domingo, 31 de dezembro de 2023

Jesus na Escala Richter de Impacto Histórico: breves anotações sobre Flegon de Trales

"Cristo na Cruz", por Carl Heinrich Bloch (1870). Museu de 
História Natural, Copenhague, Dinamarca, via wikicommons
 

Por volta de 240 DC, o erudito, filósofo e teólogo Orígenes de Alexandria (185-254 DC), escreveu uma defesa do cristianismo em contraposição a um ataque do filósofo Celso, que, entre 160-180 DC, escrevera uma obra chamada "o verdadeiro discurso". Em sua obra, já discutida aqui, Celso critica sistemática e detalhadamente os cristãos, apresenta argumentos filosóficos e supostas inconsistências nas narrativas evangélicas, faz comparações com outros cultos e seitas existentes à época e alguma familiaridade com os vários grupos cristãos existentes e "fatos" da vida de Jesus não existentes em qualquer escrito cristão, derivados de tradições que circulavam entre os judeus no início do II século. 

Em sua defesa, Orígenes utiliza vários argumentos, e cita alguns autores não cristãos para corroborar, de alguma forma, aspectos positivos do cristianismo. A abordagem, tinha suas dificuldades, porém. Com Flavio Josefo, por exemplo, Orígenes utiliza o relato que menciona Tiago, irmão de Jesus, mas acaba reconhecendo que, seja o que fosse que Josefo tivesse escrito, ele não reconhecia que Jesus fosse o Cristo. 


Um autor, porém, que Orígenes cita algumas vezes é Flegon de Tralles.

E Flegon, no decimo terceiro ou décimo quarto livro, se não me engano, de suas crônicas, não somente atribui a Jesus o conhecimento de eventos futuros, mas também testifica que o resultado corresponde a suas previsões. (...) mas ele também, por estas mesmas admissões em relação a previsão, mesmo que contra sua vontade, expressa sua opinião de que as doutrinas ensinadas pelos pais não foram desprovidas de poder divino (Origenes, Contra Celso, 2:14);

E no que diz respeito ao eclipse no tempo de Tibério César, em cujo reinado Jesus parece ter sido crucificado, e aos grandes terremotos que então ocorreram, Flegon também, creio, escreveu no décimo terceiro ou décimo quarto livro de suas Crônicas (Origenes, Contra Celso, 2:33);

Ele imagina também que tanto o terremoto quanto a escuridão foram uma invenção; mas com relação a isso, nas páginas anteriores, fizemos nossa defesa, de acordo com nossa capacidade, apresentando o testemunho de Flegon, que relata que esses eventos ocorreram no momento em que nosso Salvador sofreu.(Origenes, Contra Celso, 2:59);


Professora Leslie Kelly, da Universidade Pública da América, apresenta alguns detalhes sobre Flegon de Trales.

Phlegon of Tralles was a freedman of Emperor Hadrian who, in addition to his history, wrote books on Sicily, the topography of Rome, Roman festivals, and marvels (tradução) Flegon de Tralles foi um liberto do imperador Adriano que, além de sua história, escreveu livros sobre a Sicília, a topografia de Roma, festivais romanos e maravilhas.[1]

Trazendo a citação em contexto, entre os autores geralmente citados como evidência externa da vida e ministério de Jesus de Nazaré, os principais testemunhos  são os de Flávio Josefo e Tácito. O parágrafo sobre Jesus na obra de Josefo, chamado Testemunho Flaviano, é considerado pela grande maioria dos estudiosos como tendo sido alterado a partir de um texto original menos laudatório ou hostil (como já vimos aqui no Adcummulus). Outra menção a Jesus no texto de Josefo, referente a seu irmão, Tiago, é menos polêmica. Quanto a Tácito, a discussão, em geral, não se centra na autenticidade, mas a fonte das informações que dispunha, como também já discutido aqui no adcummulus, junto com menções mais breves de historiadores romanos, como Suetônio e Plínio.  Se expandimos para menções externas posteriores, que podem conservar memórias antigas, temos as respostas polêmicas dos oponentes dos apologistas Justino e Tertuliano, do filósofo Celso, e dos rabinos no Talmude, autores como Luciano, Galeno e Mara Bar Serapion que reagem de formas diferentes a Jesus como mestre dos cristãos. Assim, de forma geral, as fontes não cristãs podem ser classificadas em quatro linhas de tradição:

  • Segundo as versões mais aceitas do texto de Flávio Josefo, Jesus foi um pretendente messiânico que atraia (ou aliciava) multidões com seus ensinos, realizava feitos controversos (paradoxa), e foi executado por Pôncio Pilatos, sob acusação dos líderes judeus. Após sua execução, seus seguidores relataram que ele havia ressuscitado e proclamavam que ele era o Cristo.
  • Na visão de magistrados romanos, como Cornélio Tácito, Gaio Suetônio e Plínio, o Jovem,  Jesus foi um agitador crucificado na Judéia por Pôncio Pilatos, tendo sido o fundador da seita dos cristãos, um grupo que seguia uma "superstição nova e depravada" (Suetônio), e "mortal", que "irrompeu novamente, não apenas na Judéia, terra onde se originou o mal, mas também na cidade Roma, onde todos os tipos de práticas horrendas e infames de todas as partes do mundo se concentram e são fervorosamente cultuadas" (Tácito), e se reuniam numa associação secreta e ilegal (segundo Plínio);
  • Na polêmica judaica em relação ao cristianismo, os oponentes de Justino (130-150 DC), Celso (170 DC), Tertuliano (200 DC) e alguns rabinos do Talmude acusam Jesus de ter sido um "mágico e enganador do povo" e seus paradoxa (feitos controversos)  foram devidos a utilização de poderes mágicos, tendo sido "pendurado" por ser um "praticante de feitiçaria que induziu Israel a pecar". A acusação, inclusive, já havia sido recordada nos evangelhos (ex. "Ele está possesso de Belzebu; e: É pelo príncipe dos demônios que expulsa os demônios", em Mc 3:22).
  • Autores como Luciano, Galeno e Mara Bar Serapion destacam o papel de Jesus como o "primeiro legislador" dos cristãos.  O "homem crucificado na Palestina", por dar origem ao culto (Luciano de Samosata), a "escola  (...) de Cristo", em que se ensinam "leis não demonstráveis" e mestres que "ordenavam aceitar tudo pela Fé" (Claúdio Galeno). O próprio Galeno, porém, admite mérito nos ensinos cristãos, pois incutia nas massas posturas positivas, semelhantes a dos "verdadeiros filósofos" (Galeno).  De qualquer forma, Jesus "continuou a viver nos ensinamentos que transmitiu" (na visão positiva de Mara Bar Serapion, destoante dos outros autores não cristãos).

Assim, a visão de Jesus e dos primeiros cristãos como pessoas à margem da sociedade é recorrente entre observadores externos do início do cristianismo. Se houvesse jornais semelhantes aos que existem hoje na Siria-Palestina do século I, Jesus e seus seguidores estariam na página policial ou nos tabloides populares. Os programas de TV em que apareceriam seriam do tipo popular/policial/sensacionalista. Como vimos também em nossa série dos cristãos ascendendo a alta sociedade romana, a chegada na elite social, política e intelectual do Império demorou, pelo menos, 150 anos. 

Grafite de Aleximeno, caricatura anti cristã da segunda 
metade do século II DC, "Alexamenos sebete Theon"
("Alexandre adora Deus"), Roma,via wikicommons
O conhecimento de Flegon sobre Jesus, tais como outros autores pagãos e judeus de seu tempo, pode decorrer tanto de uma exposição a pregação cristã e/ou evangelhos, bem como de fontes judaicas e romanas sobre Cristo e o cristianismo. Como observam os professores Gerd Theissen (Universidade de Heidelberg) e Annete Merz (Universidade de Utrecht), "(...) os testemunhos não cristãos sobre Jesus correm o  duplo perigo de ser supervalorizados ou subestimados. São supervalorizados quando se espera um acesso "neutro" ao "Jesus histórico", livre de "verniz" cristão. Tácito não oferece um relato que remonta aos Atos de Pilatos, tampouco Josefo, uma descrição que remonta aos protocolos do Sinédrio. Contudo, "(...) as fontes extracristãs são provavelmente uma reação a declarações cristãs. Mas não devemos diminuir seu valor enquanto fontes. Primeiro, elas remetem a afirmações cristãs que provavelmente são independentes de nossos evangelhos. São um testemunho autonômo. Segundo, documentam a postura ambivalente dos contemporâneos judeus e pagãos (...) Terceiro, elas mostram que os contemporâneos dos séculos I e II não tem motivos para questionar a existência de Jesus"[2]. 


Sendo assim, do que sabemos sobre Flegon ele reage as afirmações contidas nos relatos evangélicos, no contexto de seus próprios interesses, o de um autor cujo o interesse em Jesus e nos cristãos não é decorrente de uma disposição necessariamente polêmica (como Celso), ou incidental, para explicar acontecimentos mais amplos em que Jesus e seus seguidores eram figurantes (como Josefo, Tácito ou Suetônio). A obra de Flegon revela um autor com interesse no popular, fantástico, controverso, e no paradoxal. Como descrito pelo Professor Markus Bockmuehl (Oxford):

P. Aelius Phlegon (no relation to his namesake in Rom. 16:14) was an educated freedman in the imperial household of Hadrian (AD 117-138), a native greek speaker from Tralles in Caria, Asia Minor. Among his various literay activities is a Book of Marvels, composed in the sensationalist genre known to classicists as "paradoxography" - entertaining collections of weird and wonderful tales in the best tradition of tabloid journalism. By far the most substantial and best known of Phlegon's works was a chronology of the Olympic Games grom their begining in 776 BC to 229th Olympiad (AD 137-140), during which Hadrian died. Although this work survives only in fragments, it is clear that, in addition to a listing of the Olympic victors at each of the games, Phlegon discusses notable persons and events of the respective period, including various miracles and oracles.

(Tradução) P. Aelius Flegon (sem relação com seu homônimo em Romanos 16:14) foi um liberto educado na casa imperial de Adriano (117-138 DC), um falante nativo de grego de Tralles em Caria, Ásia Menor. Entre suas diversas atividades literárias está um Livro de Maravilhas, composto no gênero sensacionalista conhecido pelos classicistas como "paradoxografia" - divertidas coleções de contos estranhos e maravilhosos na melhor tradição do jornalismo tablóide. De longe, o trabalho mais substancial e mais conhecido de Flegon foi uma cronologia dos Jogos Olímpicos desde seu início em 776 AC até a 229ª Olimpíada (137-140 dC), durante a qual Adriano morreu. Embora esta obra sobreviva apenas em fragmentos, é claro que, além de uma lista dos vencedores olímpicos em cada um dos jogos, Flegon discute pessoas e eventos notáveis ​​do respectivo período, incluindo vários milagres e oráculos [3]

Em seu livros Flegon demonstra interesses diversos. Suas crônicas se estruturam em torno dos jogos olímpicos, evento central para identidade das populações gregas, desde tempos antigos. Os jogos da antiguidade eram realizados na cidade de Olímpia, a partir de 776 AC (data tradicional), a cada quatro anos. Os jogos eram sagrados em toda Grécia, com uma trégua olímpica (ékécheiria) sendo observada, de forma que a integridade e segurança dos participantes em seu caminho para Olímpia e a proteção do próprio santuário fosse garantida. Assim, uma crônica estruturada em torno dos conclaves olímpicos era uma forma bastante tradicional de recordar a história, e cobriria um período de cerca de 900 anos, do ano 776 AC até 140 DC. Da mesma forma, Flegon teria escrito uma descrição da Sicília (que pode ter sido análogo ao "descrições da Grécia" de Pausânias). Tanto "Crônicas" quantos "Descrição da Sícilia" não chegaram até o nosso tempo, embora partes das "Crônicas" sejam citadas por autores posteriores, como Eusébio, George Sincelo e Fócio de Constantinopla.

Por outro lado, Flegon foi também o autor de obras com uma veia mais "sensacionalista". Assim, ele percorre os censos romanos para encontrar cidadãos com mais de 100 anos de idade ("sobre pessoas velhas" ou "Peri Macrobion"). E, principalmente, seu "livro das maravilhas", que coleciona relatos de fatos estranhos, sensacionais e maravilhosos, no melhor estilo "Acredite se quiser", e sua obra é representativa de um gênero chamado paradoxografia. Flegon descreve a descoberta de ossadas gigantescas, nascimentos "monstruosos", hermafroditas e locais mal assombrados. Essas duas obras foram preservadas e existem até hoje.

Considerando esses interesses de Flegon, de que forma a vida de Jesus poderia ter lhe chamado a atenção? No que se refere as menção as previsões de Jesus e sua acurácia, Professora Kelly observa:

This passage from Phlegon (by way of Origen) indicates that some pagans among the well - connected, intellectual set understood Jesus of Nazareth to have been a prophet. Jesus' actions and message could be understood as being intentionally in line with prophets of the jewish scriptures or as a representative of a new type of eschatological prophet, with a focus on the in-breaking age of catastrophic (and then heavenly) change. (tradução) Esta passagem de Flegon (citada por Orígenes) indica que alguns pagãos no meio intelectual e bem relacionado entendiam que Jesus de Nazaré era um profeta. As ações e a mensagem de Jesus podem ser entendidas como estando intencionalmente alinhadas com os profetas das escrituras judaicas ou como representantes de um novo tipo de profeta escatológico, com foco na era iminente de mudanças catastróficas (e depois celestiais). [4]

 Conforme já descrevemos acima, além do interesse em Jesus como o fundador da seita dos cristãos (que, no tempo de Flegon, já eram conhecidos da elite romana desde, pelo menos, o tempo de Nero, 80 anos antes), este era apresentado como "poderoso em palavras e obras" pelos seus seguidores, "mestre e realizador de feitos controversos" (admitindo um texto "neutro" por Josefo), ou "mágico e aliciador do povo" (seguindo Celso, os oponentes de Justino e Tertuliano, o Talmude, e se for considerado um texto original hostil no texto de Josefo). Em todo caso, Jesus seria um personagem que, potencialmente, se adequa aos interesses de Flegon, como indica o Professor Bockmuehl:

 It is clear this work, composed in sixteen books, that Origen cites here. Assuming that after the extant account of the founding of the games, the remainder of the 916-year history is evenly divided over the sixteen books, it is indeed book 13 that may plausible be assumed to cover the lifetime of Jesus, and book 14 the apostolic period. Another popular patristic citation from book 13, known to Origen (Cels. 2.33, 59), Jerome, and others, concern a solar eclipse associated with the darkness at the crucifixion of Jesus. Quite what Phlegon says ou Known, whether about Jesus's predictions or Peter's, is impossible to tell from Origen's fleeting comment. It seems nevertheless fair to assume that it must have been a sufficiently impressive tale for Phlegon to have heardof it and to comment on it. - though it is impossible to be more precise than that. In interpreting Origen's obscure citation, then, it is significant that he does not attribute any explicit knowledge of Peter. (tradução) Fica claro esta obra, composta em dezesseis livros, que Orígenes cita aqui. Supondo que, após o relato existente sobre a fundação dos jogos, o restante da história de 916 anos esteja dividido igualmente entre os dezesseis livros, é de fato o livro 13 que pode ser plausivelmente assumido como cobrindo a vida de Jesus, e o livro 14, o período apostólico. Outra citação patrística popular do livro 13, conhecida por Orígenes (Cels. 2.33, 59), Jerônimo e outros, diz respeito a um eclipse solar associado às trevas na crucificação de Jesus. Exatamente o que Flegon diz ou sabe, seja sobre as predições de Jesus ou de Pedro, é impossível dizer a partir do comentário fugaz de Orígenes. No entanto, parece justo supor que deve ter sido uma história suficientemente impressionante para que Flegon a tenha ouvido e comentado. - embora seja impossível ser mais preciso do que isso. Ao interpretar a obscura citação de Orígenes, então, é significativo que ele não atribua nenhum conhecimento explícito de Pedro.[5]

Professor Martin Hengel (1926-2009), também pondera o interesse de Flegon por Jesus, já atestando a uma distribuição relativamente ampla dos evangelhos na primeira metade do século II. De fato, os fragmentos mais antigos do evangelho, na forma do papiro John Rylands (P52) e P90, contendo versos de João, são geralmente datados da mesma época em que Flegon escreveu (120 -150 DC). Os papiros foram preservados no clima quente e seco do Egito, distante do seu provável local de composição na Ásia Menor ou Síria, indicando uma distribuição ampla do texto do evangelho. Na mesma época, Justino, em seu dialogo com Trifo, tem seu oponente, um rabino helenista, afirmando que  (...) tomou conhecimento e leu com atenção os preceitos dos evangelhos cristãos, os considerou maravilhosos e grandes, de tal forma que suspeitava que ninguém seria capaz de cumpri-los"

 From this same time of Hadrian, we also have the earliest example of a Gentile author who was familiar with a gospel. Phlegon of Tralles, who was freed by Caesar, loved sensational stories. He not only describes an eclipse of the sun that took place at the time of Jesus' crucifixion but, according to Origen, produced "Pertaining to Christ's advange knowledge of Future Events", and, in a most remarkable way, mention in this context also the person of Peter (tradução) Da mesma época de Adriano, também temos o exemplo mais antigo de um autor gentio familiarizado com um evangelho. Flegon de Trales, liberto do imperador, adorava histórias sensacionais. Ele não apenas descreve um eclipse do sol que ocorreu no momento da crucificação de Jesus, mas, de acordo com Orígenes, escreve "referente ao conhecimento presciente de Cristo sobre eventos futuros", e, de uma forma mais notável, menciona neste contexto também a pessoa de Pedro [6]

Além da referência a capacidade profética de Jesus, Origenes afirma que Flegon também deu testemunho em relação as trevas e o terremoto durante a Paixão, descritas nos evangelhos. Desde cedo, porém, um contemporâneo de Orígenes, Julio Africano, que já mencionamos aqui no adcummulus, cita o relato de Flegon em conjunto com Talo, que é geralmente associado a um samaritano, outro liberto imperial, mencionado por Josefo, e que teria escrito em meados do século I DC, por volta do ano 50 DC. A Crônica de Talo, segundo Eusébio de Cesareia, reconta a história do mundo grego desde a Guerra de Tróia até 167ª ou 207ª Olímpiada (112-109 AC ou 49-52 DC, uma vez que os manuscritos são problemáticos nesse ponto, mas a segunda data é preferida pela maioria dos estudiosos)[7]. O fragmento de Júlio Africano que menciona Talo e Flegon é preservado por George Sincelo (que escreveu no século IX DC) 

Esta escuridão Talo, no terceiro livro de sua História, chama, como me parece sem razão, um eclipse do sol. Pois os hebreus celebram a páscoa no 14º dia de acordo com a lua, e a paixão de nosso Salvador termina no dia anterior à páscoa; mas um eclipse do sol ocorre apenas quando a lua fica sob o sol. E isso não pode acontecer em nenhum outro momento, a não ser no intervalo entre o primeiro dia da lua nova e o último da lua antiga, ou seja, na sua junção: como então deveria acontecer um eclipse quando a lua está quase diametralmente oposta? o sol? Deixe essa opinião passar, entretanto; deixe-o levar consigo a maioria; e que este presságio do mundo seja considerado um eclipse do sol, como outros, um presságio apenas para os olhos. Flegon registra que, no tempo de Tibério César, na lua cheia, houve um eclipse total do Sol da sexta à nona hora - manifestamente aquela da qual falamos. Mas o que um eclipse tem em comum com um terremoto, com as rochas dilaceradas e com a ressurreição dos mortos, e com uma perturbação tão grande em todo o universo? Certamente nenhum evento como este é registrado por um longo período. Mas foi uma escuridão induzida por Deus, porque aconteceu então que o Senhor sofreu.

O (possível) testemunho de Talo sobre os eventos da paixão de Cristo é um assunto que merece um post por si só, em nossa opinião (podemos incluir entre as resoluções para 2024!!!). Em geral, há uma polêmica significativa em relação ao que Talo (e Flegon) teriam escrito em relação a crucificação de Jesus, as trevas e o terremoto, com vários historiadores do cristianismo primitivo expressando opiniões divergentes. Mas como a discussão se dá principalmente em relação a relevância do que Talo teria escrito (até pela sua maior proximidade, em quase um século, com a crucificação), podemos manter nosso foco em Flegon. Sobre isso, Professora Loveday Alexander, da Universidade de Sheffield:

It is not surprising, then, to find that the first part of the gospel story known to pagans in the second century is the fact (and to differing degrees the manner) of Jesus' death. Possibly the earliest references to the gospel narratives occur in two early chronographers, Thallos (?mid to the late first century CE) and Phlegon of Tralles (second century CE), who report a solar eclipse with the in the reign of Tiberius. Both are cited by later Christian writers, who connect the eclipse with the gospel report of 'darkness' at the time of the crucifixion (a connection denied by Julius Africanus); thought it is unclear whether either Thallos or Phlegon mentioned the crucifixion himself (traduçãoNão é surpreendente, então, descobrir que a primeira parte da história do evangelho conhecida pelos pagãos no segundo século é o fato (e em graus diferentes a maneira) da morte de Jesus. Possivelmente, as primeiras referências às narrativas do evangelho ocorrem em dois primeiros cronógrafos, Talo (de meados ao final do século I dC) e Flegon de Trales (século II dC), que relatam um eclipse solar no reinado de Tibério. Ambos são citados por escritores cristãos posteriores, que conectam o eclipse com o relato do evangelho sobre as “trevas” no momento da crucificação (uma conexão negada por Júlio Africano); pensei que não estava claro se Talo ou Flegon mencionaram a crucificação[8];

De qualquer forma, a indícios de que Flegon tenha dito "algo" sobre um eclipse contemporâneo a crucificação, até pelas várias vezes em que é mencionado por escritores cristãos posteriores. Além disso, a menção ao eclipse parece surgir no contexto da outra observação sobre os poderes premonitórios de Jesus, também no mesmo 13° ou 14° livro. 

Os astrônomos Pang e Yau [9], observam que há registro de um eclipse solar em 24 de novembro do ano 29 DC, e de um eclipse lunar em 3 de abril de 33 DC. No entanto, apontam a inconclusividade dessas associações uma vez que "(...) Humphreys e Waddington (Nature 306, 743) sugeriram o escurecimento meteorológico e o eclipse lunar de 3 de abril de 33 DC. Schaefer questionou a visibilidade do eclipse em Jerusalém (31.46N, 35.14E). Os seis cálculos que ele citou deram respostas diferentes devido às taxas imprecisas da aceleração lunar secular e ao prolongamento do dia usado (...)", indicam que seus próprios cálculos, baseados em registros chineses, indicavam que o eclipse de abril de 33 DC foi visto em Jerusalém com a Lua em 1/3 na umbra (encoberta) e que "(...)o escurecimento meteorológico remanescente com massa de ar de absorção longa também poderia ter ajudado a avermelhar a lua (...)"[9].  o Professor Fred Espenak lista as várias vezes em que eclipses e outros eventos naturais foram associados pelos povos antigos a eventos de significância [10]. Por exemplo, as legiões na Panônia (Hungria) tinham iniciado uma rebelião ao serem informados da morte do Imperador Augusto (ocorrida em 19 de agosto do ano 14 DC, mas omitida por alguns dias pela sua esposa, Lívia, até que Tibério retornasse da Ilíria), mas teriam sido contidas ao presenciarem um eclipse lunar (que aconteceu em 27 de setembro do mesmo ano), conforme Cassio Dio e Tácito [10].

Assim, entendemos como o cenário mais provável uma citação ao eclipse, talvez contestando diretamente o relato evangélico. Mas desenvolveremos esse ponto em um post futuro.

Referências Bibliográficas

[1] Leslie Kelly, 2018 Prophets, Prophecy and Oracles in the Roman Empire: Jewish, Chrstian, and Greco-Roman cultures, fl. 29)
[2] Gerd Theissen e Annete Merz (1996) Jesus Histórico, Um Manual, fl. 83
[3] Markus Bockmuehl, 2012, Simon Peter in Scripture and Memory, fl. 107
[4] Leslie Kelly, 2018 Prophets, Prophecy and Oracles in the Roman Empire: Jewish, Chrstian, and Greco-Roman cultures, fl. 29)
[5] Markus Bockmuehl, 2012, Simon Peter in Scripture and Memory, fl. 107 
[6] Martin Hengel (2006) Saint Peter: The Underestimated Apostle, fl. 33
[7] Robert Van Voorst (2000) Jesus Outside the Gospels, fl. 21
[8] Loveday Alexander (2005) "Four Among the Pagans", in Markus Bockmuehl e Donald Hagner, The Written Gospel, fl. 225; 
[9] K D Pang e Yau K.K (2000) Eclipses and the Olympics, In American Astronomical Society, 197th AAS Meeting, id.23.01; Bulletin of the American Astronomical Society, Vol. 32, p.1439
[10] Fred Espenak  NASA - Lunar Eclipses of History Eclipse Predictions by Fred Espenak, NASA's GSFC. Cassio Dio, História Romana, Livro 57, 4 Cassius Dio — Book 57 (uchicago.edu) e Tacito, Anais, Livro 1, 28 LacusCurtius • Tacitus, Annals — Book I Chapters 16‑30 (uchicago.edu)

2 comentários:

Eduardo Medeiros disse...

Olá, seus textos são sempre muito bons, recheados de referências e bem escritos sobre as temáticas bíblicas e teológicas. Parabéns, já tirei muitas informações daqui.

Nehemias disse...

Eduardo,
Obrigado por acompanhar nosso trabalho.

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