskognunna e, talvez, Aannepadda, homens que são atestados como figuras históricas por suas próprias inscrições (...) A partir da evidência apresentada acima, parece provável que existiu um dia um Rei Bilgames em Uruk, assim como deve ter havido na Inglaterra um Rei Arthur histórico. Mas o Gilgamesh das tradições épicas é um personagem literário, a qual um grande número de tradições disparatadas se acumularam. É uma esperança vã tentar encontrar a história do herói lendário.[7]
Tais questionamentos também são levantados por estudiosos. Por exemplo, Eleanor Robson, Professora do Departamento de Historia e Filosofia da Ciência da Universidade de Cambridge, em uma resenha do livro do Professor Andrew R George, publicada no Bryn Mawr Classical Review (BMCR):
On the other hand, he is curiously willing to accept the historicity of an
original Gilgamesh, king of Uruk some time in the early to mid-third millennium
BCE. In fact, the only relevant pieces of evidence are two brief royal
inscriptions of (En)-mebarage-si, king of Kish, who according to one Sumerian poem was the father of Gilgamesh's adversary Akka or Aga. This convinces me of nothing historical but suggests instead that a well-known king (En-mebarage-si) was adduced to add pseudo-historicity to this one Sumerian composition
(Tradução) Por outro lado, ele curiosamente tende a aceitar a historicidade de Gilgamesh, Rei de Uruk, em algum momento entre o ínicio e meados do terceiro milênio antes de Cristo. Na verdade, as únicas peças de evidência relevantes são duas breves inscrições reais de (En)-mebarage-si, Rei de Kish, que de acordo com um poema sumeriano foi pai de Akka ou Aga, adversário de Gilgamesh. Isso não me convence da historicidade de nada, mas apenas sugere que um Rei conhecido foi inserido para conferir pseudo historicidade a aquela composição Suméria. [8]
Ainda assim, como já apontado acima, a posição dominante entre os estudiosos ainda é que o Rei Gilgamesh de Uruk provavelmente existiu. Tal conclusão se baseia no balanço da evidência disponível, que ainda que não seja suficiente para, conclusivamente, estabelecer a historicidade de Gilgamesh, apresenta elementos que, mesmo que insuficientes isoladamente, tomados em conjunto apresentam força consideravel.
A Lista dos Reis Sumérios, já mencionada, é estruturada de forma a identificar as dinastias das cidades-estados dominantes na antiga Sumer. Assim, a lista, relata que, após o dilúvio, o reinado cabia a dinastia de Kish. Aga, filho de Enmebaragesi, é o último rei listado, pois em seus dias, a hegemonia teria passado para Uruk, posteriormente para Ur. Como adverte o Professor Nicholas Postgate, de Cambridge, o ínicio da lista narra as fantásticas cidades de Eridu, Batbira, Sippar, Larak e Surupak, com seus governantes legendários, que reinaram por milhares de anos [9]. Mesmo para o periodo pós-diluviano, há omissões e vieses extremamente significativos, parte pela limitações das fontes disponíveis ao criadores da lista, em parte pelas motivações políticas que levaram sua elaboração [9]. No entanto, apesar de todas estas dificuldades, Postgate adverte que os estudiosos resistem em abandonar a Lista dos Reis Sumérios como fonte histórica, em parte, por que artefatos contemporâneos corroboram seu conteúdo em alguns pontos, demonstrando que tradições historicas genuínas foram incorporadas (e em parte porque os historiadores, conscientemente ou não, ainda são influenciados por uma peça de propagando de 4000 anos atrás!!!!) [9]. Assim, Postgate, observa que quando a Lista fala que nações estrangeiras como Mari, Awan e Hamazi exerceram hegemonia, por exemplo, não se pode descartar isso como meras lendas, mas conceder, a princípio, o benefício da dúvida, mesmo quando não há registros contemporâneos de tal domínio [9]. A menção a Gilgamesh na lista, em face do período em que é mencionado, é uma evidência de historicidade, embora pouco significativa.
O texto Gilgamesh e Aga, narra como o Rei de Kish cercou Uruk pois percebeu sua hegemonia sendo contestada por Gilgamesh, e acabou sendo derrotado, capturado, ainda que poupado. O poema, que, salvo em alguns elementos específicos (como a menção do confronto entre Aga e Gilgamesh) não foi incorporado ao Épico, apresenta estrutura diferenciada dos demais textos relativos ao Rei de Uruk. Einkidu, por exemplo, é agora apenas um valente servo do Rei. A narrativa é centrada em torno de questões internas e externas de cidades-estados da antiga Mesotopâmia, e utiliza, como observa Dina Katz [10], "material tomado da realidade histórica e cria uma impressão de autenticidade pela figura de Gilgamesh apresentada" e tem levado os estudiosos a utilzarem a narrativa como fonte histórica para alguns aspectos, ainda que haja dúvidas quanto se esse procedimento é recomendável [10]. A inscrição de Tummal também apresenta a posse do santuário de Nippur, que variava conforme a cidade-estado hegêmonicas, e passou entre vários reis sabidamente históricos, e menciona também Gilgamesh.
Assim, temos a menção na Lista dos Reis Sumérios, em um período em que existe comprovação contemporânea da historicidade de outros governantes contemporâneos, como Enmebaragesi, da vizinha Kish. Enmebaragesi, e seu filho Aga são mencionados no Épico. Além disso, o texto Aga e Gilgamesh relata um conflito entre as cidades de Kish e Uruk, de forma plausivel em relação ao que se esperaria naquele contexto e período. Adicionalmente, Gilgamesh é citado na inscrição de Tummal, que mesmo que escrita séculos depois, o coloca em um contexto claramente histórico, em companhia de governantes atestados por fontes contemporâneas junto com outros reis cuja existência é atestada. Isoladamente, nenhuma dessas evidências é significicativa, e são de natureza circunstâncial, tomadas em conjunto, porém, tem levado a maioria dos estudiosos a concluir que a menção incidental do Rei Enmebaragesi, e de seu sucessor Aga, é melhor explicada por uma memória histórica de interações deles com Gilgamesh de Uruk.. Assim, por meios indiretos, entendem que é mais provável que Gilgamesh tenha existido, mesmo que não se possa dizer quase nada sobre ele além de que tenha reinado sob Uruk em meados do terceiro milênio antes de Cristo.
Mesopotâmia Segundo Milênio AC (via wikipedia) |
Assim, temos a menção na Lista dos Reis Sumérios, em um período em que existe comprovação contemporânea da historicidade de outros governantes contemporâneos, como Enmebaragesi, da vizinha Kish. Enmebaragesi, e seu filho Aga são mencionados no Épico. Além disso, o texto Aga e Gilgamesh relata um conflito entre as cidades de Kish e Uruk, de forma plausivel em relação ao que se esperaria naquele contexto e período. Adicionalmente, Gilgamesh é citado na inscrição de Tummal, que mesmo que escrita séculos depois, o coloca em um contexto claramente histórico, em companhia de governantes atestados por fontes contemporâneas junto com outros reis cuja existência é atestada. Isoladamente, nenhuma dessas evidências é significicativa, e são de natureza circunstâncial, tomadas em conjunto, porém, tem levado a maioria dos estudiosos a concluir que a menção incidental do Rei Enmebaragesi, e de seu sucessor Aga, é melhor explicada por uma memória histórica de interações deles com Gilgamesh de Uruk.. Assim, por meios indiretos, entendem que é mais provável que Gilgamesh tenha existido, mesmo que não se possa dizer quase nada sobre ele além de que tenha reinado sob Uruk em meados do terceiro milênio antes de Cristo.
Ou seja, leitores do adcummulus, o fato de podermos associar (parte) da narrativa de Gilgamesh, mesmo que de foram mínima, a um contexto histórico específico, é forte elemento na aceitação de sua historicidadea mesma forma, utilizando critérios semelhantes, uma das razões pelo qual a maioria esmagadora dos historiadores especializados no período considera que Jesus muito provavelmente existiu, e que os evangelhos contém um núcleo de informação histórica, é que se contextualizam claramente no período do Segundo Templo do Judaísmo, em uma Judéia e Galiléia cuja a estrutura e organização social é consistente com o que sabemos de outras fontes, que interage com figuras de historicidade bem determinada como Pilatos, Caifas, Anás, Herodes Antipas, e João Batista. Ou seja, os evangelhos contém um número significativo de elementos e detalhes plausíveis e no contexto e verossimilares. Além disso, no caso de Gilgamesh as primeiras fontes e informações biográficas datam de alguns séculos após sua suposta existência, enquanto que para Jesus temos menos de duas décadas para as cartas de Paulo e cerca de 50 anos para os evangelhos, além dos testemunhos, ainda que breves, de Josefo (provavelmente), Tacito, Luciano, Celso, entre outros. Assim a evidência relativa a historicidade de Jesus é muitas mais próxima a sua existência, do que de Gilgamesh. Finalmente, pelo menos parte de seus discipulos é atestada em documentos contemporâneos (Pedro, João e Tiago, irmão de Jesus, em Galátas, por exemplo).
Obviamente, uma melhor comparação poderia ser feita entre Jesus e figuras mais ou menos contemporâneas cujas primeiras fontes remontam de cerca de 50-100 anos após sua existência, tais como lideres religiosos como o Mestre de Justiça (de Quram); Honi, o fazedor de Chuva; Hanina Ben Dosa, ou revolucionários como Simão de Peréia e Judas Galileu, ou filósofos como Apolônio de Tiana. Todos esses são considerados históricos. É por isso que geralmente se aceita a historicidade de Jesus e até mesmo de Gilgamesh.
Outro elemento importante, é que o Épico de Gilgamesh é uma narrativa contínua e complexa, elaborada a partir de vários textos anteriores, por sua vez (em parte) derivados da tradição oral. Existiram então textos de natureza distinta, que sofreram profundo processo de adaptação e transformação literária. Como os textos são distintos, cada um deve ser analisado historicamente de forma independente. Pelo menos uma das narrativas, Gilgamesh e Aga, apresenta características plausíveis em relação ao contexto histórico, sendo possivel que tenha sido baseada em alguns fatos reais. Da mesma forma, quando falamos em "Novo Testamento", estamos nos referindo a um conjunto de textos, inicialmente independentes, que foram agrupados para uso das comunidades cristãs, começando com o herege Marcion (em 130-140DC) e São Irineu (180 DC). Então, cada texto deve ser avaliado independentemente e nas suas interações com os outros e com o contexto. E mesmo os textos atuais foram, provavelmente, elaborados a partir de outros mais antigos, como os Evangelhos de Mateus e Lucas, que são derivados de Marcos e Q. Assim, um estudioso pode considerar Marcos (e portanto, partes de Lucas e Mateus) pouco confiáveis historicamente, e ao mesmo tempo entender que Q nos remete em substância ao Jesus Histórico.
Detalhe da Porta de Ishtar, Museu Pergamo, Berlin via Wikipedia. |
Como já dissemos aqui no adcummulus, discutindo sobre o trabalho do Professor John Roberts, apontando muitos "elementos dos evangelhos
"inerentemente plausíveis com o que se esperaria de um líder religioso judeu
da período", ou seja, são altamente plausíveis no contexto.
Podemos acrescentar como já visto naquele post, que há muitas evidências de uma
tradição oral vibrante anterior aos evangelhos (L Michael White), que tem seu
valor reconhecido como fonte histórica, junto com Josefo, para o mundo judaico
do periodo anterior a destruição de Jerusalém (Fergus Millar), que várias
tradições individuais (e complexos de tradição) contém tanto "colorido local" e
tantos "indicios de familiaridade" que devem ter surgido na Palestina, no
periodo em que Jesus exerceu seu ministério (Gerd Thiessen), os evangelistas
apresentam Jesus consistentemente pregando nas pequenas vilas e aldeias da
Galiléia, um mundo distinto dos cristãos primitivos nos grandes centros urbanos
da civilização greco-romana, ainda que fosse interessante para esse cristãos ver
Jesus discutindo filosofia com os filósofos em Séforis ou Tiberiades, indicando
fortemente que nesse aspecto os evangelistas reproduziram o que encontraram em
suas fontes (Geofrey M de Ste Croix). (...) já refletimos sobre como os
evangelhos sinóticos apresentam um contorno geral de Jesus poderoso em palavras
e atos, nas pequenas vilas e aldeias da Galíleia, em dissonância com a pregação
do Cristo querigmático posterior; proto-ortodoxos, ebionitas, marcionitas,
gnosticos docéticos e separacionistas conservam o esqueleto básico dessa
narrativa, quase como um ancestral comum, mesmo que não o enfatizem (David
Flusser e Geza Vermes).
A identificação de elementos que plausivelmente podem ser organizados em uma narrativa comum coerente com o contexto histórico em que teriam se originado, e que são mantidos em várias tradições cristãs concorrentes e rivais, em alguns casos indo contra as tendências de desenvolvimento dessas tradições, formam a base do critério de plausibilidade histórica. Como observa um colega e contemporâneo de John M Roberts, Louis Gottschalk, que foi Professor da Universidade de Chicago, em seu Manual, "Understanding History", na análise de um documento, o historiador deve se ater mais a cada parte relevante do documento, do que ao documento como um todo. Em relação a cada um desses elementos relevantes e particulares, ele deve se perguntar: "Isso é crível ? Por crível não se entende "o que realmente ocorreu", mas sim o "que é mais proximo do que realmente pode ter acontecido com base no exame crítico das melhores fontes disponíveis"[16]. Ou seja, os elementos com alto grau de verossemelhança, o que, enfatiza Gottschalk, é bem mais do que não ser falso, e ainda acima do que meramente plausível[16]. Em outras palavras, o historiador tem condições de estabelecer verossemelhança, ao invés de verdade objetiva[16]. Foi justamente isso que os estudiosos já citados fizeram com os evagelhos. A partir da analise dos elementos relevantes das fontes, estabeleceram a partir de vários elementos plausíveis, um retrato verossimilar de Jesus, tendo em vista o contexto em que viveu, e o impacto que causou. É semelhante a montagem de um quebra-cabeça, onde as peças são arranjadas de forma a formarem um figura, reconhecendo que muitas peças podem estar faltando, e as vezes seja possivel apenas esboçar, ou nem isso, a figura original".
Referências Bibliográficas
[1] Susan Ackerman (2005), When heroes love: the ambiguity of eros in the stories of Gilgamesh and David, fls. 33-36, Columbia University PressA identificação de elementos que plausivelmente podem ser organizados em uma narrativa comum coerente com o contexto histórico em que teriam se originado, e que são mantidos em várias tradições cristãs concorrentes e rivais, em alguns casos indo contra as tendências de desenvolvimento dessas tradições, formam a base do critério de plausibilidade histórica. Como observa um colega e contemporâneo de John M Roberts, Louis Gottschalk, que foi Professor da Universidade de Chicago, em seu Manual, "Understanding History", na análise de um documento, o historiador deve se ater mais a cada parte relevante do documento, do que ao documento como um todo. Em relação a cada um desses elementos relevantes e particulares, ele deve se perguntar: "Isso é crível ? Por crível não se entende "o que realmente ocorreu", mas sim o "que é mais proximo do que realmente pode ter acontecido com base no exame crítico das melhores fontes disponíveis"[16]. Ou seja, os elementos com alto grau de verossemelhança, o que, enfatiza Gottschalk, é bem mais do que não ser falso, e ainda acima do que meramente plausível[16]. Em outras palavras, o historiador tem condições de estabelecer verossemelhança, ao invés de verdade objetiva[16]. Foi justamente isso que os estudiosos já citados fizeram com os evagelhos. A partir da analise dos elementos relevantes das fontes, estabeleceram a partir de vários elementos plausíveis, um retrato verossimilar de Jesus, tendo em vista o contexto em que viveu, e o impacto que causou. É semelhante a montagem de um quebra-cabeça, onde as peças são arranjadas de forma a formarem um figura, reconhecendo que muitas peças podem estar faltando, e as vezes seja possivel apenas esboçar, ou nem isso, a figura original".
Referências Bibliográficas
[2] Mircea Eliade (1976) História das Crenças e das Idéias Religiosas, Volume I (Da Idade da Pedra aos Mistérios de Eleusís), fls. 83/86 , Jorge Zahar Editora.
[3] JR Porter (1993) O Oriente Médio In Roy Willis: "Mitologias: deuses, heróis, e xamãs nos tradições e lendas de todo o mundo", fls. 61, Publifolha.
[4] Maureen G Kovacs (1989), The Epic of Gilgamesh, fl. xxvii, Stanford University Press
[5] Susan Ackerman (2005), When heroes love: the ambiguity of eros in the stories of Gilgamesh and David, fls. 36-38, Columbia University Press.[3] JR Porter (1993) O Oriente Médio In Roy Willis: "Mitologias: deuses, heróis, e xamãs nos tradições e lendas de todo o mundo", fls. 61, Publifolha.
[4] Maureen G Kovacs (1989), The Epic of Gilgamesh, fl. xxvii, Stanford University Press
[6] Jeffrey Tigay (1982), Evolution of the Gilgamesh Epic, fls. 14-15, Bolchazy-Carducci Publishers
[7] Andrew R George (2003) The Babylonian Gilgamesh Epic: Introduction, Critical Edition and Commentary, vol I, fls. 105-106, Oxford University Press
[8] Eleanor Robson (2004) (review) 2004.04.21Bryn Mahr Calssical Reviews (BMCR): A.R. George, The Babylonian Gilgamesh Epic: Introduction, Critical Edition and Cuneiform Texts, 2 vols. Oxford: 2003. Pp. xxxvi, 986;
[9] J. Nicholas Postgate (1994) Early Mesopotamia: Society and Economy at the Dawn of History, fl. 27-30, Routledge.
[10] Dina Katz (1993) Gilgamesh and Akka, fl. 11, Styx (Brill)
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