domingo, 31 de dezembro de 2023

Jesus na Escala Richter de Impacto Histórico: breves anotações sobre Flegon de Trales

"Cristo na Cruz", por Carl Heinrich Bloch (1870). Museu de 
História Natural, Copenhague, Dinamarca, via wikicommons
 

Por volta de 240 DC, o erudito, filósofo e teólogo Orígenes de Alexandria (185-254 DC), escreveu uma defesa do cristianismo em contraposição a um ataque do filósofo Celso, que, entre 160-180 DC, escrevera uma obra chamada "o verdadeiro discurso". Em sua obra, já discutida aqui, Celso critica sistemática e detalhadamente os cristãos, apresenta argumentos filosóficos e supostas inconsistências nas narrativas evangélicas, faz comparações com outros cultos e seitas existentes à época e alguma familiaridade com os vários grupos cristãos existentes e "fatos" da vida de Jesus não existentes em qualquer escrito cristão, derivados de tradições que circulavam entre os judeus no início do II século. 

Em sua defesa, Orígenes utiliza vários argumentos, e cita alguns autores não cristãos para corroborar, de alguma forma, aspectos positivos do cristianismo. A abordagem, tinha suas dificuldades, porém. Com Flavio Josefo, por exemplo, Orígenes utiliza o relato que menciona Tiago, irmão de Jesus, mas acaba reconhecendo que, seja o que fosse que Josefo tivesse escrito, ele não reconhecia que Jesus fosse o Cristo. 


Um autor, porém, que Orígenes cita algumas vezes é Flegon de Tralles.

E Flegon, no decimo terceiro ou décimo quarto livro, se não me engano, de suas crônicas, não somente atribui a Jesus o conhecimento de eventos futuros, mas também testifica que o resultado corresponde a suas previsões. (...) mas ele também, por estas mesmas admissões em relação a previsão, mesmo que contra sua vontade, expressa sua opinião de que as doutrinas ensinadas pelos pais não foram desprovidas de poder divino (Origenes, Contra Celso, 2:14);

E no que diz respeito ao eclipse no tempo de Tibério César, em cujo reinado Jesus parece ter sido crucificado, e aos grandes terremotos que então ocorreram, Flegon também, creio, escreveu no décimo terceiro ou décimo quarto livro de suas Crônicas (Origenes, Contra Celso, 2:33);

Ele imagina também que tanto o terremoto quanto a escuridão foram uma invenção; mas com relação a isso, nas páginas anteriores, fizemos nossa defesa, de acordo com nossa capacidade, apresentando o testemunho de Flegon, que relata que esses eventos ocorreram no momento em que nosso Salvador sofreu.(Origenes, Contra Celso, 2:59);


Professora Leslie Kelly, da Universidade Pública da América, apresenta alguns detalhes sobre Flegon de Trales.

Phlegon of Tralles was a freedman of Emperor Hadrian who, in addition to his history, wrote books on Sicily, the topography of Rome, Roman festivals, and marvels (tradução) Flegon de Tralles foi um liberto do imperador Adriano que, além de sua história, escreveu livros sobre a Sicília, a topografia de Roma, festivais romanos e maravilhas.[1]

Trazendo a citação em contexto, entre os autores geralmente citados como evidência externa da vida e ministério de Jesus de Nazaré, os principais testemunhos  são os de Flávio Josefo e Tácito. O parágrafo sobre Jesus na obra de Josefo, chamado Testemunho Flaviano, é considerado pela grande maioria dos estudiosos como tendo sido alterado a partir de um texto original menos laudatório ou hostil (como já vimos aqui no Adcummulus). Outra menção a Jesus no texto de Josefo, referente a seu irmão, Tiago, é menos polêmica. Quanto a Tácito, a discussão, em geral, não se centra na autenticidade, mas a fonte das informações que dispunha, como também já discutido aqui no adcummulus, junto com menções mais breves de historiadores romanos, como Suetônio e Plínio.  Se expandimos para menções externas posteriores, que podem conservar memórias antigas, temos as respostas polêmicas dos oponentes dos apologistas Justino e Tertuliano, do filósofo Celso, e dos rabinos no Talmude, autores como Luciano, Galeno e Mara Bar Serapion que reagem de formas diferentes a Jesus como mestre dos cristãos. Assim, de forma geral, as fontes não cristãs podem ser classificadas em quatro linhas de tradição:

  • Segundo as versões mais aceitas do texto de Flávio Josefo, Jesus foi um pretendente messiânico que atraia (ou aliciava) multidões com seus ensinos, realizava feitos controversos (paradoxa), e foi executado por Pôncio Pilatos, sob acusação dos líderes judeus. Após sua execução, seus seguidores relataram que ele havia ressuscitado e proclamavam que ele era o Cristo.
  • Na visão de magistrados romanos, como Cornélio Tácito, Gaio Suetônio e Plínio, o Jovem,  Jesus foi um agitador crucificado na Judéia por Pôncio Pilatos, tendo sido o fundador da seita dos cristãos, um grupo que seguia uma "superstição nova e depravada" (Suetônio), e "mortal", que "irrompeu novamente, não apenas na Judéia, terra onde se originou o mal, mas também na cidade Roma, onde todos os tipos de práticas horrendas e infames de todas as partes do mundo se concentram e são fervorosamente cultuadas" (Tácito), e se reuniam numa associação secreta e ilegal (segundo Plínio);
  • Na polêmica judaica em relação ao cristianismo, os oponentes de Justino (130-150 DC), Celso (170 DC), Tertuliano (200 DC) e alguns rabinos do Talmude acusam Jesus de ter sido um "mágico e enganador do povo" e seus paradoxa (feitos controversos)  foram devidos a utilização de poderes mágicos, tendo sido "pendurado" por ser um "praticante de feitiçaria que induziu Israel a pecar". A acusação, inclusive, já havia sido recordada nos evangelhos (ex. "Ele está possesso de Belzebu; e: É pelo príncipe dos demônios que expulsa os demônios", em Mc 3:22).
  • Autores como Luciano, Galeno e Mara Bar Serapion destacam o papel de Jesus como o "primeiro legislador" dos cristãos.  O "homem crucificado na Palestina", por dar origem ao culto (Luciano de Samosata), a "escola  (...) de Cristo", em que se ensinam "leis não demonstráveis" e mestres que "ordenavam aceitar tudo pela Fé" (Claúdio Galeno). O próprio Galeno, porém, admite mérito nos ensinos cristãos, pois incutia nas massas posturas positivas, semelhantes a dos "verdadeiros filósofos" (Galeno).  De qualquer forma, Jesus "continuou a viver nos ensinamentos que transmitiu" (na visão positiva de Mara Bar Serapion, destoante dos outros autores não cristãos).

Assim, a visão de Jesus e dos primeiros cristãos como pessoas à margem da sociedade é recorrente entre observadores externos do início do cristianismo. Se houvesse jornais semelhantes aos que existem hoje na Siria-Palestina do século I, Jesus e seus seguidores estariam na página policial ou nos tabloides populares. Os programas de TV em que apareceriam seriam do tipo popular/policial/sensacionalista. Como vimos também em nossa série dos cristãos ascendendo a alta sociedade romana, a chegada na elite social, política e intelectual do Império demorou, pelo menos, 150 anos. 

Grafite de Aleximeno, caricatura anti cristã da segunda 
metade do século II DC, "Alexamenos sebete Theon"
("Alexandre adora Deus"), Roma,via wikicommons
O conhecimento de Flegon sobre Jesus, tais como outros autores pagãos e judeus de seu tempo, pode decorrer tanto de uma exposição a pregação cristã e/ou evangelhos, bem como de fontes judaicas e romanas sobre Cristo e o cristianismo. Como observam os professores Gerd Theissen (Universidade de Heidelberg) e Annete Merz (Universidade de Utrecht), "(...) os testemunhos não cristãos sobre Jesus correm o  duplo perigo de ser supervalorizados ou subestimados. São supervalorizados quando se espera um acesso "neutro" ao "Jesus histórico", livre de "verniz" cristão. Tácito não oferece um relato que remonta aos Atos de Pilatos, tampouco Josefo, uma descrição que remonta aos protocolos do Sinédrio. Contudo, "(...) as fontes extracristãs são provavelmente uma reação a declarações cristãs. Mas não devemos diminuir seu valor enquanto fontes. Primeiro, elas remetem a afirmações cristãs que provavelmente são independentes de nossos evangelhos. São um testemunho autonômo. Segundo, documentam a postura ambivalente dos contemporâneos judeus e pagãos (...) Terceiro, elas mostram que os contemporâneos dos séculos I e II não tem motivos para questionar a existência de Jesus"[2]. 


Sendo assim, do que sabemos sobre Flegon ele reage as afirmações contidas nos relatos evangélicos, no contexto de seus próprios interesses, o de um autor cujo o interesse em Jesus e nos cristãos não é decorrente de uma disposição necessariamente polêmica (como Celso), ou incidental, para explicar acontecimentos mais amplos em que Jesus e seus seguidores eram figurantes (como Josefo, Tácito ou Suetônio). A obra de Flegon revela um autor com interesse no popular, fantástico, controverso, e no paradoxal. Como descrito pelo Professor Markus Bockmuehl (Oxford):

P. Aelius Phlegon (no relation to his namesake in Rom. 16:14) was an educated freedman in the imperial household of Hadrian (AD 117-138), a native greek speaker from Tralles in Caria, Asia Minor. Among his various literay activities is a Book of Marvels, composed in the sensationalist genre known to classicists as "paradoxography" - entertaining collections of weird and wonderful tales in the best tradition of tabloid journalism. By far the most substantial and best known of Phlegon's works was a chronology of the Olympic Games grom their begining in 776 BC to 229th Olympiad (AD 137-140), during which Hadrian died. Although this work survives only in fragments, it is clear that, in addition to a listing of the Olympic victors at each of the games, Phlegon discusses notable persons and events of the respective period, including various miracles and oracles.

(Tradução) P. Aelius Flegon (sem relação com seu homônimo em Romanos 16:14) foi um liberto educado na casa imperial de Adriano (117-138 DC), um falante nativo de grego de Tralles em Caria, Ásia Menor. Entre suas diversas atividades literárias está um Livro de Maravilhas, composto no gênero sensacionalista conhecido pelos classicistas como "paradoxografia" - divertidas coleções de contos estranhos e maravilhosos na melhor tradição do jornalismo tablóide. De longe, o trabalho mais substancial e mais conhecido de Flegon foi uma cronologia dos Jogos Olímpicos desde seu início em 776 AC até a 229ª Olimpíada (137-140 dC), durante a qual Adriano morreu. Embora esta obra sobreviva apenas em fragmentos, é claro que, além de uma lista dos vencedores olímpicos em cada um dos jogos, Flegon discute pessoas e eventos notáveis ​​do respectivo período, incluindo vários milagres e oráculos [3]

Em seu livros Flegon demonstra interesses diversos. Suas crônicas se estruturam em torno dos jogos olímpicos, evento central para identidade das populações gregas, desde tempos antigos. Os jogos da antiguidade eram realizados na cidade de Olímpia, a partir de 776 AC (data tradicional), a cada quatro anos. Os jogos eram sagrados em toda Grécia, com uma trégua olímpica (ékécheiria) sendo observada, de forma que a integridade e segurança dos participantes em seu caminho para Olímpia e a proteção do próprio santuário fosse garantida. Assim, uma crônica estruturada em torno dos conclaves olímpicos era uma forma bastante tradicional de recordar a história, e cobriria um período de cerca de 900 anos, do ano 776 AC até 140 DC. Da mesma forma, Flegon teria escrito uma descrição da Sicília (que pode ter sido análogo ao "descrições da Grécia" de Pausânias). Tanto "Crônicas" quantos "Descrição da Sícilia" não chegaram até o nosso tempo, embora partes das "Crônicas" sejam citadas por autores posteriores, como Eusébio, George Sincelo e Fócio de Constantinopla.

Por outro lado, Flegon foi também o autor de obras com uma veia mais "sensacionalista". Assim, ele percorre os censos romanos para encontrar cidadãos com mais de 100 anos de idade ("sobre pessoas velhas" ou "Peri Macrobion"). E, principalmente, seu "livro das maravilhas", que coleciona relatos de fatos estranhos, sensacionais e maravilhosos, no melhor estilo "Acredite se quiser", e sua obra é representativa de um gênero chamado paradoxografia. Flegon descreve a descoberta de ossadas gigantescas, nascimentos "monstruosos", hermafroditas e locais mal assombrados. Essas duas obras foram preservadas e existem até hoje.

Considerando esses interesses de Flegon, de que forma a vida de Jesus poderia ter lhe chamado a atenção? No que se refere as menção as previsões de Jesus e sua acurácia, Professora Kelly observa:

This passage from Phlegon (by way of Origen) indicates that some pagans among the well - connected, intellectual set understood Jesus of Nazareth to have been a prophet. Jesus' actions and message could be understood as being intentionally in line with prophets of the jewish scriptures or as a representative of a new type of eschatological prophet, with a focus on the in-breaking age of catastrophic (and then heavenly) change. (tradução) Esta passagem de Flegon (citada por Orígenes) indica que alguns pagãos no meio intelectual e bem relacionado entendiam que Jesus de Nazaré era um profeta. As ações e a mensagem de Jesus podem ser entendidas como estando intencionalmente alinhadas com os profetas das escrituras judaicas ou como representantes de um novo tipo de profeta escatológico, com foco na era iminente de mudanças catastróficas (e depois celestiais). [4]

 Conforme já descrevemos acima, além do interesse em Jesus como o fundador da seita dos cristãos (que, no tempo de Flegon, já eram conhecidos da elite romana desde, pelo menos, o tempo de Nero, 80 anos antes), este era apresentado como "poderoso em palavras e obras" pelos seus seguidores, "mestre e realizador de feitos controversos" (admitindo um texto "neutro" por Josefo), ou "mágico e aliciador do povo" (seguindo Celso, os oponentes de Justino e Tertuliano, o Talmude, e se for considerado um texto original hostil no texto de Josefo). Em todo caso, Jesus seria um personagem que, potencialmente, se adequa aos interesses de Flegon, como indica o Professor Bockmuehl:

 It is clear this work, composed in sixteen books, that Origen cites here. Assuming that after the extant account of the founding of the games, the remainder of the 916-year history is evenly divided over the sixteen books, it is indeed book 13 that may plausible be assumed to cover the lifetime of Jesus, and book 14 the apostolic period. Another popular patristic citation from book 13, known to Origen (Cels. 2.33, 59), Jerome, and others, concern a solar eclipse associated with the darkness at the crucifixion of Jesus. Quite what Phlegon says ou Known, whether about Jesus's predictions or Peter's, is impossible to tell from Origen's fleeting comment. It seems nevertheless fair to assume that it must have been a sufficiently impressive tale for Phlegon to have heardof it and to comment on it. - though it is impossible to be more precise than that. In interpreting Origen's obscure citation, then, it is significant that he does not attribute any explicit knowledge of Peter. (tradução) Fica claro esta obra, composta em dezesseis livros, que Orígenes cita aqui. Supondo que, após o relato existente sobre a fundação dos jogos, o restante da história de 916 anos esteja dividido igualmente entre os dezesseis livros, é de fato o livro 13 que pode ser plausivelmente assumido como cobrindo a vida de Jesus, e o livro 14, o período apostólico. Outra citação patrística popular do livro 13, conhecida por Orígenes (Cels. 2.33, 59), Jerônimo e outros, diz respeito a um eclipse solar associado às trevas na crucificação de Jesus. Exatamente o que Flegon diz ou sabe, seja sobre as predições de Jesus ou de Pedro, é impossível dizer a partir do comentário fugaz de Orígenes. No entanto, parece justo supor que deve ter sido uma história suficientemente impressionante para que Flegon a tenha ouvido e comentado. - embora seja impossível ser mais preciso do que isso. Ao interpretar a obscura citação de Orígenes, então, é significativo que ele não atribua nenhum conhecimento explícito de Pedro.[5]

Professor Martin Hengel (1926-2009), também pondera o interesse de Flegon por Jesus, já atestando a uma distribuição relativamente ampla dos evangelhos na primeira metade do século II. De fato, os fragmentos mais antigos do evangelho, na forma do papiro John Rylands (P52) e P90, contendo versos de João, são geralmente datados da mesma época em que Flegon escreveu (120 -150 DC). Os papiros foram preservados no clima quente e seco do Egito, distante do seu provável local de composição na Ásia Menor ou Síria, indicando uma distribuição ampla do texto do evangelho. Na mesma época, Justino, em seu dialogo com Trifo, tem seu oponente, um rabino helenista, afirmando que  (...) tomou conhecimento e leu com atenção os preceitos dos evangelhos cristãos, os considerou maravilhosos e grandes, de tal forma que suspeitava que ninguém seria capaz de cumpri-los"

 From this same time of Hadrian, we also have the earliest example of a Gentile author who was familiar with a gospel. Phlegon of Tralles, who was freed by Caesar, loved sensational stories. He not only describes an eclipse of the sun that took place at the time of Jesus' crucifixion but, according to Origen, produced "Pertaining to Christ's advange knowledge of Future Events", and, in a most remarkable way, mention in this context also the person of Peter (tradução) Da mesma época de Adriano, também temos o exemplo mais antigo de um autor gentio familiarizado com um evangelho. Flegon de Trales, liberto do imperador, adorava histórias sensacionais. Ele não apenas descreve um eclipse do sol que ocorreu no momento da crucificação de Jesus, mas, de acordo com Orígenes, escreve "referente ao conhecimento presciente de Cristo sobre eventos futuros", e, de uma forma mais notável, menciona neste contexto também a pessoa de Pedro [6]

Além da referência a capacidade profética de Jesus, Origenes afirma que Flegon também deu testemunho em relação as trevas e o terremoto durante a Paixão, descritas nos evangelhos. Desde cedo, porém, um contemporâneo de Orígenes, Julio Africano, que já mencionamos aqui no adcummulus, cita o relato de Flegon em conjunto com Talo, que é geralmente associado a um samaritano, outro liberto imperial, mencionado por Josefo, e que teria escrito em meados do século I DC, por volta do ano 50 DC. A Crônica de Talo, segundo Eusébio de Cesareia, reconta a história do mundo grego desde a Guerra de Tróia até 167ª ou 207ª Olímpiada (112-109 AC ou 49-52 DC, uma vez que os manuscritos são problemáticos nesse ponto, mas a segunda data é preferida pela maioria dos estudiosos)[7]. O fragmento de Júlio Africano que menciona Talo e Flegon é preservado por George Sincelo (que escreveu no século IX DC) 

Esta escuridão Talo, no terceiro livro de sua História, chama, como me parece sem razão, um eclipse do sol. Pois os hebreus celebram a páscoa no 14º dia de acordo com a lua, e a paixão de nosso Salvador termina no dia anterior à páscoa; mas um eclipse do sol ocorre apenas quando a lua fica sob o sol. E isso não pode acontecer em nenhum outro momento, a não ser no intervalo entre o primeiro dia da lua nova e o último da lua antiga, ou seja, na sua junção: como então deveria acontecer um eclipse quando a lua está quase diametralmente oposta? o sol? Deixe essa opinião passar, entretanto; deixe-o levar consigo a maioria; e que este presságio do mundo seja considerado um eclipse do sol, como outros, um presságio apenas para os olhos. Flegon registra que, no tempo de Tibério César, na lua cheia, houve um eclipse total do Sol da sexta à nona hora - manifestamente aquela da qual falamos. Mas o que um eclipse tem em comum com um terremoto, com as rochas dilaceradas e com a ressurreição dos mortos, e com uma perturbação tão grande em todo o universo? Certamente nenhum evento como este é registrado por um longo período. Mas foi uma escuridão induzida por Deus, porque aconteceu então que o Senhor sofreu.

O (possível) testemunho de Talo sobre os eventos da paixão de Cristo é um assunto que merece um post por si só, em nossa opinião (podemos incluir entre as resoluções para 2024!!!). Em geral, há uma polêmica significativa em relação ao que Talo (e Flegon) teriam escrito em relação a crucificação de Jesus, as trevas e o terremoto, com vários historiadores do cristianismo primitivo expressando opiniões divergentes. Mas como a discussão se dá principalmente em relação a relevância do que Talo teria escrito (até pela sua maior proximidade, em quase um século, com a crucificação), podemos manter nosso foco em Flegon. Sobre isso, Professora Loveday Alexander, da Universidade de Sheffield:

It is not surprising, then, to find that the first part of the gospel story known to pagans in the second century is the fact (and to differing degrees the manner) of Jesus' death. Possibly the earliest references to the gospel narratives occur in two early chronographers, Thallos (?mid to the late first century CE) and Phlegon of Tralles (second century CE), who report a solar eclipse with the in the reign of Tiberius. Both are cited by later Christian writers, who connect the eclipse with the gospel report of 'darkness' at the time of the crucifixion (a connection denied by Julius Africanus); thought it is unclear whether either Thallos or Phlegon mentioned the crucifixion himself (traduçãoNão é surpreendente, então, descobrir que a primeira parte da história do evangelho conhecida pelos pagãos no segundo século é o fato (e em graus diferentes a maneira) da morte de Jesus. Possivelmente, as primeiras referências às narrativas do evangelho ocorrem em dois primeiros cronógrafos, Talo (de meados ao final do século I dC) e Flegon de Trales (século II dC), que relatam um eclipse solar no reinado de Tibério. Ambos são citados por escritores cristãos posteriores, que conectam o eclipse com o relato do evangelho sobre as “trevas” no momento da crucificação (uma conexão negada por Júlio Africano); pensei que não estava claro se Talo ou Flegon mencionaram a crucificação[8];

De qualquer forma, a indícios de que Flegon tenha dito "algo" sobre um eclipse contemporâneo a crucificação, até pelas várias vezes em que é mencionado por escritores cristãos posteriores. Além disso, a menção ao eclipse parece surgir no contexto da outra observação sobre os poderes premonitórios de Jesus, também no mesmo 13° ou 14° livro. 

Os astrônomos Pang e Yau [9], observam que há registro de um eclipse solar em 24 de novembro do ano 29 DC, e de um eclipse lunar em 3 de abril de 33 DC. No entanto, apontam a inconclusividade dessas associações uma vez que "(...) Humphreys e Waddington (Nature 306, 743) sugeriram o escurecimento meteorológico e o eclipse lunar de 3 de abril de 33 DC. Schaefer questionou a visibilidade do eclipse em Jerusalém (31.46N, 35.14E). Os seis cálculos que ele citou deram respostas diferentes devido às taxas imprecisas da aceleração lunar secular e ao prolongamento do dia usado (...)", indicam que seus próprios cálculos, baseados em registros chineses, indicavam que o eclipse de abril de 33 DC foi visto em Jerusalém com a Lua em 1/3 na umbra (encoberta) e que "(...)o escurecimento meteorológico remanescente com massa de ar de absorção longa também poderia ter ajudado a avermelhar a lua (...)"[9].  o Professor Fred Espenak lista as várias vezes em que eclipses e outros eventos naturais foram associados pelos povos antigos a eventos de significância [10]. Por exemplo, as legiões na Panônia (Hungria) tinham iniciado uma rebelião ao serem informados da morte do Imperador Augusto (ocorrida em 19 de agosto do ano 14 DC, mas omitida por alguns dias pela sua esposa, Lívia, até que Tibério retornasse da Ilíria), mas teriam sido contidas ao presenciarem um eclipse lunar (que aconteceu em 27 de setembro do mesmo ano), conforme Cassio Dio e Tácito [10].

Assim, entendemos como o cenário mais provável uma citação ao eclipse, talvez contestando diretamente o relato evangélico. Mas desenvolveremos esse ponto em um post futuro.

Referências Bibliográficas

[1] Leslie Kelly, 2018 Prophets, Prophecy and Oracles in the Roman Empire: Jewish, Chrstian, and Greco-Roman cultures, fl. 29)
[2] Gerd Theissen e Annete Merz (1996) Jesus Histórico, Um Manual, fl. 83
[3] Markus Bockmuehl, 2012, Simon Peter in Scripture and Memory, fl. 107
[4] Leslie Kelly, 2018 Prophets, Prophecy and Oracles in the Roman Empire: Jewish, Chrstian, and Greco-Roman cultures, fl. 29)
[5] Markus Bockmuehl, 2012, Simon Peter in Scripture and Memory, fl. 107 
[6] Martin Hengel (2006) Saint Peter: The Underestimated Apostle, fl. 33
[7] Robert Van Voorst (2000) Jesus Outside the Gospels, fl. 21
[8] Loveday Alexander (2005) "Four Among the Pagans", in Markus Bockmuehl e Donald Hagner, The Written Gospel, fl. 225; 
[9] K D Pang e Yau K.K (2000) Eclipses and the Olympics, In American Astronomical Society, 197th AAS Meeting, id.23.01; Bulletin of the American Astronomical Society, Vol. 32, p.1439
[10] Fred Espenak  NASA - Lunar Eclipses of History Eclipse Predictions by Fred Espenak, NASA's GSFC. Cassio Dio, História Romana, Livro 57, 4 Cassius Dio — Book 57 (uchicago.edu) e Tacito, Anais, Livro 1, 28 LacusCurtius • Tacitus, Annals — Book I Chapters 16‑30 (uchicago.edu)

sábado, 22 de julho de 2023

O que aconteceu com os doze apóstolos de Jesus - Parte 4 - A Igreja do Santo Sepulcro, o Gólgota e o sepultamento de Jesus

 

Mosaico Grego na Pedro da Unção Igreja do
Santo Sepulcro, Jerusalém, via wikicommons

O cristianismo tem como crença    fundamental   que  Jesus de Nazaré é o  messias, morreu pelos  pecados do mundo e ressuscitou dos mortos.   Conforme afirma o Apóstolo Paulo "(...) Pois o   que primeiramente lhes transmiti foi o que   recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras, 5e apareceu a Pedro e depois aos Doze"(I Coríntios 15:3-4). Paulo faz uma declaração teológica, mas afirma se basear em uma tradição recebida, anterior a sua atuação como apóstolo, já que ele somente seria assim designado após uma aparição tardia do Jesus ressurreto, "como um nascido fora do tempo".

Uma conclusão histórica raramente contestada em relação a vida de Jesus de Nazaré, é, nas palavras do Professor John Dominic Crossan"(...) que ele foi crucificado, é tão certo quanto qualquer coisa histórica pode ser, já que tanto Josefo quanto Tácito (...) concordam com os relatos cristãos sobre pelo menos esse fato básico (...)"[1].  Os evangelhos,  Flávio Josefo, Cornélio Tácito, bem como outras fontes judaicas e greco-romanas também concordam que Jesus foi executado sob o Prefeito Pôncio Pilatos, em Jerusalém. Contudo, uma vez crucificado, onde foi sepultado? E tendo sido sepultado, como se originaram os relatos de sua ressureição? Qual foi a memória do seu local de suplício e de enterro, considerando os quase três séculos que separam a crucificação e a construção do primeiro grande monumento sobre o local em que teria sido sepultado, a Basílica do Santo Sepulcro. E porque a tradição que liga o sepultamento de Jesus a Igreja do Santo Sepulcro é tão mais favorecida entre os estudiosos em relação a outros "candidatos" mais recentes como a Tumba do Jardim, e até mesmo a famosa Tumba de Talpiot?

A tradição evangélica afirma que Jesus foi crucificado fora da cidade de Jerusalém (Hebreus 13:12), por volta do ano 30 DC, em um lugar chamado Gólgota ou Caveira (Marcos 15:22; Mateus 27:33, Lucas 23:33; João 19:17 a 20), que havia um caminho próximo por onde as pessoas passavam e zombavam dele (Mc. 15:29), que foi sepultado em um lugar relativamente próximo da execução (João 19:42), e que próximo a esse local de sepultamento havia um jardim (João 19:41). Nos anos seguintes, Jerusalém se expandiu, foi destruída em 70 DC, pelo futuro Imperador Tito, e reconstruída por Adriano pouco antes da grande rebelião de Bar Kochba, com seu nome alterado para Aelia Capitolina. Em 326, após a conversão do Imperador Constantino ao cristianismo, houve a "descoberta" da localização do túmulo. Esse evento é descrito pela Professora Maria Françoise Baslez (1946-2022):  
O evangelho de João o localiza num jardim próximo do Gólgota - no assim chamado lugar do "Crânio", diz ele com precisão, como o fazem também Mateus e Marcos, sugerindo uma pequena saliência em forma de calota rochosa. Parece que a memória cristã se esforçou desde as origens por salvaguardar a lembrança do lugar da morte e da ressureição de Cristo, apesar das vicissitudes por que passou o lugar em 135, quando o Imperador Adriano mandou erigir ali um templo a Afrodite e um fórum. Estes grandes trabalhos, que visavam transformar Jerusalém em colônia romana, ocultaram a lembrança de Jesus, mas também tiveram uma caráter conservador, já que a passagem original permaneceu intacta sob o muro de sustentação do Templo. Em 326, quando Constantino mandou procurar o túmulo de Jesus, foi indicado a seus arquitetos que era preciso cavar sob o templo romano. O tumulo, uma vez descoberto, foi coberto por uma rotunda, enquanto o rochedo do Gólgota foi conservado a céu aberto. Em seguida, o edíficio foi incessantemente retocado, destruído e reconstruído no decorrer das invasões, incêndios até as cruzadas, mas a arqueologia recente, desde as escavações realizadas entre 1961 e 1984 e retomadas em 2016-2017, tendem a confirmar a autenticidade deste lugar de memória. [2]

As circunstâncias em que o santo sepulcro foi localizado seriam, a princípio, um elemento a pesar contra sua autenticidade. Já sob reinado de Constantino, recém convertido ao cristianismo, em um processo que foi conduzido em grande parte por sua mãe, Helena, que era uma cristã devota. O próprio Constantino celebra a descoberta em uma carta ao Patriarca Macário de Jerusalém (no cargo entre 312-334 DC) "(...) o monumento de sua santíssima Paixão, há tanto tempo enterrado sob a terra, deveria ter permanecido desconhecido por uma série de anos tão longa, até que seu reaparecimento a seus servos agora libertados pela remoção daquele que era o inimigo comum de todos, é um fato que realmente supera toda admiração (...)"A descoberta do Santo Sepulcro aconteceu pouco depois da derrota e execução do rival (e antigo aliado) de Constantino, Licínio (e co-autor do Edito de Milão), garantindo a hegemonia de Constantino sobre todo o Império. 

No entanto, apesar dessas circunstâncias, há vários elementos que, em conjunto, indicam que o Santo Sepulcro é, muito provavelmente, o lugar de sepultamento de Jesus. Conforme Crossan e o Professor Jonathan Reed, da La Verne University, descrevem:

Teriam encontrado mesmo o lugar de sepultamento de Jesus? Pensamos que ao lado da Casa de Pedro em Cafarnaum, o Santo Sepulcro de Jerusalém é um dos poucos lugares sagrados cristãos dignos de credibilidade. A igreja constantiniana pode muito provavelmente ter sido erguida em cima do lugar que Jesus foi crucificado e o corpo sepultado. Estava dentro do terceiro muro da parte norte de Jerusalém construído por Agripa I (41-44 DC), mas do lado de fora do segundo muro que demarcava a cidade no tempo de Jesus. Estava fora, portanto, da cidade do primeiro século, como prescreviam os judeus para crucifixões e sepultamentos. Os arqueólogos de Constantino acharam, depois, túmulos de um cemitério quando cavavam debaixo do templo de Afrodite. As camadas escavadas por Constantino foram corroboradas por recentes missões estatigraficas. Encontraram paredes de uma estrutura monumental do tempo de Adriano que deveriam ter pertencido ao templo da deusa. Debaixo desse complexo havia muitos túmulos do primeiro século ou anteriores a ele. Antes dessas descobertas o lugar estava desabitado e era uma pedreira. [3]

Fonte: Jerusalem no período do Segundo Templo: Map,”
The Land of Israel / Palestine: Image Database, accessed July 13, 2023,
https://image-database.nes.lsa.umich.edu/items/show/182 

Os cemitérios no antigo Israel, segundo a tradição judaica, deveriam ser localizados fora da cidade. Assim, alguns dos principais complexos funerários como o do Monte das Oliveiras,  e do Monte Scopus, ficam fora dos muros da antiga cidade. Até a construção da terceira muralha, o lugar onde hoje se localiza a Igreja do Santo Sepulcro não fazia parte da cidade antiga de Jerusalém (ou seja, fora do muros). A construção da terceira muralha foi iniciada por volta do ano 41 DC, quando Herodes Agripa I foi nomeado pelo Imperador Claúdio como Rei sobre toda a Judéia, como seu avô, Herodes, o Grande, havia sido (37 DC-4AC). Flávio Josefo, ao descrever a Jerusalém de seu tempo, chama a muralha construída por Herodes, o Grande, de segunda muralha "(...) que se iniciava no portão chamado de "Genate", pertencente ao primeiro portão; e abrangia apenas o bairro norte da cidade e chegava até a torre Antônia (...)".[4] Já o terceiro muro, de Herodes Agripa, se estendia "(...) da torre Hipicus (Fasael), de onde chegava até o bairro norte da cidade, e a torre Fesefina, e então se estendia até chegar aos monumentos de Helena, que era rainha de Adiabene, filha de Izates; estendeu-se então por uma grande extensão e passou pelas cavernas sepulcrais dos reis, e dobrou-se novamente na torre da esquina, no monumento chamado "Monumento do Pisador", e junta-se à velha muralha no vale chamado "Vale do Cedron"(...) [4]. A Jerusalém do tempo dos reis bíblicos existia principalmente no sul e leste da atual cidade velha. A segunda e, principalmente, a terceira muralha marcam uma significativa expansão dos limites da cidade, com direção ao norte e oeste, como pode ser visto no mapa acima

O Rei da Galiléia, Herodes Antipas (4-37 DC), nos relata Flávio Josefo, havia tido problemas em edificar sua nova capital, Tiberíades, por volta do ano 20 DC. Apesar da cidade ter sido construída as margens do Lago da Galiléia, em uma região considerada aprazível, e de Antipas ter construído "casas muito boas" para que alguns colonos pobres fossem morar lá, teve que força-los a habitar na cidade, já que muitos judeus piedosos consideravam que os "que moravam lá estavam transgredindo a lei", pois "muitos sepulcros tiveram que ser retirados para que a cidade de Tiberíades fosse edificada, uma vez que nossas leis declaram tais habitações como imundas" [5]. Como observa Magen Broshi (1929-2020), que foi arqueólogo do Museu de Israel, e professor convidado da Universidade Bar Ilan, "

De mais a mais, antigas tumbas judaicas encontradas na vizinhança apontam para existência de um local de sepultamento anterior ao ano 70 DC. Está dentro dos limites dos muros da cidade, e parece estar situado de forma estranha, uma vez que as escrituras nos dizem que o local estava "próximo da cidade" (João 19:20) ou "do lado de fora da porta" (Hebreus 13:12). A execução ou o sepultamento dentro de uma área colonizada eram estritamente proibidos segundo a Lei judaica, ainda mais na Cidade Santa, onde antigas tumbas ficavam do lado de fora dos muros da cidade. Por ocasião da crucificação, entretanto, esta área estava realmente do lado de fora das muralhas. Ela seria cercada pela assim chamada "terceira muralha" somente uma década mais tarde". [6]


Maquete (1:50) da Jerusalém do tempo de Jesus (segundo templo), em exposição no Museu de Israel. Via wikicommons.  

Ou seja,  o túmulo encontrado pelos arqueólogos de Constantino, e no qual também foram encontrados outros pela escavações arqueológicas modernas, se localizava fora do perímetro do segundo muro, e dentro do terceiro. Assim, só pode ter existido como lugar de sepultamento em um período de tempo de 40 a 50 anos, mais ou menos, na primeira metade do século I DC.  Além disso, Jerusalém foi totalmente destruída durante a primeira guerra judaica (66-73DC), e reconstruída por volta de 130 DC, tendo sido construído sob o local um templo dedicado a Vênus (Afrodite). Sendo assim, fica evidenciada a existência de uma memória cristã antiga, de antes de 40DC, de um cemitério ali localizado, que é confirmada pela arqueologia.

Professores Gerd Theisen (Universidade de Heildelberg) e Annete Merz (Universidade de Utrecht), comentam que "sem uma antiga tradição local sobre o túmulo de Jesus ninguém teria procurado seu túmulo no meio da cidade". Consolidam assim os argumentos pelos quais a localização da Gólgota e do Santo Sepulcro se baseiam em tradições contemporâneas a crucificação:

O túmulo "descoberto" na época de Constantino não pode ser uma "invenção". Ele foi descoberto no meio da cidade bizantina, sob um templo de Vênus associada à fundação de Aelia Capitolina em 136 DC. Na Antiguidade, os túmulos ficavam fora da cidade. Sem uma antiga tradição local sobre o túmulo de Jesus, ninguém teria procurado seu túmulo no meio da cidadeÉ altamente provável que na época de Jesus seu túmulo estivesse fora dos muros da cidade. Herodes Agripa I foi o primeiro a mandar construir um terceiro muro entre 41 e 44 DC em virtude do qual o Gólgota e o túmulo vieram a se localizar entre os muros. Por conseguinte, é provável que já houvesse no séc. I uma tradição local que situava o túmulo de Jesus onde ele é hoje venerado na Igreja do Santo Sepulcro. O túmulo na Igreja do Santo Sepulcro é um "túmulo novo". Faltam os diversos loculi adicionais que partem da câmara principal. Além disso, ele está na proximidade do Gólgota, numa pedreira abandonada que poderia muito bem ter servido como Jardim. Tudo isso se coaduna com João 19:41. A tradição joanina pressupõe um tipo de túmulo que podemos ver hoje. [7]

Um ponto relevante, antes de prosseguir, são as circunstâncias em que Jesus foi sepultado. Jesus foi vítima de uma execução por crucificação, tendo sido acusado de ser um pretendente real (rei dos judeus). Vítimas de crucificação, principalmente na ocorrência de rebeliões contra Roma, eram deixadas expostas aos elementos por vários dias, e depois serviam de alimento as aves de rapina [8]. Nas palavras de Crossan "(...) em circunstâncias normais, os soldados guardavam o corpo até a morte e depois ele era deixado ao corvo, cão carniceiro ou animais selvagens, para que acabassem com trabalho brutal" (...) [8]. Assim, Apiano nos conta que após Marco Licinio Crasso derrotar os escravos rebeldes liderados por Espártaco, na Batalha do Rio Silárico, os seis mil prisioneiros foram crucificados na estrada entre Roma e Cápua [9]. Josefo nos conta que Quintilio Varo crucificou em Jerusalém 2 mil judeus acusados de envolvimento na revolta após a morte de Herodes, liderada por Simão de Peréia, Atronges e Judas Galileu [9]. Josefo também nos conta que, no auge do cerco de Jerusalém, Tito ordenou crucificar até 500 judeus por dia, diante dos muros, de forma que chegou a faltar lugar e madeira para tantas cruzes [9]. Crossan também nos diz que a crucificação era "terrorismo de estado", o que é dito de outra forma numa declaração atribuída a Quintiliano (35-96 DC), "sempre que crucificamos os culpados, as estradas mais movimentadas são escolhidas, onde o maior número possível de pessoas possam ser impactadas pelo medo. Pois as penalidades não se medem tanto pela retribuição, mas para servir de exemplo"[10] . Segundo Suetônio, durante as guerras civis da republica Romana, o futuro imperador Augusto, após derrotar Bruto e Cassio em Filipi, recebendo um pedido de clemência de um prisioneiro - que, humildemente, apenas pedia que seu corpo fosse enterrado após a execução - disse "os pássaros em breve resolverão o problema" [11].

Retábulo de Isenheim, de Mathias Grunewald e Nikolau de Hagenau, 1512-1516, Museu de Unterlinden, Colmar, France, via wikicommons

Por outro lado, a crucificação era de uma natureza tão brutal e chocante, que levou a algumas limitações de seu emprego em tempos de paz. Os casos acima ocorreram durante insurreições provinciais generalizadas ou nas guerra civis de Júlio Cesar e Otávio Augusto. Em tempos "normais" (ou em lugares não conflagrados), a crucificação não era aplicada contra cidadãos romanos. Assim, por exemplo, uma das acusações mais graves que Cicero faz contra o Governador da Sicília, Gaio Verres, foi de que ele havia mandado crucificar o cidadão romano Públio Gávio, o que era ilegal [12]. Para os demais súditos do império,  Filo de Alexandria utiliza como uma das provas da crueldade e incompetência do  governador do Egito, Avílio Flaco, o fato dele não deixar que os corpos de pessoas crucificadas fossem, nas vésperas de festivais e feriados, "retirados da cruz, e dados a seus familiares, para que pudessem ser adequadamente sepultados" (Contra Flaco, 10:83). Josefo também relata a preocupação dos judeus com os sepultamentos, "pois eles costumar tomar os corpos dos condenados e crucificados, e enterra-los antes do por do sol" (Guerras Judaicas, Livro 4. capítulo V, §2), em observância a Deuteronômio 21:22-23, "(...) Se um homem culpado de um crime que mereça a morte for morto e pendurado num madeiro, não deixem o corpo no madeiro durante a noite. Enterrem-no naquele mesmo dia, porque qualquer que for pendurado num madeiro está debaixo da maldição de Deus. Não contaminem a terra que o Senhor, o seu Deus, lhes dá por herança (...)".  Além disso, justamente nas proximidades de Jerusalém,  foram encontrados os restos mortais de um individuo crucificado no século I DC, chamado Yehohanan son of Hagakol, em um ossuário (pequena urna funerária, onde os ossos da pessoa falecida eram acomodados um ano após o sepultamento) numa tumba familiar A constatação de Yehohanan foi crucificado decorreu de um acaso. O osso do tornozelo foi transpassado por um prego, que por estar torto, ficou preso na madeira. Quando o crucificado foi retirado do madeiro, foi necessário retirar também um pedaço da cruz, de forma que madeiro, prego e osso do calcanhar ficaram juntos. Assim, as circunstâncias peculiares da retirada da cruz, se somam ao fato de que Yehohanam veio de uma família abastada (pelo simples fato de ter sido enterrado em um sepulcro familiar), e que os romanos permitiram seu enterro. A partir dessa evidência arqueológica e literária, a Professora  Jodi Magness (Universidade da Carolina do Norte em Chapell Hill), sustenta que "(...) embora vítimas de crucificação fossem, em algumas ocasiões, deixadas em suas cruzes por dias, esta não era a situação mais usual (...)". [13] O evangelho deixa claro, porém, que era uma situação tensa, as mulheres que seguiam de Jesus observavam "de longe"(Mc 15:40), e o pedido de José de Arimatéia a Pilatos para sepultar Jesus era "ousado" (Mc 15:43).

 Maurice Casey (1942-2014), que foi professor da Universidade de Nottingham, aponta passagem na Mishná, em que as cortes judaicas mantinham sepulturas para criminosos executados: "E eles não serão enterrados junto de seus ancestrais, mas duas sepulturas serão preparadas pelo tribunal, uma para os apedrejados e queimados, outra para os estrangulados e decapitados"(Mishná Sinédrio VI.11)".Casey observa que mesmo executado pelos romanos, a sepultura do tribunal judaico poderia ser utilizada, sendo consistente com a tradição contida em Atos 13:27-29, onde os "habitantes de Jerusalém e seus lideres (...) pediram a Pilatos que o mandasse executar (...) tiraram-no do madeiro e o colocaram num sepulcro", e com o relato de Marcos 15:46, em que José de Arimateia manda sepultar Jesus, e Maria Madalena e Maria, Mãe de Tiago e José, apenas acompanham de longe (v. 40 e 47), sem "qualquer evidência de atuarem juntos, ou cooperando". Na verdade, segundo Casey, José de Arimateia estaria, na verdade, "submetido aos principais sacerdotes", agindo de forma piedosa em garantir o sepultamento de um desassistido.[14]. 

Casey, sustenta, portanto, que Jesus foi sepultado como um criminoso, longe de seus ancestrais, sem os ritos funerários adequados, em um túmulo destinado a executados. Já para Jodi Magness "(...) os relatos dos evangelhos sobre o sepultamento de Jesus são amplamente consistentes com as evidências arqueológicas. Embora a arqueologia não prove que houve um seguidor de Jesus chamado José de Arimatéia ou que Pôncio Pilatos concedeu seu pedido pelo corpo de Jesus, os relatos do Evangelho que descrevem a remoção de Jesus da cruz e o sepultamento são consistentes com as evidências arqueológicas e com a lei judaica (...)"[15]. A opinião é parecida com a de Geza Vermes (1924-2013), que foi professor de estudos judaicos em Oxford, que reconstrói os eventos da seguinte forma, "(...) com a permissão de Pilatos, José de Arimatéia, ou Jose e Nicodemos, deitou o corpo de Jesus numa tumba nova talhada na pedra pouco antes do início da festa da Páscoa e do Sabá, no sábado, 15 Nisan (...)"[16]. Crossan, porém, diverge "(...) se os romanos não observavam o decreto deuteronômico, o corpo de Jesus seria deixado na cruz para os animais selvagens. E seus seguidores, que haviam fugido, saberiam disso. Se os romanos observavam o decreto, os soldados se certificariam de que Jesus estava morto e o sepultariam como parte de seu trabalho. Em ambos os casos, seu corpo deixado na cruz ou em uma cova rasa mal coberta com terra e pedras, os cães estavam a espreita (...)" [17]. Mesmo assim, Crossan, como indicado acima (em trabalho conjunto com Jonathan Reed) acredita que a Igreja do Santo Sepulcro marca o local em que Jesus foi executado e possivelmente sepultado "A Igreja do Santo Sepulcro de Constantino foi construída em cima de um cemitério e tudo indica que esteja perto do lugar onde Jesus fora crucificado"[18]

Uma descrição do contexto arqueológico do sítio da igreja do Santo Sepulcro é apresentada pelo Professor James Charlesworth, do Seminário Teológico de Princeton.

Nos últimos anos da década de sessenta, Kenyon descobriu provas de que a muralha que hoje circunda o sítio tradicional do Calvário, em certos pontos, apoia-se numa fundação construída em 41 E.C, ou pouco depois, por Herodes Agripa. Em consequência, em 30 E.C. o lugar tradicional teria ficado fora  da cidade. (...) nos últimos anos da década de setenta, arqueólogos que trabalhavam no sítio do Gólgota desenterraram fundações do Foro Romano de Adriano, onde o Templo de Afrodite foi construído por volta de 135 E.C. Os romanos haviam provavelmente construído esse templo para cobrir o Golgota e talvez o túmulo de Jesus. Agora duas importantes descobertas confirmam, na minha opinião, que a igreja do Santo Sepulcro abriga a rocha em que Jesus foi crucificado (...) M. Broschi, em 1976, descobriu restos de uma muralha herodiana na seção nordeste da própria igreja. Consequentemente, em 30 E.C, o Gólgota ficava fora da muralha ocidental. [19] 
Ainda mais importante que isso é o fato de que ficou agora claro, graças as escavações de D. Katsiminibinis nos últimos anos da década de setenta, que a rocha do Cálvario ainda se ergue apoximadamente 13 metros acima do leito da rocha. A rocha exposta mostra sinais de antigo trabalho de pedreiro; é uma porção rejeitada de uma antiga pedra branca anterior ao exílio israelita, malaki, pedreira. Na altura do primeiro século AEC esse sítio evoluiu de uma pedreira do sétimo ou oitavo século até tornar-se um depósito de entulho e, finalmente, um cemitério, já que são visíveis túmulos judeus anteriores a 70 E.C. [19]   

 Como já exposto aqui no adcummulus, um princípio fundamental da arqueologia é que as várias camadas de ocupação humana, os contextos, vão se sobrepondo a medida que o tempo vai passando, de forma  que é possível inferir a história da ocupação do sítio em função de sua estratigrafia. Então os vários contextos sucessivos de ocupação indicam a construção da atual igreja (século IV DC), sobre o templo de Afrodite e Foro da Aelia (século II DC), um cemitério (sec I DC) e antes um depósito de entulho, remanescente de uma pedreira que existiu desde tempos antigos, a partir do século VII-VIII AC. No tempo de Jesus, observa Charlesworth [19], o local estava perto de uma estrada pública importante, o que é refletido na memória de transeuntes zombando de Jesus, (Mc 15:29), atendendo as requisitos romanos para crucificação ("sempre que crucificamos os culpados, as estradas mais movimentadas são escolhidas, conforme Quintiliano, acima), e judaicos, pouco além dos muros da cidade ("fora do arraial", conforme Levítico 24:14,"mas pouco além dele"Mishná Sanhedrin 6.1) [19], em frente ao portão Genate ("jardim", cf João 19:42), onde a primeira e o segunda muralha se encontravam. A memoria incorporada a tradição evangélica de uma antiga pedreira no local do Gólgota, fora de Jerusalém, é compatível com as recorrentes citações nos textos neotestamentários (ex.  Atos 4.11, Romanos 9:33 e I Pedro 2:7) ao Salmo 118:22 "A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular", uma das quais na parábola dos lavradores maus "Assim eles o agarraram [o Filho], e o mataram, e o lançaram para fora da vinha (...) Vocês nunca leram esta passagem das Escrituras? ‘A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isso vem do Senhor, e é algo maravilhoso para nós (...)" (Marcos 12:8 e 10).

Mapa de Madaba: Mosaico no piso da Igreja de São Jorge em Madaba, Jordânia, do século VI
com a mais antiga representação do oriente médio, palestina, e, principalmente, Jerusalém.

Professora Joan E Taylor, da Universidade de Londres, chama a atenção a menção do Bispo Melito de Sardes (II século), em sua homília "Peri Pasca"(Sobre a Páscoa) "(...) Um assassinato extraordinário aconteceu no centro de Jerusalém, na cidade dedicada à lei de Deus, na cidade dos hebreus, na cidade dos profetas, na cidade considerada justa (...) no meio da rua principal, mesmo no centro da cidade, enquanto todos assistiam, que o injusto assassinato deste justo ocorreu (...)" (Peri Pasca, 94). Melito escreveu entre 160-170 DC, cerca de 30 anos após a reconstrução de Jerusalém sobre Adriano, sobre as ruínas da cidade destruída por Tito em 70 DC. O Templo de Vênus/Afrodite (sobre o qual Constantino depois construiria a Igreja do Santo Sepulcro) ficava junto ao Foro na Aelia Capitolina de Adriano. Isso é relevante porque a partir de 140 DC aquele ponto ficava na parte central da cidade reconstruída (um "centro novo"), junto a plateia ("rua larga" ou rua principal), muito improvável para um crucificação, diferentemente da Jerusalém anterior a 40 DC, onde ficava, muito provavelmente, junto a estradas mas logo fora dos muros. Mais significativo ainda é o fato de que, como provavelmente sabido pelo Bispo Melito, era inconsistente com o descrito no novo testamento, que dizia que Jesus foi crucificado fora da cidade. O fato de cristãos como Melito indicarem para um local da crucificação em pleno centro de Jerusalém, mesmo que fosse remoto para eles que mais de cem anos antes esse local ficava fora da cidade é evidência que uma memória antiga foi conservada, e existia séculos antes de Constantino. Taylor estima que o sítio da crucificação ficava mais ou menos 200 metros ao sul do lugar hoje indicado na igreja do Santo Sepulcro, na junção de duas importantes estradas, que iam para o norte (na direção de Samaria e Damasco) e oeste (para Emaus, Lida e Jope).  Taylor conclui a partir da evidência disponível que "de qualquer forma, os cristãos da Palestina sabiam que o imperador havia coberto a tumba, e colocado uma estátua de Jupiter (como ele mesmo?) no lugar. Eles também recordaram a local da crucificação sob a plateia (rua larga), mais provavelmente o decumanus da Aélia, e contado a visitantes como Melito sobre isso". [20]. 

Dan Bahat, que foi arqueólogo distrital de Jerusalém e professor da Universidade Bar Ilan, pondera as várias questões envolvidas em relação ao sítio da igreja do Santo Sepulcro, e sua plausibilidade como a identificação com a Gólgota e o tumba mencionada no novo testamento. 

 Was the Constantinian rotunda actually built over the true site of Jesus’ burial? Although we can never be certain, it seems very likely that it was. As we have seen, the site was a turn-of-the-era cemetery. The cemetery, including Jesus’ tomb, had itself been buried for nearly 300 years. The fact that it had indeed been a cemetery, and that this memory of Jesus’ tomb survived despite Hadrian’s burial of it with his enclosure fill, speaks to the authenticity of the site. Moreover, the fact that the Christian community in Jerusalem was never dispersed during this period, and that its succession of bishops was never interrupted supports the accuracy of the preserved memory that Jesus had been crucified and buried here. (traduçãoA rotunda Constantiniana foi realmente construída sobre o verdadeiro local do sepultamento de Jesus? Embora nunca possamos ter certeza, parece muito provável que tenha sido. Como vimos, o local era um cemitério do início da era cristã. O cemitério, incluindo o túmulo de Jesus, estava enterrado há quase 300 anos. O fato de ter sido de fato um cemitério e de essa memória da tumba de Jesus ter sobrevivido, apesar do fato de Adriano o ter soterrado com preenchimento do recinto, fala da autenticidade do local. Além disso, o fato de a comunidade cristã em Jerusalém nunca ter se dispersado durante esse período e de sua sucessão de bispos nunca ter sido interrompida apóia a precisão da memória preservada de que Jesus foi crucificado e sepultado aqui.[21]

Bahat aponta a improbabilidade de Constantino ter encontrado um lugar semelhante ao da atual igreja do Santo Sepulcro sem uma "pista" do que estava buscando. Era um lugar apropriado a execução e um cemitério nos anos 30 DC, logo na saída da cidade. Foi incorporado a cidade em 40 DC, segundo Josefo. Posteriormente a cidade foi destruída em 70 DC, e reconstruída em 135 DC, localizado agora na rua principal no novo centro da nova cidade, com um templo romano construído lá. E duzentos anos depois, a busca ocorre ali, e não nos vários complexos funerários fora da cidade. A hipótese mais provável é que havia a memória, conservada pela comunidade cristão palestina que, embora tenha perdido relevância, se manteve desde os anos 30 da era cristã liderada, pelo menos nas primeiras gerações de cristãos, por membros da família de Jesus e seus descendentes. Tiago, irmão de Jesus, chamado o Justo, foi citado pelo apóstolo Paulo como uma das colunas da Igreja de Jerusalém (Gálatas 2:9), e sua execução é relatada por JosefoHegésipo, escrevendo em meados do século II, também menciona a execução de Tiago em Jerusalém, pouco antes da queda, acrescentando o papel de outros membros da família de Jesus, como Simeão, Judas e seus netos [22]. Tempos depois, no início do século III DC, é a vez de Julio Africano descrever os desposyni, os descendentes dos irmãos de Jesus que se concentravam na Galileia.  Assim, o argumento de Bahat, de que a memória do local de execução foi preservada pela comunidade cristã palestina e bispos de Jerusalém em sucessão é bastante plausível. Destacamos o papel relevante, e atestado em várias fontes, de Tiago, Simão, Judas e seus descendentes e seguidores na conservação de memórias e tradições evangélicas, frequentemente, e desde muito cedo, em conflito com visões dominantes das comunidades gentias paulinas (Atos 15; Gl 2:12; Tiago 2:14-17) e, posteriormente, na Igreja de Roma. Como vimos acima, relatos como o do Bispo Melito, em meados do século II DC, indicando o local da execução no centro de Jerusalém, contra todas as possibilidades, é uma das mais fortes evidências em seu favor.

Perhaps the strongest argument in favor of the authenticity of the site, however, is that it must have been regarded as such an unlikely site when pointed out to Constantine’s mother Queen Helena in the fourth century. Then, as now, the site of what was to be the Church of the Holy Sepulchre was in a crowded urban location that must have seemed as strange to a fourth-century pilgrim as it does to a modern one. But we now know that its location perfectly fits first-century conditions. (traduçãoTalvez o argumento mais forte a favor da autenticidade do local, no entanto, seja que ele deve ter sido considerado um local tão improvável quando apontado para a mãe de Constantino, a rainha Helena, no século IV. Então, como agora, o local do que viria a ser a Igreja do Santo Sepulcro ficava em um local urbano lotado que deve ter parecido tão estranho para um peregrino do século IV quanto para um moderno. Mas agora sabemos que sua localização se encaixa perfeitamente nas condições do primeiro século.[21]

Bahat então revê os vários elementos incidentais nos relatos evangélicos, a luz da evidência arqueológica disponível, e conclui que a Igreja do Santo Sepulcro tem uma reinvindição forte. Embora não acha um elemento decisivo e indiscutível em seu favor, há vários indícios e elementos circunstâncias, que tomados isoladamente não seriam significativos, mas, em conjunto, apontam para uma tradição sólida e corroborada factualmente.

The Gospels tell us that Jesus was buried “near the city” (John 19:20); the site we are considering was then just outside the city, the city wall being only about 500 feet to the south and 350 feet to the east. We are also told the site was in a garden (John 19:41), which is at the very least consistent with the evidence we have of the first century condition of the site. (traduçãoOs Evangelhos nos dizem que Jesus foi sepultado “perto da cidade” (João 19:20); o local que estamos considerando era então fora da cidade, a muralha da cidade estando a apenas cerca de 500 pés ao sul e 350 pés a leste. Também nos é dito que o local estava em um jardim (João 19:41), o que é no mínimo consistente com a evidência que temos da condição do local no primeiro século. [23]

A Igreja do Santo Sepulcro, construída e reconstruída diversas vezes desde o tempo de Constantino, em que se refletem as várias divisões da cristandade. patrimônio artístico e cultural da humanidade, se mantém imponente por dezessete séculos. Apesar de reconhecermos que certezas são muito raras, e na maior parte das vezes, precipitadas, concordamos com Dan Bahat que "(...) Podemos não estar absolutamente certos de que o local da Igreja do Santo Sepulcro seja o local do sepultamento de Jesus, mas certamente não temos outro local que possa reivindicar quase o mesmo peso e realmente não temos motivos para rejeitar a autenticidade do local. (...).[23]

Referências Bibliográficas

[1] John Dominic Crossan (1994) Jesus, Uma Biografia Revolucionária, fl. 155. Editora Imago, 1995
[2] Marie Françoise Baslez (2017), Jesus Dicionário Histórico dos Evangelhos, fls 160-161. Editora Vozes, 2018
[3] John Dominic Crossan e Jonathan L Reed (2002) Em Busca de Jesus, Debaixo das Pedras, atrás dos textos, fls,. 270-271. Edições Paulinas, 2007
[4] Flávio Josefo, Guerras Judaicas, Livro V, capitulo IV, 2, Josephus (earlyjewishwritings.com)
[5] Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, Livro 18:36-37 (II, §3), Josephus (earlyjewishwritings.com)
[6] Magen Broshi (1998), A Topografia e Arqueologia da Paixão: Uma reconstrução da Via Dolorosa, in David Flusser, Jesus, fl. 214. Editora Perspectiva, 2002
[7] Gerd Thiessen e Annete Merz (1996), O Jesus Hístorico, um Manual, fl . 529, Edições Loyola, 2° edição, 2004
[8] John Dominic Crossan (1994), Jesus, Uma Biografia Revolucionária fls. 138-139
[9] Da revolta de Espartaco e crucificação de 6 mil de seus seguidores por Crasso, ver Guerras Civis, de Apiano de Alexandria, Livro 1, §120,  Appian on Spartacus - Livius;  Sobre as crucificações em Jerusalém sobre Quintilio Varo e Tito, ver Flávio Josefo, Guerras Judaicas, Livro II, V.2, e Livro V. capítulo XI.1] Josephus (earlyjewishwritings.com)
[10] Marco Fábio Quintiliano, Declamações Menores, 274. Conforme a versão editada por Harvard da obra, há dúvidas sobre a autoria de Quintiliano, sendo possível também associar a autoria a seus seguidores no segundo II DC
[11]  Caio Suetônio Tranquilo, Vidas dos Doze Cézares, Vida de Augusto, 13
[13] Jodi Magness (2006), What Did Jesus’ Tomb Look Like? · The BAS Library  Biblical Archaeology Review 32:1, January/February 2006. 
[14] Maurice Casey (2010) Jesus of Nazareth: An Independent Historian's Account of His Life and Teaching, fls. 449-450
[15] Jodi Magness (2006), What Did Jesus’ Tomb Look Like? · The BAS Library· The BAS Library Biblical Archaeology Review 32:1, January/February 2006. 
[16] Geza Vermes (2005), A Paixão, fl. 111. Editora Record, 2007.
[17] John Dominic Crossan  (1994), Jesus, Biografia Revolucionária fl. 163
[18] John Dominic Crossan e Jonathan L Reed (2002) Em Busca de Jesus, Debaixo das Pedras, atrás dos textos, fl. 271
[19] James Charlesworth (1988) Jesus Dentro do Judaismo, fl. 139-140. Editora Imago, 1992. Levítico 24:14 "Leve o que blasfemou para fora do acampamento. Todos aqueles que o ouviram colocarão as mãos sobre a cabeça dele, e a comunidade toda o apedrejará". Mishná Sanhedrin 6.1 "Quando o julgamento for concluído com um veredicto de culpado, com a condenação de apedrejamento, ele será levado para a execução. O local de apedrejamento é fora do tribunal e um pouco além dele, como é declarado a respeito de um blasfemador:Tira fora do acampamento aquele que praguejou, e todos os que o ouviram ponham as mãos sobre sua cabeça, e toda a congregação o apedreje” (Levítico 24:14).
[20] Joan E Taylor (1998) Golgotha: A Reconsideration of the Evidence for the Sites of Jesus' Crucifixion and Burial, New Testament Studies , Volume 44 , Issue 2 , April 1998 , pp. 180 - 203. Taylor era cética em relação a identificação do Gólgota e da tumba de Jesus com o sítio da Igreja do Santo Sepulcro, e este trabalho marcou uma revisão de sua posição. 
[21]  Dan Bahat (1986). “Does the Holy Sepulchre Church Mark the Burial of Jesus?” Biblical Archaeology Review 12.3 (1986): 26–45.
[22] Sobre a execução de Tiago, irmão de Jesus, ver Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, Livro XX, 9.1 Josephus, Antiquities Book XX (earlyjewishwritings.com); Os fragmentos da obra de Hegésipo, citados por Eusébio de Cesaréia, podem ser consultados aqui Hegesippus (Roberts-Donaldson translation) (earlychristianwritings.com) . A menção de Julio Africano aos descendentes da família de Jesus, estão na sua carta a Aristides, aqui CHURCH FATHERS: Extant Works (Julius Africanus) (newadvent.org)
[23]  Dan Bahat (1986)“Does the Holy Sepulchre Church Mark the Burial of Jesus?” Biblical Archaeology Review 12.3 (1986): 26–45.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Anotações Adcummulus 012 -"Os da Casa de César te Saudam - Como o cristianismo chegou na High Society - Parte 6 - A inscrição do bispo Abércio e uma das primeiras igrejas do mundo

Inscrição de Akeptous, Megido, Israel, "Aketpous 
 que ama a Deus, oferece esse mosaíco ao Deus Jesus 
Cristo, como memorial", foto de Vesafis Tzferris,
 Ao longo de nossa série sobre a ascensão do cristianismo na sociedade romana, abordamos casos de conversão de membros da elite romana, e escravos libertos da família imperial, que ganharam influência e confiança do Imperador. Fora da cidade de Roma, os cristãos também foram se tornando mais visíveis, seja porque confrontaram a ordem vigente, e foram martirizados por isso, seja ao conseguiram influenciar governantes provinciais e de reinos clientes, antecipando a conversão de Constantino em 100 anos. Paralelamente, a expansão do cristianismo entre a população, foram sendo construídas estruturas e deixadas evidencias materiais.


A inscrição de Abércio.

Abércio (ou Avércio) Marcelino foi Bispo da cidade de Hierópolis (Turquia), na segunda metade do século II DC, que comissionou um epitáfio, para ser colocado como inscrição funerária. 

Preliminarmente, como observa o Professor William Tabernee, Abercio era de Hierópolis, atual Koçhisar - não Hierapolis, atual Pamukalle (também na Turquia), onde o apóstolo Filipe foi provavelmente enterrado [1], e discorremos aqui e aqui.  

Por volta do século IV, talvez V, foi composta uma biografia do Bispo Abércio, Vida de Santo Abércio (Vita), que de forma semelhante a textos como os Atos de Filipe (que também já tratamos aqui no adcumullus), é basicamente uma novela hagiográfica, elaborada para endereçar questões dos cristãos locais no tempo que foi escrita, ou seja, considerando o sitz im leben em que foi composta. No entanto, como já argumentamos no post sobre Atos de Filipe, tais textos podem conter memórias históricas (como a associação de Filipe Apóstolo com a cidade de Hierápolis, e de que foi enterrado lá). No caso de Abércio, a situação é parecida.

Em 1881, Sir William Ramsay descobriu em Kilandiraz, 12 km a noroeste de Koçhisar, um epitáfio dedicado a um certo Alexandre, datado de 216 DC. Algumas frases da inscrição funerária eram idênticas, "copia e cola", da inscrição funerária do Bispo Abércio, transcrita em sua Vita. Ramsay propôs então que a semelhança entre o epitáfio de Abércio em sua vita e o de Alexandre eram resultado de ambas terem sido baseadas na inscrição funerária do próprio Abércio [1]. Ramsay foi premiado, em 1883, com a descoberta de dois grandes fragmentos da sepultura do Bispo Abércio, reutilizados em uma casa de banhos construída numa fonte termal em Koçhisar,  confirmando sua hipótese. Em 1893, os fragmentos foram doados pelo Sultão Abdul Hamid ao Papa Leão XIII, estando hoje expostos no Museu Vaticano [1][2]. Uma vez que o epitáfio de Alexandre é de 216 DC,  o de Abércio deve forçosamente ser anterior, sendo geralmente datado no final do século II.

Inscrição de Abércio, Museu Vaticano, foto
de Giovanni Dall'Orto, via wikipedia commons.
Cidadãos da eminente cidade, construi esta sepultura  em vida, para que meu corpo possa aqui repousar;
Me chamo Abércio, e sou discípulo do Santo Pastor
Que apascenta suas ovelhas em montanhas e planícies
E cujos olhos as acompanham em toda parte
Pois me instruiu fielmente em seus escritos;
Ele me enviou a Roma, para contemplar um Reino
E ver uma rainha de manto e sandálias douradas 
Lá eu vi um povo que tinha um selo radiante;
Contemplei as planícies da Síria e muitas cidades, incluindo Nisíbis, para depois cruzar o Eufrates. Encontrei irmãos em todos os lugares, e levei Paulo comigo; A fé me levou em todos os lugares, e me alimentou com os peixes de uma fonte pura e poderosa, que um santa virgem pescou, e serviu à mesa dos amigos, sempre tendo um doce vinho e servindo o cálice com pão;
Estas palavras eu, Abercio, estando presente, as mandei escrever, quando tinha setenta e dois anos;
Aqueles que entendem e acreditam nessas coisas, orem por Abercio;
Mas que ninguém construa outra sepultura sobre a minha, pois, se o fizer, pagará duas mil moedas de ouro para o tesouro romano e mil moedas de ouro para minha amada cidade natal, Hierápolis;

 A inscrição de Abércio diz muita coisa, mas talvez seja melhor começar com as coisas que ela não diz. Geralmente, o Abércio da inscrição é associado ao Bispo Abércio Marcelino, mencionado por Eusébio de Cesáreia em sua História Eclesiástica. No entanto, no passado, chegou-se a questionar até mesmo o caráter cristão da inscrição, ou se afirmou que o autor fosse sincrético. Tais hipóteses foram praticamente postas de lado, pelo fato de que não há elemento na inscrição claramente pagão (como invocação aos deuses gregos, ou divindades locais), ao passo que há menções ao Santo Pastor, Apóstolo Paulo, virgem, escritura, vinho, cálice e partir o pão entre os irmãos, elementos doutrinários e litúrgicos que apontam fortemente para o cristianismo "(...) trabalhos mais recentes tem concluído que a densidade de símbolos e alusões. em conjunto com a identificação deste Abércio com a figura anti-montanista  mencionada por Eusébio  como Abércio Marcelino (HE 5.16.2) tornam muito mais provável de que se trata de um cristão (...)" [3] e "(...) quase todas as frases do epitáfio parecem ter sido escolhidas de forma a carregar sentido simbólico para leitores cristãos: "Santo Pastor", o "povo com o selo brilhante", "peixe da fonte (...)""[4].

A menção de Abércio (ou Avércio) Marcelino (ou Marcelo) na História Eclesiástica de Eusébio é transcrita abaixo:

Tendo por um tempo muito longo e suficiente, ó amado Avércio Marcelo,  foi instado por
escrever um tratado contra a heresia daqueles que são chamados depois de Milcíades,  hesitei até o presente, não por falta de capacidade para refutar a falsidade ou dar testemunho da verdade, mas por medo e apreensão de que eu possa parecer para alguns estar fazendo acréscimos ao doutrinas ou preceitos do Evangelho do Novo Testamento, o que é impossível para quem tem escolhidos para viver segundo o Evangelho, seja para aumentar ou diminuir.[5]

O epitáfio afirma que o "Santo Pastor" levou Abércio em suas viagens, indicando um propósito de natureza eclesiástica, consistente com a atividade de um Bispo, como observa Tabernee [6]. Abércio foi também fielmente instruído nos ensinos do Santo Pastor, o que reforça sua identidade como lider eclesiastico. Abércio Marcelino atuava na Frígia, onde não só ficava Hierópolis, bem como o berço do Montanismo, no mesmo período histórico (segunda metade do século II DC), e que tinham seu centro na cidade de Pepuza, também na Frígia.

Abércio afirma ter cruzado as planícies da Síria, e chegado a Nísibis (atual Turquia), uma principais praças defensivas do Império, em sua fronteira com os partos. Lá chegando, ele cruza o Eufrates, chegando ao limite máximo do Império Romano. Desta forma, esteve muito próximo da Edessa de Julio Africano e do Rei Abgar VII.  Abércio descreve aqui os confins orientais do Império. E lá havia cristãos. Embora as cartas paulinas e Atos dos Apóstolos atestem congregações importantes em Damasco e Antioquia, não há menção ao extremo leste da Síria e a Mesopotâmia, indicando que neste interim, outra fronteira missionária cristã foi aberta. Tertuliano, alguns anos depois, ressalta a profunda capilaridade do cristianismo, afirmando que "(...) o Nome de Cristo se estende a todos os lugares, crido em todos os lugares, adorado por todas as nações acima enumeradas, reinando em todos os lugares, adorado em todos os lugares, conferido igualmente em todos os lugares a todos. Nenhum rei, com Ele, encontra maior favor, nenhum bárbaro menor alegria; nenhuma dignidade ou linhagem goza de distinções de mérito; a todos Ele é igual, a todo Rei, a todo Juiz, a todo Deus e Senhor (...)"[7]

No entanto, é sua descrição de Roma que mais chama a atenção. Afirma que contemplou uma Rainha (grego: Basilissa) com manto e sandálias douradas. Professor Peter Thonemann, de Oxford, observa que embora o sentido na inscrição seja claramente metafórico, o autor da vita de Abércio descreve como uma visita do Bispo Abércio a imperatriz Faustina, que culminou com Abércio exorcizando a princesa Lucilla. Conforme o relato, o Imperador Marco Aurélio não estaria presente. A narrativa é muito tardia, e não conta com elementos de corroboração anteriores, como a inscrição, para ser considerada, de alguma forma, factual. De qualquer forma, a inscrição indica a grande importância da igreja de Roma ao final do século II [8]. No mesmo período, há uma intensa disputa entre os bispos Victor de Roma e Policrates de Éfeso (a frente de vários outros bispos da Asia Menor), referente a data de celebração da páscoa, com Victor determinando a excomunhão do bispos de Éfeso e toda a Ásia Menor. O movimento do Bispo Vitor foi amplamente condenado pela demais lideranças da Igreja, tendo Irineu de Lyon um papel decisivo na reversão da excomunhão e reconciliação entre as igrejas.  Ao mesmo tempo que indica que a igreja de Roma exercia enorme influência, o episódio demonstra que havia uma resistência muito grande de importantes congregações a tais movimentos de imposição. A posição romana acaba sendo vitoriosa e acatada no concílio de Nicéia, mais de 100 anos depois, mas foi muito mais uma vitória da persuasão do que da imposição.  A maior parte das outras grandes e tradicionais congregações, que também exerciam liderança regional, como Corinto, Ponto, Jerusalém e Cesáreia acabaram por concordar com Roma, isolando Éfeso. Havia assim um enorme "soft power" da rainha de manto e sandálias douradas. Igualmente, a localização no centro do poder do Império é algo a ser considerado. Como já vimos aqui no adcummulus, por volta de 190 DC, a Igreja de Roma tinha entre seus membros e simpatizantes um círculo influente de escravos libertos da casa Imperial como Márcia, concubina do Imperador Comodo, Carpóforo, e Marco Aurélio Prosenes, futuro mordomo do Imperador Caracala (211 a 217 DC). Mesma antes, no início do século II, Inácio de Antioquia estava convicto de que tinha que enfrentar o martírio, e pede que a Igreja de Roma não interferisse em sua condenação a morte, no intuito de salva-lo (Carta aos Romanos, capitulo 2), indicando que pelo menos existia a possibilidade de que cristãos que conheciam pessoas influentes pudessem evitar a execução. Professora Margareth Mitchell, da Universidade de Chicago, pondera o itinerário de Abércio e suas repercussões em termos da Igreja no sec. II DC.

In what may be the earliest extant Christian inscription (sometimes before 216 CE), the famous epitaph of Abercius, Bishop of Hieropolis in Phrygia Salutaris, recounts his own journey at the end of second century, self consciously aligning himself with the earlier Pauline itinerary and experience - "everywhere" - he says We had Paul as our companion. In his wide travels a century and a half after Paul among Christian communities from his home in Asia to Rome, to Syria, Nisibis and Mesopotamia,   (tradução) No que pode ser a mais antiga inscrição cristã existente (algum momento ante de 216 dC), o famoso epitáfio de Abercius, bispo de Hierópolis na Frígia Salutaris, relata sua própria jornada no final do século II, alinhando-se conscientemente com o itinerário paulino anterior e experiência - "em todos os lugares" - ele diz que tinha Paulo como companheiro em suas amplas viagens um século e meio depois de Paulo entre as comunidades cristãs de sua casa na Ásia a Roma, à Síria, Nísibis e Mesopotâmia, [9]

O epitáfio enfatiza tanto a diversidade geográfica dos primeiros cristãos, como sua unidade enquanto Igreja. É um caminho longo de Hieropolis até Roma, passando por milhares de quilômetros, mas, diz Abércio, "A fé me levou em todos os lugares", sendo sempre recebido por seus irmãos "tendo um doce vinho e servindo o cálice com pão'. A enorme diversidade geográfica contrasta com a uniformidade na fé e prática. Ainda que deva ser ressaltado que o cristianismo primitivo estava ainda construindo uma identidade ortodoxo (portanto, proto-ortodoxo) e abrigava várias vertentes com maior ou menor (gnósticos de várias linhas, ebionitas, marcionitas e montanistas), Abércio destaca numerosos elementos comuns, compartilhados por um grupo bem significativo  e geograficamente diversificado. A inscrição evoca explicitamente a memórias das viagens missionárias de Paulo, que ocorreram entre 125 a 150 anos antes, e que também percorreram uma parte significativa do Império, encontrando cristãos em (quase) toda parte. 

Abercius says he encountered everywhere some constants of the christian movement: instruction in the Lord's trustworthy text (grammata pista), a eucharistic celebration of common food eaten in company of 'friends' (phíloi), and a common faith (pistis) leading the way (lines 12-16). He declares himself 'a disciple of a holy shepherd' (mathetes poimenus hagnou) who feeds flocks of sheep on mountains and plains. (...) both the cryptic words earlier and ths concluding knowing adress presume a community of like-minded people who, if not known to wider world, are recognisable to one another. Their uniting bonds are a holu sheperd and holy virgin, common texts and tablem bread, wine and fish  (tradução) Abercius diz ter encontrado por toda parte algumas constantes do movimento cristão: a instrução no texto confiável do Senhor (grammata pista ), uma celebração eucarística de comida comum consumida na companhia de 'amigos' (phíloi), e uma fé comum (pistis) abrindo o caminho (linhas 12-16). Ele se declara 'um discípulo de um santo pastor' (mathetes poimenus hagnou) que alimenta rebanhos de ovelhas nas montanhas e planícies (...) Tanto as palavras enigmáticas anteriores quanto estas palavras finais pressupõem uma comunidade de pessoas de mentalidade semelhante que, se não forem conhecidas pelo mundo mais amplo, são reconhecíveis umas pelas outras. Seus laços de união são um santo pastor  e uma virgem sagrada, textos comuns e mesa de pão, vinho e peixe.[9]

 Dentre os símbolos que a inscrição de Abércio evoca, temos "(...) peixes de uma fonte pura e poderosa (...)". A associação do peixe ao cristianismo é atestada já nos evangelhos, sendo continuada em  correspondentes literários e arqueológicos muito antigos, vários deles contemporâneos a inscrição de Abércio. Assim, Tertuliano, escrevendo de Cartago (atual Tunísia) na virada do segundo para o terceiro século, nos diz

 Mas nós, peixinhos, seguindo o exemplo do "peixe" [grego: Ichtys] Jesus Cristo, nascemos na água, e não estamos seguros de nenhuma outra forma senão habitando na água.[10]

  

Estela de Licínia Amias, início do III século DC,
proveniente da necrópolis do Vaticano. via wikicommons
Ichtys é um acrônimo em grego, Iēsous Christos Theou Yios Sōtēr (Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador).Em Roma, também no início do III século, uma cristã chamada Licinia Amias foi homenageada por seus familiares, com uma inscrição funerária, ao lado, que evoca o peixe (assim como o epitáfio de Abércio faz menção ao peixe trazido pela virgem). "Peixe dos viventes, para Licinia Amias, que merecidamente, viveu". É um dos mais antigos artefatos associados ao cristianismo primitivo, mas ainda evidencia uma identidade em construção e conexões dos adeptos da nova fé com sua antiga vida. A inscrição   possui as letras DM (Di Manes, ou "as almas dos mortos", em latim). Algumas sepulturas cristãs primitivas ainda mantinham  elementos de continuidade com o passado.

Ainda no final do século III, Clemente de Alexandria, também lista o peixe entre os símbolos cristãos 

"(...) E que nossos selos sejam uma pomba, ou um peixe, ou um navio velejando ao vento, ou uma lira musical, que Polícrates usou, ou uma âncora de navio, que Seleuco gravou como um instrumento; e se houver alguém pescando, ele se lembrará do apóstolo e das crianças tiradas da água. Pois não devemos delinear os rostos dos ídolos, nós que estamos proibidos de nos apegar a eles; nem espada, nem arco, seguindo como nós, a paz; nem copos, sendo temperados (...)" [11].

"Peixe e Cesta de Pães", afresco na Catacumba de 
São Calisto, Roma, seculo III DC, via wikicommons
 Retornando a Roma, agora na Catacumba de São Calisto, na cripta de Lucina, que chegou a ser identificada, no início do século XX pelo arqueólogo Battista de Rossi, como Pompônia Graecina, cristã do primeiro século que mencionamos aqui no primeiro post da série. A hipótese de De Rossi é bastante polêmica, mas é importante destacar que o afresco ao lado, também do início do século III, localizada naquela cripta, é testemunho adicional da relevância do simbolismo da cesta de pães e peixes na arte e imaginário cristão primitivo. Ou seja, Abércio atesta não só uma fé comum e disseminada, com relativa unidade em termos comunitários e doutrinários, mas também uma simbologia   comum, utilizada por seus irmãos na fé, de forma generalizada, seja na  Frígia, Norte da África, Egito ou Roma.   

 A Igreja de Megido

Sala de orações cristã na prisão de Megido. Fonte: Imagem em 
Yotam Tepper, Legio, Kefar ‘Otnay, in Hadashot Arkheologiyot:
Excavations and Surveys in Israel, vol. 118, 2006

 Em 2005, numa escavação de resgate, a equipe do arqueólogo Yotam Tepper, localizou na cidade de Megido, no norte Israel, o que foi identificado como um local dedicado a oração e adoração de cristãos primitivos, ou seja, uma espécie de Capela. A estrutura foi datada do início do século III DC, mais antiga estrutura dedicada então mais antiga conhecida e com datação confirmada, em Dura Europos, de 241 DC. (aqui no adcummulus, porém, já havíamos defendido a "Casa de Pedro" em Cafarnaum como a mais antiga igreja do mundo).

A escavação de resgate ou comercial, é um ramo da arqueologia que atua sobre sítios em processo de destruição. Com a expansão urbana, por exemplo, por vezes são localizados artefatos e contextos arqueológicos, em áreas sujeitas a empreendimentos ou reformas. Em muitos países, há leis que determinam que as obras devem ser interrompidas para que possam ser conduzidas escavações no local, para retirada dos artefatos e avaliação dos contextos em que foram encontrados, em curtíssimo espaço de tempo. Embora haja a pressão do tempo (a escavação normal de um sítio pode se prolongar por anos, até décadas), é uma forma de conciliar a expansão urbana em sítios densamente povoados (como Jerusalém) com a conservação do conhecimento científico. Entre exemplos desse tipo de escavação na arqueologia bíblica, estão a Tumba de Talpiot, boa parte das escavações arqueológicas em Nazaré, ou essa escavação em Bete Semes.

No caso da capela/igreja de Megido, a descoberta se deu numa instalação prisional integrante de uma unidade policial. Conforme o relatório da escavação:

During October–December 2005 a salvage excavation was conducted in the prison compound on the hill of the Megiddo police (Permit No. A-4411; map ref. NIG 21795–801/71965–95; OIG 16795–801/21965–95). The excavation, on behalf of the Antiquities Authority, was financed by the Israel Prison Service, with the support of the officers and jailors of the Megiddo prison and the participation of inmates from Megiddo and Zalmon prisons. The excavation was directed by Y. Tepper, (tradução) Entre outubro de dezembro de 2005, uma escavação de resgate foi realizada no complexo prisional na colina da polícia de Megido (Alvará nº A-4411; mapa ref. NIG 21795–801/71965–95; OIG 16795–801/21965–95) . A escavação, em nome da Autoridade de Antiguidades, foi financiada pelo Serviço Prisional de Israel, com o apoio dos oficiais e carcereiros da prisão de Megiddo e a participação de detentos das prisões de Megiddo e Zalmon. A escavação foi dirigida por Y. Tepper [12]

 A datação e motivos para caracterização do sítio como cristão, são apresentados abaixo, pela Professora Joan E Taylor, do King's College:

In 2005 a room was found in a salvage excavation in the precints of a military compound of a Roman Legio (Maximianopolis) and identified as Christian on the basis of  54-square meter mosaic with one dedicated to "God Jesus Christ". The Megiddo Church, as the room become known, was dated to about 230 on the basis of pottery, coins and inscription style (Adams 2008, 62-69; 2013, 96-99; Tepper e Di Segni 2006). However, Tzaferis (2007) prefers a date in the latter part of the third century. The site's abandonment in about 305, evident in the purposeful covering of the mosaic, relates well with the crisis of 303, when the christians communities of Palestine experienced persecution instituted by the emperor Diocletian.(tradução) Em 2005 uma sala foi encontrada em uma escavação de salvamento nos arredores de um complexo militar de uma Legião Romana (Maximianópolis) e identificada como cristã com base em um mosaico de 54 metros quadrados com um dedicado a "Deus Jesus Cristo". A Igreja de Megido, como a sala ficou conhecida, foi datada de cerca de 230 com base em cerâmica, moedas e estilo de inscrição (Adams 2008, 62-69; 2013, 96-99; Tepper e Di Segni 2006). No entanto, Tzaferis (2007) prefere uma data na segunda parte do século III. O abandono do local por volta de 305, evidente na proposital cobertura do mosaico, relaciona-se bem com a crise de 303, quando as comunidades cristãs da Palestina sofreram perseguições instituídas pelo imperador Diocleciano. [13]

Assim, é significativo que uma capela cristã foi encontrada no quartel de uma legião romana (a VI Ferrata Legio, primeiramente atestada nas campanhas de Júlio Cesar, e que tinha base principal na Judeia/Síria desde a revolta de Bar Kochba, entre 132-135 DC). Tudo indica que funcionou durante 75 anos, se aceita a proposta de Tepper e Di Segni, ou cerca de 30 anos, se for seguido Tzaferis, até seu abandono, na grande perseguição de Diocleciano (303-305 DC). Ou seja, embora o cristianismo fosse considerada uma superstitio, ilegal aos olhos de Roma, e perseguições esporádicas ocorressem porque os cristãos, supostamente não cumpriam seus deveres cívicos, ao mesmo tempo, um número significativo de cristãos ocupavam lugares no governo romano e entre as elites (e essa tensão é o escopo de nossa série). Ou seja, sucessivos comandantes devem ter, pelo menos, feito "vista grossa" à fé proibida entre seus soldados. O mesmo Império Romano que condenou Blandina a uma execução brutal, e condenou Perpétua e Felicidade a serem lançadas as feras, permitia a Márcia influenciar algumas políticas do Imperador Cômodo em benefício dos cristãos, a Marco Aurélio Prosenes e a Marcos Demetrianos progredir de escravo a mordomo imperial e sequer disfarçar sua identidade cristã, apesar de ser um magistrado provincial da Bitínia, respectivamente, sem falar em Júlio Africano, com sua proximidade ao Imperador Alexandre Severo. Ou seja, apesar de uma existência precária em termos legais, o cristianismo prosperou em vários segmentos da sociedade, e se tornava cada vez mais visível. Mesmo preso por propagar o cristianismo, o apóstolo Paulo diz que a sua prisão contribui para o progresso do evangelho e para que o nome de Cristo fosse manifesto a toda guarda do Palácio (fl.1:22), alguns dos quais compartilhavam suas saudações aos demais cristão (fl. 4:22). 

Outro ponto a ressaltar é o fato de que relativamente poucas estruturas dedicadas ao cristianismo foram descobertas, e as que foram parecem evidenciar residências que foram gradualmente transformadas em igrejas. Para isso, é importante utilizar um conceito muito relevante de como a missão cristão cresceu e se estruturou, apresentado pela Professora Marie-Françoise Baslez (1946-2022), da Universidade de Paris XII:

"A missão paulina, a única que podemos realmente estudar, foi organizada como uma penetração por capilaridade, que utiliza todas as redes da cidade antiga, funcionando esta última como uma imbricação de comunidades, da menor - que é a família - à maior - que é a cidade. A célula-tronco da missão é a "casa", a oîkos, ao mesmo tempo comunidade familiar e comunidade de atividade, exploração agrícola, fábrica ou loja. Ao contrário da família nuclear moderna, a oîkos antiga reúne pessoas de estatuto diferente, incluindo mulheres e crianças, escravos e libertos em grande número nas famílias de elite, sua composição transcende as divisões da cidade antiga entre gregos e bárbaros, homens e mulheres, livres e não-livres. Os cristãos de uma cidade se reúnem seja por oîkos, seja na residência de um homem ilustre, que convida seus vizinhos e amigos. Essa prática continuou durante dois séculos. Em Roma como em Dura Europos, na Síria, os primeiros edifícios cristãos identificáveis no tecido urbano, em meados do século III, resultam de reforma de grandes residências urbanas: são casas-igrejas. [14]

Baslez cita o caso do casal Priscila e Aquila. Aquila e sua esposa, assim como Paulo, eram judeus e fabricantes de tendas. Assim, ao se conhecerem em Corinto, se associaram tanto profissionalmente, quanto na propagação do evangelho (Atos 18:1). Anos depois, Paulo retorna a Antioquia, e Aquila e Priscila o acompanham por parte do caminho, se estabelecendo em Éfeso, onde encontram Apolo, e "(...) convidaram-no para ir à sua casa e lhe explicaram com mais exatidão o caminho de Deus (...)" (Atos 18:26). Mais adiante, Paulo escrevendo aos Romanos, saúda Aquila e Priscila, bem como "(...)  a igreja que se reúne na casa deles (...)" (Rom 16:5). Assim, complementa Baslez, "(...)a fábrica de Áquila proporcionou o exemplo de uma igreja itinerante, que se deslocou de Corinto a Efeso e a Roma (...)".[14] 

Assim, as congregações se reuniam em casas de seus membros, passando, gradualmente, a dedicar residências a função de igreja. A Igreja de Megido apresenta algumas diferenças em relação a esse processo, uma vez que envolvia uma guarnição militar e suas famílias.

A descrição da sala de oração/capela, tem como principal elemento escavado, um piso com um mosaico e varias inscrições:

The room served as a ritual and prayer hall and one of the inscriptions was dedicated to God Jesus Christ. An ancient Greek inscription and an octagon with fish in its center, enclosed with geometric designs, were incorporated in the northern panel. The inscription mentions an officer in the Roman army who donated his own money for the construction of the floor; the name of the artist who built the floor is also noted. Two Greek inscriptions were integrated in the southern panel; one faced west and the other––east. The names of four women are mentioned in the eastern inscription and the name of another woman who donated the table as a memorial to God Jesus Christ appears in the western inscription. The direction and contents of the three inscriptions accentuated the interior circular layout of the hall, with the stone table base built in its center (below), around which the local Christian community apparently worshipped and prayed.(TraduçãoA sala servia como sala de rituais e orações e uma das inscrições era dedicada a Deus Jesus Cristo. Uma inscrição grega antiga e um octógono com peixes no centro, cercados por desenhos geométricos, foram incorporados ao painel norte. A inscrição menciona um oficial do exército romano que doou seu próprio dinheiro para a construção do piso; o nome do artista que construiu o piso também é anotado. Duas inscrições gregas foram integradas no painel sul; um voltado para o oeste e o outro – leste. Os nomes de quatro mulheres são mencionados na inscrição oriental e o nome de outra mulher que doou a mesa como um memorial a Deus Jesus Cristo aparece na inscrição ocidental. A direção e o conteúdo das três inscrições acentuavam o traçado circular interno do salão, com a base da mesa de pedra construída no centro (abaixo), em torno da qual a comunidade cristã local aparentemente cultuava e rezava. [15]

A sala possuía cerca de 54 metros quadrados, e seu piso tinha um mosaico formado pelo octógono com dois peixes no centro e uma inscrição, de um lado, sendo provavelmente utilizado para a celebração da eucaristia/ceia do Senhor e oração, e algumas inscrições no outro lado. A inscrição localizada no lado nordeste do mosaico, ao lado dos dois peixes, indica o patrono daquela congregação:

Gaiano, também chamado Porfírio, centurião, nosso irmão, mandou construir esse pavimento as suas expensas em um ato de liberalidade. Bruto levou a cabo esse trabalho.

O centurião, era um oficial romano de comandava uma tropa de 80 a 100 soldados. Cinco ou seis centurias formavam uma coorte, e 10 coortes formavam uma legião. Uma centuria, assim, fazendo uma analogia com exércitos modernos, seria pouco maior que um pelotão e menor que uma companhia, ambas unidades hoje comandadas por oficiais (tenentes, no caso dos pelotões, e capitães ou majores, para companhias). O fato de uma figura importante da legião ter patrocinado o mosaico indica que possivelmente era a pessoa que garantia a atuação daquela congregação junto aos comandantes da legião. Apesar de alguns pais da igreja, como Tertuliano, terem demonstrado reserva a possibilidade de cristãos servirem ao exército, pela possibilidade de serem forçados a oferecer sacrifícios ao imperador e aos deuses pagãos, e menciona o caso de um soldado que foi forçado a ter que escolher entre o senhor terreno e o celestial  (Sobre a Idolatria XIX, De Corona Militis I, respectivamente), fato é que uma parte significativa das inscrições cristãs pré constantinianas, se referem a militares que serviram em legiões romanas. Essa database de inscrições do exército romano, mantida pela equipe do Professor Christopher Zeichmann, (Universidade de Toronto), indica pelo menos 21 ocorrências. Há casos, como o do soldado Aurélio Gaio, que descreve uma vida inteira servindo ao exército romano, estacionado em várias partes do Império.

No lado sudeste, há uma outra inscrição, agora comissionada por uma mulher, que é a mais declaradamente cristã de todas: 

Aketpous que ama a Deus, oferece esse mosaíco ao Deus Jesus Cristo, como memorial

Há uma terceira inscrição, na qual são mencionadas quatro mulheres integrantes da congregação:

 Lembre-se de Primilla e Cyriaca e Dorothea, e além disso também Chreste

Joan Taylor comenta a relevância dessas inscrições, indicando também o papel relevante dessas mulheres, que possuem suficientes recursos para comissionar uma inscrição e devem ter exercido papeis relevantes na comunidade, por exemplo, como diaconisas, ou, no caso de Primilla e outras mulheres mencionadas na terceira inscrição, como víuvas, algumas das quais serviam como oficiais nas igrejas (ex. I Tim 5, que lista requisitos semelhantes aos necessários a presbíteros e diáconos):

These named women would be appropriately understood as widows who had made donations independently. The order of windows remained important throughout the early centuries of the church (Eisen 2000, 142-57, Thurston 1989). The presence of women need not be surprising in a military camp since the after 197, military men under the rank of centurion were permitted to marry (Phang 2001, 226; and see 107-9). The mosaic suggest a gendered division of space between the southwest (inscription mentioning women) and the northeast (inscription mentioning men). (tradução) As mulheres mencionadas seriam apropriadamente entendidas como viúvas que fizeram doações de forma independente. A ordem das viuvas permaneceu importante ao longo dos primeiros séculos da igreja (Eisen 2000, 142-57, Thurston 1989). A presença de mulheres não precisa ser surpreendente em um acampamento militar, uma vez que, depois de 197, os militares sob a patente de centurião foram autorizados a se casar (Phang 2001, 226; e ver 107-9). O mosaico sugere uma divisão generificada do espaço entre o sudoeste (inscrição que menciona as mulheres) e o nordeste (inscrição que menciona os homens).[16]

Tanto a inscrição de Abércio como o mosaico da capela/igreja de Megido são, provavelmente, quase contemporâneos. As inscrições indicam pessoas com padrão bem além da subsistência, com um bispo que pode empreender viagens por boa parte do Império (mesmo que conciliando sua vocação religiosa com outra ocupação) e um oficial do exército romano. Há semelhanças na simbologia (como o peixe), e indicam um cristianismo que se espalhara geograficamente por todo o império, e ia mostrando gradual capilaridade, se manifestando cada vez mais abertamente, mesmo em segmentos em tese encarregados de sua repressão (como o exército romano).

Referências Bibliograficas

[1]  William Tabernee, 2007 Fake Prophecy and Polluted Sacraments: Ecclesiastical and Imperial Reactions to Montanism,  fls 10/11

[2]  Peter Thonemamm (2012) Abercius of Hierapolis: Christianization and Social Memory in Late Antique Asia Minor In Beate Dignas & RRR Smith, Historical and Religious Memory in the Ancient World, fl. 258

[3] Margareth Mitchell (2008) From Jerusalem to the Ends of Earth in Margareth Mitchell, Frances M Young e  K. Scott Bowie (2014)  Cambridge History of Christianity: Volume 1, Origins to Constantine, fl. 296, nota de rodapé 3

[4] Peter Thonemamm (2012) Abercius of Hierapolis: Christianization and Social Memory in Late Antique Asia Minor In Beate Dignas & RRR Smith, Historical and Religious Memory in the Ancient World, fl. 260

[5]  Eusébio de Cesaréia, História Eclesiastica, Livro 5.16.2

[6] William Tabernee, 2007 Fake Prophecy and Polluted Sacraments: Ecclesiastical and Imperial Reactions to Montanism,  fls 11

[7] Tertuliano de Cartago, Resposta aos Judeus, capítulo 7

[8] Peter Thonemamm (2012) Abercius of Hierapolis: Christianization and Social Memory in Late Antique Asia Minor In Beate Dignas & RRR Smith, Historical and Religious Memory in the Ancient World, fl. 260

[9] Margareth Mitchell (2008) From Jerusalem to the Ends of Earth in Margareth Mitchell, Frances M Young e  K. Scott Bowie (2014)  Cambridge History of Christianity: Volume 1, Origins to Constantine, fl. 295-296

[10] Tertuliano de Cartago, Do Batismo, capítulo 1.

[11] Clemente de Alexandria, Pedagogo, Livro III, capítulo IX

[12]  Yotam Tepper (2006), Legio, Kefar ‘Otnay, in Hadashot Arkheologiyot:Excavations and Surveys in Israel, vol. 118.

[13] Joan E Taylor (2018) Christian Archeology in Palestine: The Roman and Byzantine Periods In David K. Pettegrew, Thomas W. Davis, William R. Caraher, The Oxford Handbook of Early Christian Archaeology, fls 371-372

[14] Marie Françoise-Baslez (2007) "No princípio. Os primórdios da história do cristianismo" in Alain Corbin, Historia do Cristianismo, fls. 29-30

[15]  Yotam Tepper (2006), Legio, Kefar ‘Otnay, in Hadashot Arkheologiyot:Excavations and Surveys in Israel, vol. 118

[16]  Joan E Taylor (2018) Christian Archeology in Palestine: The Roman and Byzantine Periods In David K. Pettegrew, Thomas W. Davis, William R. Caraher, The Oxford Handbook of Early Christian Archaeology, fls 371-372



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